+K1** *^ **::**- OS FILHOS DE D. JOÃO I * \ \\ CASA EDITORA ANTIGA LIVRARIA CHARDRON Lugan & Genelioux, successores PORTO LISBOA IMPRENSA NACIONAL M DCCC XCI 5>t: \^\ ADVERTÊNCIA Voltam a sair á luz Os filhos de D. João 1, depois de ampliada, corrigida e documentada a obra, por forma que, sem perder a feição com que primeiro se apresentou em publico1, melhor corresponda á grandeza e sympathia do assumpto. DilFerentes pessoas amigas contribuíram, como se verá no texto, para o resultado presente, já prestando-me subsídios históricos, já proporcionando os meios de se conseguirem os primores d ''esta impressão. Manifestando a cada qual o meu agradecimento, necessitava registal-o aqui, para que, havendo louvores a distribuir, elles vão a quem toca. E minha idéa que a arte de escrever historia está atra- vessando um período de transformação. Reagindo contra as theorias abstractas dos racionalistas antigos, os escripto- res do nosso tempo, absorvidos pelo cuidado indispensável da veracidade crítica, esqueceram os modelos eternamente clássicos. A historia ha de sempre ser uma resurreiçao; c o 1 Na Revista de Portugal, 1889- 1890. vi Advertência processo artístico ou synthetico ser-lhe-ha sempre o ade- quado. As analyses eruditas e as controvérsias críticas, bem como as theses doutrinarias dos systematicos, serão também sempre materiaes indispensáveis do artista; mas nunca po- derão crear obras que tanto agradem ao sábio como ao ignorante, deliciando e educando quem quer que tenha ou- vidos para ouvir, olhos para ver e coração para sentir. Nas vidas de Plutarcho temos ainda hoje, parece-me, um dos modelos d'este género litterario: já porque assim o grego entendia a historia; já porque fazia, como deve ser, da ana- lyse psychologica e do exame biographico, o núcleo do es- tudo e observação dos tempos. A historia tem nos caracte- res, como a pintura do retrato, o seu terreno de eleição; porque o homem, com as suas crenças, idéas e até precon- ceitos e fabulas, foi o constructor da sociedade. Não existe matéria de historia, quando não ha caracteres accentua- dos: assim succede nos tempos obscuramente primitivos das civilisaçoes, e também nas epochas não mais claramente collectivas dos nossos dias, em que tudo volta a ser anony- mo, como no principio. Ha então apenas fastos e matéria própria para escriptos didácticos, análogos aos referentes á natureza inorgânica ou animal, por isso mesmo que na sociedade influem exclusiva, ou soberanamente, as forças democráticas, operando como elementos naturaes. Mas para os períodos em que a liberdade humana positi- vamente cria, o methodo synthetico ou artistico, e também o processo biographico inherente, são alem d'isso o único meio de conseguir aquella verdade que os escriptores críticos em vão pretendiam attingir com a analyse dos textos e diplo- mas, e com o estudo aturado das instituições, das classes e de todos os elementos sociaes collectivamente obscuros. Erravam por dois modos : em primeiro logar, considerando Advertência vu essencial o accessorio; em segundo, porque, acreditando na verdade absoluta, mediam todas as idades por um metro igual, não sentindo o palpitar vario dos tempos. Ora, o que domina sobre tudo a historia são os motivos moraes, e esses motivos parecem verdadeiros ou falsos con- forme as eras e os logares. Assim a historia ha de ser obje- ctiva, sob pena das obras do artista não passarem de crea- ções phantasticas do seu espirito. E hade, por outro lado, assentar sobre a base de um saber solidamente minucioso, de um conhecimento exacto e erudito dos factos e condi- ções reaes, sob pena de, em vez de se escrever historia, inventarem-se romances. Arena amplíssima onde o artista e o erudito, o pensador e o crítico, se encontram e se confundem, o jurista para indagar com escrúpulo, o psychologo para analysar com subtileza, a historia, se não é a forma culminante das ma- nifestações intellectuaes do homem, é sem duvida a mais complexa e a mais comprehensiva. Por isso mesmo que assim penso, mais vivo sinto o des- animo ao reparar quanto estas paginas correspondem pouco á medida das idéas que as fizeram nascer. Todavia, com aquella vaidade própria de todos os que têem idéas, creio também que o favor publico dispensado a esta obra, logo na sua primeira publicação, provém d^ella aspirar a um ideal verdadeiro — como as aves, quando ainda quasi im- plumes, ensaiam o voo, batendo os cotos, debruçadas da beira do ninho sobre a immensa vastidão do espaço lumi- noso. .Marco, 1891. O. M. OS FILHOS DE D. JOÃO I v^^X Inclyta geração, altos Infantes. Camões, Lusíadas, iv, 5". A CORTE E O CONSELHO m 141 1, Castella, cinco annos depois da morte de Henrique III, assignára o tratado de paz comnosco pela mão da rainha viuva, que sempre fora contra a guerra1. A dynastia filha da revolução de 1 383 ficava reco- nhecida. O periodo de crise aguda pôde, porém, dizer-se que acabara logo em 1387, quando, aos trinta annos, D. João I desposou D. Filippa de Lencastre, que tinha vinte e nove. • Os capítulos geraes de pazes e alliança com Castella, celebradas entre D. João II, por um lado, e, pelo outro, D. João I de Portugal e seus filhos, ratificaram-se em 143 1, a 3o de outubro, em Medina dei Campo. — V. o texto do tratado, em Soares da Sylva, Mcmor. de el-rei D. João I; doe. n. 36; tom. iv, p. 270-358. — Logo em 1387, dois annos depois de Aljubarrota, os duques de Lencastre, como reis de Castella, desistiam, pelo tratado de Babe, termo de Bragança, de quaesquer direitos á co- roa portugueza em favor de D. João I. — Ibid. doe. ll.li; tom. iv, p. 67-71. 2 Os filhos de D. João I Foram quatro annos de lucta incessante. Depois, a hosti- lidade prolongou-se, mas n'um estado chronico e manso, como succedia geralmente ás guerras europêas antes do rim do século xvm. Também o casamento do rei trouxe comsigo uma altera- ção completa no caracter e nos costumes da corte portu- gueza. E sabido que essa alliança procedeu da liga politica celebrada, contra Gastella, entre o mestre de Aviz e o duque de Alencastro (como diziam os portuguezes de então), pre- tendente á coroa castelhana. O duque saiu de Prymouth numa grande armada que veiu á Corunha e de lá ao Porto. Trazia comsigo a corte e um exercito com que invadiu a Galliza, indo o mestre de Aviz avistar-se com elle nas mar- gens do Minho. Annos antes d'esta vinda do duque de Len- castre a reivindicar a coroa de Castella, o defensor do reino recrutara em Inglaterra as levas de soldados que o tinham ajudado a vencer Aljubarrota, companhias de aventureiros que n'esses tempos de agitação violenta andavam por terra ás presas. Portugal, em grande parte devedor da sua inde- pendência ao auxilio dos Cruzados, procurara, na crise ini- cial da sua gloriosa dynastia de Aviz, o soccorro de mer- cenários inglezes, Cobham, Cressyngham, Blithe, Grantam, Dale e outros, assoldadados por príncipes que já não iam resgatar o sepulchro santo, mas sim conquistar thronos em que regaladamente podessem gosar as delicias da vida. Saía- se gradualmente do illuminismo medieval. Dissipava-se a pe- numbra em que os espíritos, vergando sob o medo da mor- te, procuravam na dissipação da vida violenta esquecer os terrores do juizo final, alternando a impetuosidade do tem- peramento com a submissão áquelles que tinham o man- dato de Deus na terra. Inglezes nos ajudaram no dia triumphante de Aljubarrota; e a sua táctica, victoriosa em Azincourt, dera já em i385 a victoria ao mestre de Aviz, desmantelando a cavallaria castelhana, e sagrando-o rei. Conquistara a coroa: podia celebrar allianças. Pela ingleza que de então continuou até hoje, com mais ou menos contestado proveito, o duque de A cárie e o conselho 3 Lencastre obtinha do rei de Portugal direito de passagem e auxílios de gente para a sua empreza castelhana, desis- tindo das pretensões sobre as terras lusitanas que andavam incluídas para os nossos inimigos na categoria de rebel- des1. A alliança ratificou-se com um enlace conjugal. D esses tratados de 1 386 e i38y veiu o casamento do rei D. João com a filha do duque de Lencastre; e do casamento uma idade nova para a corte portugueza, que durante a pri- meira dynastia não saíra de um estado semi-barbaro, oscil- lando entre a violência da vida guerreira e a carnalidade dos prazeres animaes, apenas temperada pelos instinctos de ordem que dictavam as leis, pela necessidade do interesse que inspirava a politica: alternando o terror do inferno com o embrutecimento da sensualidade, e acabando n1uma po- sitiva orgia de impudicicia, tão desbragada que offendeu a curta castidade dos tempos, fazendo esquecer, pelas afflic- ções da desordem e das guerras, o muito bem que o pobre rei D. Fernando fez á terra sobre que desnorteadamente reinou. Começava agora um dia novo. Como a cândida açucena, quando se levanta de um chão negro apaulado, ergueu-se da turba de gente desvairada a íigura ingénua de Nunalvares, esse exemplo raro de uma en- carnação immaculada na virtude forte. Nunalvares foi o precursor da idade doirada em que Portugal ia entrar, e abre-nos com chaves de heroísmo ingénuo as portas do templo da gloria histórica. • V. a acta da doação em Sousa, Hist. geneal.; Provas, n. 3 da m p., tom. i, 354. — Sylva (Man. de el-rei D. João I, tom. iv) publica, extrahi- dos do arch. nac, o tratado de alliança de i38j com Ricardo II de In- glaterra (n. 3a; p. 220-43), o accordo com o mesmo rei para as pazes com Castella (n. 33; p. 243-5), e, finalmente, os tratados com Henri- que IV, em 1399 (un. 34-5), p. 246-69. — Figanière (Catai, dos mss.fort. exist. no mus. britann., p. 5y) diz que o texto do tratado de i3Sj, publi- cado por Sylva, dirlere, no preambulo e na ratificação, do traslado da bibl. Cottoneana. 4 Os filhos de D. João I O mestre de Aviz fora em rapaz manhoso, atrevido, au- daz sim, mas nunca temerário. A temeridade só é concedida aos que na alma trazem alguma scentelha divina. A casti- dade, essa flor gémea da cavallaria, que namorava o con- destavel e acabou pelo vencer com o cilicio e a estamenha do seu santo claustro do Carmo, não seduzia o principe. Nas suas cavallarias alemtejanas, á volta de alguma mon- teria aos lobos, ou aos castelhanos, perdeu-se pelos olhos negros da filha de Mendo da Guada, em Veiros. Amou-a, seduziu-a, e trouxe-a para o convento de Santos, em Lis- boa. O velho Mendo, de raiva, não cortou mais as barbas, d'onde lhe pozeram por alcunha o Barbadão. «Não have- reis já de acabar com essa melancolia? » perguntou-lhe uma vez a rir o mestre, passando em Veiros de cavalgada. «Sim: quando acabar comvosco! » E arremetteu numa fúria. Um galão do cavallo salvou o mestre, que partiu scismando. O Barbadão era o riso respeitoso das gentes de Veiros; mas, conformando-se a final, veiu á corte e recebeu as mercês do rei. Das travessuras da mocidade trazia, pois, comsigo D . João I um filho, duramente amamentado na escola dos acampa- mentos. A inferioridade relativa imposta pela bastardia, no seio de uma corte que depois timbrou na modéstia até ao exagero, azedou o caracter do conde de Barcellos, accen- deu-lhe a cobiça, e, como a todos os bastardos, lançou-lhe na alma a semente de inimisade e despeito : todavia fecunda semente para os homens que ambicionam sobrelevar aos mais, não pela grandeza do próprio espirito, mas pela acção material, isto é, pelo império que exercem sobre os seus similhantes, dominando-os, ou deslumbrando-os. O condestavel de Bourbon escreveu na sua espada Je per- cerai, e essa espada, através de mil perfídias, manchada por cem traições, penetrou, abrindo- lhe o caminho do throno. O bastardo de D. João I, insaciável, ancioso por vingar com o poder e com a riqueza a inferioridade da sua origem, perante irmãos mais nobres a todos os respeitos, conseguiu penetrar também: subir, voando como falcão, ou insinuar-se, A carte e o conselho 5 rojando-se como serpente: trepar, até sobre o cadáver do desgraçado de Alfarrobeira, e, ganhando a final, com o ducado de Bragança, um logar ao lado dos duques deVizeu e de Coimbra, fazer d'esse posto o degrau que levou também ao throno os seus descendentes. Tinha dez annos apenas1, quando seu pae se casou: era uma creança ainda, embora n'esses tempos agitados os ho- mens se formassem muito precocemente. Era uma creança, quando em 1387, no Porto, se celebrava, de um modo até certo ponto avesso, o casamento de D. João I, que pare- cia não arder em extremos de enthusiasmo por essa alliança. Trazida ao Porto, a princeza ahi ficara só, sem o pae e sem o noivo, partidos ambos para a campanha. D. Filippa era já uma mulher feita: tinha vinte e nove annos, um anno menos do que o rei. Era boa, suave, loura; era grave e se- rena, como as inglezas são, embora tenham dentro em si uma de duas cousas, ambas fortes: ou o sentimento arraigado do dever, ou a violência indomável da paixão. Talvez por isso mesmo não seduzisse logo o temperamento expansivo e meridional de D. João I; mas por isso mesmo o dominou com o tempo, transmittindo aos filhos a sua gravidade e a sua virtude saxonias, e produzindo a mais bella espécie de cruzamento. Era possível também que o rei hesitasse em casar-se com a filha de um homem tão desbragado como o duque de Lencastre. Quem lhe assegurava que debaixo da face hie- rática da princeza, sob o seu gesto ingénuo e grave, se não 1 Pornos o nascimento do bastardo de D. João I em 1377, °lue é uma das duas datas adduzidas. Sousa, na sua Hist. geneal., contesta-a, pre- ferindo 1370, o que parece inadmissível. D. João I nasceu em 1 357, como se vê na própria Hist. geneal., n, 5; e se o conde de Barcellos tivesse nascido em 1370, como se diz no tom. v, 5, seguir-se-ía que o mestre de Aviz teria tido um filho aos treze annos, o que, apesar da precoci- dade dos homens do tempo, é impossível. Admittindo 1377, o mestre contaria vinte annos ao ter o seu primeiro filho, que, fallecendo, como falleceu, em 1461, viveu oitenta e quatro annos. De outro modo teria vivido noventa e um, o que não é impossível, mas seria excepcional. 6 Os filhos de D. João I abrigavam lodos, como os que também se escondem sob o espelho azul, sereno e transparente das lagoas? Fora edu- cada com os peiores exemplos. O duque vivia escandalosa- mente, debaixo das mesmas telhas, com a mulher e com a amante, Catharina Bonet, que tirara ao marido, dando-a por mestra ás filhas1. Formada por tal preceptora, a prin- ceza, com effeito, não devia offerecer garantias, sem embargo do seu ar de santa. Os factos, porém, mostraram que o próprio exemplo da devassidão paterna exercera, como tantas vezes succedc, uma acção salutar no animo da filha. Reagiu. Não era uma creança ingénua; era mais e melhor: era uma mulher deci- dida a ser boa, por isso mesmo que vira e observara de perto a maldade. Esta força de reacção, esta energia moral, que sem duvida alguma formavam o caracter da rainha, dando-lhe a serenidade da sua face augusta, são o dote ines- timável da gente saxonia. Vivem de si, e não, como os me- ridionaes, das impressões externas que recebem. Têem o orgulho ingenito, inaccessivel á vaidade que nos move. Go- vernam-se pelo pensamento, ou pelo sentimento, sem atten- ção ao tumulto do mundo que passa. São a gente subjectiva, poetas até á raiz dos cabellos; ao passo que nós, meridionaes, artistas incorrigíveis, preferimos viver a vida que corre, ale- gremente, sem fadigas da alma, á lei da natureza. A vida para elles é uma tarefa, ordenada por um dever: para nós é uma festa, ou um sacrifício. Por isso fazemos pouco d'ella, e n'isto consiste a nossa superioridade, porque muito mais facilmente somos capazes de heroísmo. D. João I ignorava, porém, o que haveria para alem d'essa face de mulher, serena e fria, sem outra belleza mais do que o doirado dos seus cabellos, cor de trigo em junho, a alvura da sua pelle, rosada nos lábios, finos e sem tortu- ras expressivas, e o azul — falso ou verdadeiro? — dos seus 1 «Concupiscentia excaecatus, nec Deos timens, nec homines erubes- cens, habebat. . . quandam Karterinam. . . alienigenam in família cum axore sua.» — Knyghton, De Event. Anglice, 1642. A carte e o conselho 7 pequenos olhos de ingleza. Nenhuma cousa o encantava. Para mulher, não era isso que o desejo lhe pedia; para es- posa, receiava, lembrando-se das historias do sogro. O ca- samento, portanto, fez-se politicamente, por calculo. Era o ultimo artigo do tratado de alliança que lhe dava força con- tra Castella. Fez-se com as festas rituaes, apressadamente, no intervallo de duas manobras militares. D. Filippa hospedára-se nos paços do bispo no Porto, dentro do estreito cerco dos muros negros de D. Muninho, levantados remotamente por occasião da reconquista aos mouros. Esse cinto de altas muralhas encanecidas era uma construcçao quasi cyclopica de enormes quadrados de gra- nito sem cimento, flanqueados por torres massiças, denta- dos de ameias que no céu pardo recortavam as suas pontas, como espinhos de algum monstro. Encerravam o baluarte dos poderosos bispos do Porto, sempre rivaes dos pequenos príncipes portucalenses. Subiam até ao Cimo-de-villa, des- cendo em linha recta sobre o Douro por um lado, e pelo outro ladeando a collina desde o antigo castello suevo da Porta- ventosa até á Ribeira, onde ficava o postigo dos Banhos. O paço dos bispos, ameiado e torreado, levantava-se no topo da collina com império, sobre a ladeira íngreme de que os socalcos das ruas lobregas faziam um throno de ca- saria. Para fora dos muros, a poente, ía-se estendendo o burgo hostil que a rainha D. Thereza doara ao bispo Hugo, legando-lhe uma origem de permanentes contestações e amiu- dados tumultos. Lá no fundo, o Douro, apertado entre penedias de granito, corria tristemente, ennegrecido pelas matas de pinheiraes que trepavam nas margens. A poente, contra S. Domingos e a rua do Souto, onde estava construída a arena dos tor- neios para as festas do casamento, eram, em Miragaya, os limites do couto episcopal de D. Hugo, e do couto vizinho dos priores de Cedofeita, outra cidade, terceiro Porto, que vinha juntar-se ao burgo e á cidadella dos bispos. Cedofeita, a velha capella de S. Martinho de Tours, onde a tradição reza ter sido baptisado Theodomiro, nos tempos remotos 8 Os filhos de D. João I da queda dos romanos, obtivera também de D. Thereza o seu couto, que se alastrava por toda a metade occidental do Porto de hoje, mosqueado pelas aldeias e casaes dos colo- nos contratados pelo cabido1. Para o nascente, inclinando em pinheiraes até ao esteiro de Campanhã, alongava-se o morro da Batalha com o seu Padrão, em memoria dos assaltos sangrentos dos mouros ao Porto, bravamente defendido pelo conde leonez D. Her- menegildo (Q2oV, divisavam-se mais para longe, numa pai- zagem franca e luminosa, os campos de Rio Tinto, assim chamado por ter corrido em sangue até ao Douro, quando o rei Ordono veiu como um raio em defeza do Porto. Desses combates remotos tivera agora a cidade a lembrança, accla- mando em armas o mestre de Aviz, nas bravas luctas da guerra da independência. Por isso o casamento de D. João I era para o Porto uma festa. Ao repicar dos sinos da sé, perdendo-se nas quebra- das dos montes, negros de arvoredo, correspondia para alem, distantemente, o sino alegre de Cedofeita: dir-se-íam as campainhas das ovelhas, conduzidas em rebanho pelo báculo do seu santo pastor Martinho . . . Toda a noite fora de festa: dansas e trebelhos, jogos e matinadas. O bom povo do Porto, na sua cidade triste, quebrava a monotonia dura da vida n'esse instante de folgança-, e o tom pardo do granito, pardo como o ar nevoento e húmido, dissipára-se de manha quando a cidade acordou semeada de murta e rosmaninho, com as casas armadas como capellas. O pró- prio sol quiz ser da festa, penetrando nas ruas lobregas, e pondo por excepção nas faces dos burguezes uma scentelha de vivacidade luminosa. El-rei chegara de noite, na véspera, com o condestavel, que vinha assomado e colérico. Mais velho que o rei, a quem fizera, não se limitava a aconselhal-o: reprehendia-o. Por vezes, vendo-se contrariado, tomava-o tal fúria que tremia i V. o foral para povoação dado pelo prior de Cedofeita, D. Nuno, cm 1237, nos Portug. Monum. histor.; leg. et cons., 1, 627. . 1 corte e o conselho g a ponto de vacillar sobre os joelhos1. Hospedaram-se em S. Francisco, no burgo; e logo de madrugada foram ao paço do bispo D. Rodrigo comprimentar a rainha. Prepa- rou-se o cortejo. O pequeno espaço que vae desde o paço até á sé estava coalhado de povo em gala. Uma orchestra de trombetas e flautas tocava. Montaram, a par, o rei e a rainha, em dois cavallos brancos cobertos de xairéis reca- mados de oiro, e, coroados, foram seguindo a procissão, sorrindo amoravelmente para o povo que os acclamava. O arcebispo de Braga, paramentado, levava pela rédea o cavallo da rainha, atraz da qual iam as suas donas fidalgas a pé. Ao lado do rei ia o condestavel. A porta da sé, numa nuvem de incenso e numa corte de prelados, o bispo D. Ro- drigo, de mitra, báculo e vestes de oiro pontificaes, esperava os noivos. Entraram, casou-os, e houve missa. Da igreja voltaram ao paço, a comer. O condestavel era o mestre-sala das bodas, e quando todos riam, na alegria da mesa, elle ria também, galhofeiro, com esse encanto simples dos temperamentos justos e espontâneos. Desafive- lavam-se os cintos, vasavam-se as taças, engorgitavam-se as viandas. As donas fidalgas cantavam em coro, e em torno das mesas os rapazes exercitavam-se em saltos, trepando em cordas suspensas, ou em mastros. O dia passou-se d'esta forma, acabando o banquete por um baile de roda em que todos, fidalgos e fidalgas, rei e rainha, dansavam: todos, até o próprio condestavel com a sua longa barba. onde as cans dos quarenta annos, as cans dos trabalhos e das cóleras mal comprimidas, corriam como fios da prata alegre. Os bispos e os prelados, digerindo, riam. Fora, o povo, num gritar delirante, aquecia ainda mais a sala do banquete, e pelas ruas, pelas hortas e campos da i «E aquel Santo Condestabre por semelhante houve aquesto sen- timento por sobejamente se dar aos cuidados e desembargos, em tanto que por semelhante se querer forçar pêra ouvir alpuma pessoa dis- tado lhe vinha tal agastamento que elle confessou que já por ello esti- vera em ponto de cair em terra.» — D. Duarte, Leal conselheiro, \\. io Os filhos de D. João I cidade, desenrolava-se uma onda férvida de alegria. Em S. Domingos havia torneios, por toda a parte festa: uma festa cujo oitavario durou quinze dias. Descaindo a noite, os prelados benzeram o leito real ', e D. Filippa, serena, grave, loura, encaminhou-se placidamente para a camará nupcial levada pela mão de seu marido. Os primeiros dois annos foram estéreis ; mas logo em 1 3qo a rainha começou, com uma pontualidade ingleza, a produzir o seu filho annual. Em 1390 nasceu o infante D. Affonso, que morreu de dois annos. Em t3o,i, D. Duarte, que succe- deu a seu pae no throno. Em i3o,2, D. Pedro, fadado para melancólicos destinos. Em i3o,3, falha. Em 1394, D. Hen- rique, o Scipião portuguez, inventor do nosso império ul- tramarino. Em i3q5, D. Branca, fallecida na infância. Em 1396, provavelmente algum desmancho. Em 1397, D. Izabel, que casou com o duque de Borgonha. Depois, a fecundidade cansa: ha intervallos. Em 1400 nasce o infante D. João; em 1402, o pobre martyr de Tanger, o infante D. Fernando, Isaac effectivamente immolado por um Abraham terrível, em holocausto ao génio quasi semita que nos impellia, como phenicios, para a aventura dos mares. Depois, o manancial esgota-se. Foi o seu ultimo filho. D. Filippa acabou por gerar um santo, ella em cujo ventre se formara a semente de tão grandes homens. Quinze annos (1387 a 1402) de um pro- crear incessante: abençoadas entranhas! E durante este período, no vigor da vida, entre os trinta e os quarenta e cinco, o rei não teve um bastardo. Que singular mudança houvera nos costumes da corte: dessa corte que vinte annos antes acclamára Leonor Telles? Diz-nos D. Duarte que o rei e a rainha fizeram casar mais de um cento de mulheres, entrando na conta as que ellc 1 Fernão Lopes, Ckron. de D. João J, p. 11, cap. i ás velhas crenças do christianismo medieval, a dureza in- genita do caracter do infante encontrava nas visões do seu plano um objecto e uma sancção tão profunda, que a sua alma, realistamente mystica á hespanhola, tinha allucinaçóes, julgando proceder por mandados da divindade. Esta fé e esta inclinação de génio, que se chamam loucura, quando chegam á mania e têem como objecto um fim sem utilidade real ou reconhecida, deviam concorrer para accentuar ainda mais o caracter reservado e agreste do infante. A primeira vista, o seu aspecto era temeroso, segundo dizem os que o trataram, e arrebatado em sanha, o sem- blante tornava-se-lhe muito esquivo. Nenhum homem, per- seguido e dominado por uma idéa, tem meiguice, nem aquella impassibilidade íntima que mais ou menos corresponde sem- pre á morte da energia, pela contemplação, ou pelo scepti- cismo. Mas o infante não era expansivamente colérico, não tinha accessos, nem fúrias: era, pelo contrario, esquivo, isto é, reservado. Amodorrava, franzia a testa, empinava as so- brancelhas, e com a palavra mansa e o gesto comedido, mandava passear quem o desgostava: «Dou-vos a Deus, sejaes de boa ventura!» Nunca foi avaro, e comprehende-se, porque a sua paixão tinha objecto diverso. A riqueza era-lhe apenas um instru- mento ao serviço da sua idéa. Avarento é o homem que, fazendo-se centro do mundo, refere tudo a si; e o infante via as cousas de um modo diametralmente opposto. O cen- tro, o núcleo, o âmago de tudo, estava n^este plano a que se votaria a si próprio, sacrificando os seus, para exalta- ção da sua fé e da sua terra, para que germinasse, para que nascesse, florisse e fructificasse a semente que trazia no pensamento envolvida nas dobras da inconsciência. Nunca o infante sonhou os cruéis resultados que á sua terra ha- viam de vir do glorioso sacrifício a que a votava, impondo- lhe a missão de descobrir o mundo, para que a humani- dade tivesse, depois das illusões inebriantes, os desenganos finaes, e na garganta o travo amargo dos fructos paradisía- cos da arvore da sciencia. 02 Os Ji lhos de D. João I Não tinha a impassibilidade otympica : não podia ter esse condão dos apathicos. O seu temperamento fervia, mas, como portador de uma idéa ardentemente crida, se o seu gesto era socegado e a sua palavra mansa, também o seu génio era constante nos casos adversos e alheio inteiramente á vaidade da gente débil. Modesto, como os fortes são sempre, por não carecerem de ostentação que os mantenha erectos, o infante era-o também por ser asceta. Casto e abstemio, como se disse, jejuava meio anno. Tinha uma vida interior absorvente que escusava as affirmações externas, essenciaes para o commum dos homens. Sem meiguice, nem encanto de espécie alguma no aspecto, nem no génio, reservado, vagaroso no dizer, destrahido, quasi misanthropo, os con- temporâneos levavam com acerto essa falta de qualidades agradáveis ao «senhorio que a freima havia em sua com- pleição, ou á emlição da sua vontade movida a algum certo fim aos homens não conhecido». Esse caracter fatidico e assustador vinha da chamma, que lhe devorava o peito, enleiando-lhe, não a vontade, mas sim as manifestações externas d'ella nas relações com os seus similhantes. Trazia na alma um incêndio, e por isso mesmo o exterior era gelado: a chamma aspirava e consumia todas as parcellas de calor peripherico. Pelo que sabemos do génio dos povos remotos de Tyro, Sidónia e Garthago, o infante D. Henrique tinha em si o caracter de um phenicio-, e mar- cando a Portugal o destino ulterior da sua vida, prenunciou também a physionomia que este povo ia apresentar nos seus actos collectivos e no génio dos seus grandes homens. Acaso formada com sementes de sangue africano, a arvore da população portugueza, em que decerto se enxertaram mui- tos ramos de origem púnica, talvez desse no infante um fructo de longínqua ascendência. Era o filho de um bastardo que nascera em entranhas populares, e se fizera homem e rei por um movimento da vontade espontânea de todo o povo portuguez. A chamma interior em que ardia, devorando-o, forta- lecia-o. E um engano rhetorico suppôr que a intensidade A villa do Infante 63 de um pensamento, quando é fecundo, mata. O que des- troe os homens é a apathia e a enervação. Na sua vida, o infante apresenta-nos um dos primeiros exemplares do asceta da sciencia. Consumia os dias, velava as noites, estudando, indagando, meditando; e não nas vagas conge- minações mais ou menos phantasticas do theosopho ou do metaphysico, nias em volta da realidade positiva e pratica do mundo, esboçado diante de seus olhos nos mappas rudos do tempo. Como um alchimista, queria extrahir dessas folhas o segredo da terra. Não queria uma chimera. «E o corpo, assim obstinado, parecia que reformava outra natu- reza». Não queria uma chimera, queria o possivel — e tão possível, que bastou um século para ser um facto. Com o casamento do rei, fizera-se mais cosmopolita ainda a corte portugueza, que nunca fora patrioticamente exclusiva, pois o sentimento da independência affirmava-se bastante na hostilidade a Castella. Desde que a capital se ia fixando em Lisboa, já tornada um centro de commercio maritimo e uma estação de desvairadas gentes, como diz Fernão Lopes, Portugal, cuja primeira corte fora franceza, cuja corte de agora era inglezada, adquiria cada vez mais esse caracter de um paiz aberto, como foi Roma no Lacio, preparando-se também para se transformar, como se trans- formou o pequeno estado do Tibre, num império colonial. A casa do infante, patente a quantos havia bons e valiosos no reino, era, porém, sobretudo o asylo dos estrangeiros que cooperavam com elle na sua empreza absorvente. Dava-lhes mais acolhimento ainda do que aos nacionaes; chàmava-os, premiava-os, para que viessem iniciar-nos em todos os seus segredos, e armar-nos com todos os recursos necessários á missão que via desenhar-se no mappa immenso do mar desenrolado diante de Portugal. E n'esta religião ardente da sciencia, o infante incluía todos os povos, até os judeus, e todas as artes, até a medicina, que n'esses tempos era apanágio d^lles. Quando, em 143 1, se reformou a Univer- sidade de D. Diniz, por influencia e sob a direcção do infante, creou elle uma cadeira de medicina, destinando-lhe 64 Os filhos de D. João I uma sala em que mandou pintar a imagem de Galeno1. E como a Universidade «non tinha casas próprias em que lessem e fezessem seus autos, antes andava sempre por casas alheyas, e de aluguer, como cousa desabrigada, e desalojada», comprou e deu-lhe um prédio na freguezia de S. Thomé de Lisboa. Em 1448 consignou o subsidio de doze marcos de prata annuaes, tirados das rendas da Ma- deira, para a cadeira de prima de theologia2. Por tudo isto, as gentes do nosso reino traziam em vocábulo que os grandes trabalhos d^ste príncipe quebrantavam as altezas dos montes3. Assim que voltou de Ceuta, em i5i8, tinha vinte e quatro annos, começou a realisar o seu plano. Obtivera informações ou noticias dos mouros de Marrocos acerca dos regiões austraes da Africa? Talvez; e sabe-se que a sua idéa desde logo consistiu em reconhecer a costa para o sul, por meio de expedições maritimas, ao mesmo tempo que as cam- panhas de Africa, iniciadas em Ceuta com tão grande for- tuna, iriam transferindo o império marroquino das mãos dos mouros para as dos portuguezes. Não consentira o pae que tomasse Gibraltar; nem lhe permittiria que se lan- çasse neutra empreza aventurosa como a de Ceuta, porque estava já com os pés para a cova. Mas elle era moço, re- servado e persistente. Esperava. As circumstancias mu- dariam. Traçou, portanto, as linhas da segunda metade do pensa- mento que o absorvia. Foi pousar no Promontório Sacro. Tinha comsigo dois escudeiros e as suas barcas, chegadas com elles de Ceuta. Ruminava uma idéa, e viam-lhe esse parecer esquivo que afastava. Concentrado e meditativo, 1 Max. Lemos, A med. em Portugal; diss. 1881, Porto. 2 J. S. Ribeiro, Hist. dos estabel. scientif. litt. e art. de Portugal, 1, 3 1 . 3 V. os traços elementares do retrato do infante em Azurara, Conq. da Guiné, iv. — Barros (Dec. I, 1, 16) apenas reproduz e amplifica. A villa do Infante 65 amadurecia o seu projecto. Até que um dia, levantando-se da cama, num Ímpeto de decisão terminante, mandou armar as barcas e aos escudeiros que partissem para o sul, ao longo da costa marroquina . . . Impressionada a gente com o arrebatamento violento do infante, attribuia-o a uma revelação milagrosa1. Queria saber que terras se escon- diam para longe, encobertas no manto cerúleo das ondas \ e que verdade havia no que ouvira acerca dos árabes do de- serto e dos reinos dos jolofos, perto da Guiné. Perdeu-se a barca na vastidão do mar, e as correntes, desviando-a das costas, as correntes e os ventos, lançaram-na contra uma ilha a que chamaram Porto Santo. Voltaram a dar conta do achado, instando com o infante para que a mandasse povoar2. Este resultado era imprevisto: não entrava nos seus pla- nos, voltados para leste. Surgiam ilhas a oeste! É natural que ouvisse fallar dessas ilhas do Atlântico em Ceuta, e das peregrinações do xerife Edrisi, ahi nascido pelos íins do século xi, e que, fugindo á perseguição do Mahdi fati- mita, fora parar á Sicilia, onde o rei Rogério o acolhera, encarregando-o de codificar os materiaes geographicos ac- cumulados durante quinze annos. Talvez até visse algum traslado d'esse livro e as obras posteriores de Masudi e Ibn Said, que também contavam como o mundo acabava nas sombras do Mar Tenebroso, desfeito em vapores e lodo liquido, para alem da Nigricia, onde os árabes chegavam por terra em caravanas, indo os architectos de Granada dirigir obras em Timbocotu, sobre o Niger. Mais recentes, os geographos árabes do século xiv, Abulfeda e Albyruny, davam noticia da navegação da costa oriental de Africa até Sofala; e Bakui, já da era de 1403, e Ibn Fathima des- creviam a costa occidental até Arguim3. Como terminava, porém, esse continente africano? Alongava-se em cunha, ou » Barros, Dec. 7, 1, 2. 2 Azurara, Conq. de Guiné, cxwiu. 3 Santarém, Priorité des decouv., etc. ()(3 Os filhos de D. João I abria-se em leque, para o interior dos mares do sul? Acabava o mundo, ou havia uma passagem? Eis-ahi a rasão das preoccupações do infante, que o tra- ziam agreste e mal disposto. O achado da ilha de Porto Santo, acaso identificada com as Fortunatas dos antigos, as modernas Canárias, confirmou-lhe a verdade da lenda do xerife Edrisi, na sua descripção de Lisboa, quando pinta a cidade antes de ser portugueza, assente ao norte do rio que os árabes chamavam Taga: o rio que vem desde To- laitola (Toledo), abrindo-se em frente de Medina-Lisboa, num golfo de seis milhas de largura, onde entra o fluxo e refluxo das marés. Na margem fronteira do rio ficava o Castello da Mina (Hisn al-Mardan, Almada), assim chamado, porque nas praias depositava o Tejo muito oiro de Tibar, oiro puro em palhetas. Também nos reinos dos jolofos, pensava o infante, havia oiro, que o Tejo não produzia já; e esse oiro, tomando proporções phantasticas, allucinava-lhe a imaginação, como aos alchimistas dobrados anciosamente sobre fornos, cadinhos e retortas. O seu laboratório, porém, era mais vasto, mais amplo e cheio de sol: era o mundo, escondido para alem da campina azul dos mares. De Lisboa, conta Edrisi, partiram os almogarriruns, aventureiros valentes do mar, em procura do segredo do oceano; e para memoria da viagem desses argonautas árabes, havia na cidade mourisca, próximo da Alhama- Darab, rua do Banho, a rua chamada dos Almogarriruns. A lenda era esta: Reuniram-se oito primos-irmaos, e, armando uma nau de carga, juntaram n'ella mantimentos para muitos mezes, e saíram a barra do Tejo levados por um leste fresco. Na- vegando onze dias com fortuna, chegaram a certo ponto do mar em que as aguas eram grossas, cheiravam mal, e havia fortes correntes. Começava a ser escuro como breu. Receando naufragar, rumaram para o sul; e depois de doze dias de viagem foram dar a Gezirath al-Ganem, a ilha dos gados ou dos carneiros, assim chamada pelos innumeros rebanhos que ahi andavam sem pastor. Aportaram, desem- A villa do Infante 67 barcaram, encontrando uma fonte de agua crystallina que nascia á sombra de uma figueira silvestre. Mataram algumas rezes; mas a carne era por tal forma amarga que se não podia comer; guardando as pelles, seguiram no rumo do sul, achando ao cabo de doze dias outra ilha com casas e campos lavrados. Desembarcaram, sendo logo assaltados por gente armada com dardos que os prendeu e levou por mar a uma cidade, onde os homens eram vermelhos, altos, de cabellos compridos, mas raros, e as mulheres mara- vilhosamente formosas. Três dias os tiveram presos, e ao quarto veiu ter com elles um homem que fallava árabe, perguntando-lhes quem eram, d'onde vinham e a que vinham. Contaram-lhes a sua histo- ria, e o interprete do rei prometteu-lhes bom despacho. Ao outro dia foram á corte, e o rei fez-lhes as mesmas pergun- tas do seu trugiman1. Dizendo elles que tinham partido com o desejo de saber a verdade das relações maravilhosas que corriam, o rei mandou, sorrindo, observar-lhes que já seu pae ordenara se reconhecesse este mar em toda a sua ex- tensão; e assim foi, durante um mez, até que, faltando a luz, voltaram os mareantes sem proveito da viagem. Or- denou mais o rei ao seu trugiman que lhes desse segurança para regressarem a suas terras. Esperaram no cárcere pela volta da monção occidental, e quando chegou, vendaram-lhes os olhos e embarcaram-nos; e ao cabo de três dias e três noites de navegação plácida, deixaram-nos n^ma praia. Nasceu o sol, e elles, maltratados e cheios de afflicção, alegraram-se, parecendo-lhes ouvir vo- zes humanas. Gritaram em coro por soccorro, acudindo-lhes com etíeito gente a fallar árabe, que os desatou, porque es- tavam amarrados. E um dos que chegaram perguntou-lhes : Sabeis quanto distaes da vossa terra? — Não; responderam elles. — Pois entre vós e a vossa terra ha o espaço de dois mezes. — Wâ asa/i! ai, dor minha! exclamou o principal 1 Dragoman (drogman) em turco e persa : secretario, ministro ou interprete do soberano. 68 Os Ji lhos de D. João I d'elles. E d'ahi íicou a chamar-se Asafy, que é Mersa, o logar, ultimo da costa do Magreb1. Asafy, ou Safy, está na costa de Marrocos em 32° 20'; as Canárias, mais ao sul, entre 27o 3o' e 29o 40'. Porventura no século xi a oceu- pação dos árabes não descia alem d'este ponto no litoral do occidente africano. Depois, no tempo de Affonso IV, entre os annos de 1 33 1 e 34, outras barcas de Lisboa, corria que tinham chegado ás Canárias2; e mais tarde, em 1393, havia apenas vinte e cinco annos, uns mareantes da Biscaya, de Guipuzcoa e de Sevilha tinham de lá voltado, trazendo a Henrique III de Castella uma leva de captivos e muitas pelles, cera e outros géneros. A Teneriffe pozeram o nome de ilha do Inferno, pelo seu vulcão, e alem d'esta ilha tinham visitado outras que denominaram de Lencastre, Graciosa, Fortaventura, e a Palma e a do Ferro3. Quando os escudeiros do infante voltavam, porém, com o achado de Porto Santo, chegavam a Sagres João Gonçal- ves Zarco, fidalgo da casa de D. Henrique, e o piloto João de Morales que trazia de Ceuta e contava, por seu turno, uma historia singular. Em 1416, havia quatro annos, mor- 1 V. no App. A. a traducção da lenda e os extractos referentes ás ilhas atlânticas. 2 Pôde dizer-se que, desde o tempo dos phenicios, as Canárias nunca deixaram de ser conhecidas, ao menos por tradição. Vèem-se desenha- das nos mappas mais antigos da idade media, como o de Florença, de 141 7, o do Apocalypse, do século xn, e o de Turim, da mesma data (Cf. Santarém, Hist. de la Cosmogr. 1, 2/5; 11, 126, 1 33 ; 111, 338).Vêem-se também no atlas catalão de 1375, da bibiot. nac. de Paris (fonds an- cien, n. 6816) com esta legenda: Partich luxer den Jac. Ferer per auar ai Riu dei Or, ai gom de Sen Lorens qui es a x de agost, e/o en lany mcccxlvi (Cf. Romey, Hist. d'Espagne, ix, 363). Esta expedição ao rio do Oiro data pois de agosto (dia de S. Lourenço) de 1346. 3 «E enviaron á decir ai Rey (Henrique III) lo que alli fallaron é como eran aquellas islãs ligeras de conquistar si la su merced fuese, é a pequena costa.» — Ayala, Cron. de Enr. IH. — Castella não se oceupou das Canárias, onde no principio do século xv foram estabelecer-se os normandos de João de Bettencourt. A villa do Infante 6g rêra o mestre de Calatrava D. Sancho, infante do Aragão, deixando em testamento uma grossa quantia para o resgate dos captivos. Entre os remidos viera a Ceuta o piloto João de Morales, e ahi conhecera João Gonçalves, a quem com- municou a historia ou lenda de Roberto Machin, perdido na praia de uma ilha encoberta. Seria Porto Santo? Pelos signaes não era. Partiu, pois, segunda expedição, acompa- nhando os da primeira, alem de Zarco, Bartholomeu Peres- trello. Os navegadores eram todos da família do infante, que tivera de ir pessoalmente a Lisboa resolver o pae a permittir a viagem. Na corte, os pregoeiros d'estas novas eram tidos como visionários e recebidos com escarneos. Partiu a segunda expedição, e chegando a Porto Santo, ao observarem o horisonte, para o sul, viam um nevoeiro constante a assignalar a existência de terra. Mas alguns, assustados, diziam com pavor que era a ilha de Cipango por mysterio de Deus encoberta, onde os bispos e o povo de Hespanha se asylaram, fugindo aos sarracenos. O mar estava coalhado de lendas, flocos de espuma da imaginação creadora, que agora o vento fresco da vontade ia desman- chando suecessivamente em fumo . . . Era peccado manifesto, contra a Providencia, querer desvendar o que Deus enco- brira! Mas Zarco, outro phenicio como D. Henrique, ou curioso celta indagador como foi depois D. João de Castro, arrostou com o medo, metteu-se no varinel, e largou. A névoa caía sobre a agua espessamente. Seria esse o mar tenebroso dos almogarriruns de Lisboa? Terra não se via, mas ouvia-se trágica a arrebentação do mar. O varinel seguia no meio da nuvem, desflorando as aguas que se abriam espadanando. Cada vez o rugido das ondas era mais distincto: echoava nas sombras em trovões medonhos, re- boando e subindo ameaçadores. Já se desenhavam, como gigantes ou monstros, as penedias da costa, destacando-se mais negras no negrume da névoa. Os marinheiros, brancos, benziam-se, n'uma agonia. Todo o ar lufava medos. . . De re- pente, viram diante de si estendido um tapete verde de agua clara, c levantando os olhos, um amphitheatro de montes yo Os filhos de D. João I deslumbrantes1. Era a praia, era uma bahia: era a Madeira, esse paraiso, que emergia do mar vestida de matas, engri- naldada de flores, ondina encerrada numa camará de nu- vens desvelada pela vontade audaz de um marinheiro. Perestrello veiu a Lisboa dar conta do achado, Zarco fi- cou; o infante repartiu entre os dois o governo da ilha. Esses primeiros filhos do seu consorcio mystico com o mar, enchendo-o de enthusiasmo, não o desviavam, porém, do propósito de saber como acabava a Africa, e de ganhar para Portugal o império do mundo. O desvairamento da monar- chia universal, folhas sêccas trazidas pelo vento morno da Historia, devia, nos vagos horisontes da imaginação, surgir de um modo remoto ao pensamento do infante; mas como era um espirito positivo e pratico, nem se deixava arrebatar por chimeras, nem pelos sonhos azues da phantasia céltica. As ilhas do mar, encantadas, não o attrahiam como sereias que eram. Da sua torre, no Promontório Sacro, quasi que via as praças de Marrocos, o seu império; e, para o sul, ir descendo, ao longo do mar, a costa, sua esperança. Estava ahi o infante como embarcado2. Dobrado o cabo de S. Vicente, a costa retrahe-se correndo na direcção oes- i Cf. F. Manuel de Mello, Epanaph. m; e Azurara, Conq. de Guiné, Lxxxni. A lenda da descoberta da Madeira pelo inglez Machim, o amante de Anna de Arfet, lenda a que Major, na sua Vida do infante D. Henrique, pretendeu dar foros de authenticidade, está exhaustivamente estudada na nota v da ed. das Saudades da terra (p. 348 a 429), pelo editor, o sr. A. R. de Azevedo. Ahi se dá conta do modo como se formou, e veiu passando em transcripçóes successivas da boca dos chronistas do sé- culo xvi, Galvão e Valentim Fernandes, para a dos poetas e litteratos dos tempos posteriores. 2 «E para poder melhor gosar da vista e curso das estrellas e orbes celestes, escolheu para sua habitação huma montanha no Cabo de S.Vi- cente, porque alli chove poucas vezes e por maravilha se turba a sere- nidade do céo.» — Gaspar Fructuoso, Saudades da terra, livro 11 (ed. 1873), p. 8 e 9. A villa do infante 71 tc-lcste durante uns quatro kilometros; depois irrompe em angulo recto sobre o mar, para o sul, e forma a península escolhida por D. Henrique para o seu estabelecimento. E uma pequena lingua de terra, de superfície penhascosa, sem outra vegetação mais do que uns zimbros enfezados me- drando na areia solta. Conta no seu comprimento um kilo- metro, e na máxima largura meio. De leste fica a enseada scmi-circular, limitada, do lado opposto, por outro morro, que principia a costa em direcção a Lagos. A abertura da enseada medirá também um kilometro. E um pequenino porto, ninho marítimo, que foi de águias ou gaviões do mar. Dahi ensaiaram um voo, ao depois estendido por to- dos os céus do mundo, essas aves de larga envergadura que nas azas brancas levavam marcada a vermelho de sangue a cruz de Christo, brazão de Portugal. Voltada em frente contra Marrocos, como um dardo a investir, a península recebia em cheio as lufadas do sul, que, vindo de Africa, trazem comsigo a própria areia adusta do deserto. Mais de um grão dos que o infante pisava nos seus passeios sombriamente agitados, como na tolda de uma nau em horas de temporal, viera do Sahará arrebatado nas azas do simún, encapellando as ondas que se lhe despedaçavam aos pés. Estava ali como a bordo. Tinha á proa o mar e a Africa-, a bombordo por leste o mar, a enseada; a esti- bordo por oeste o mar ainda, na vastidão immensa do Atlântico. Só á popa, esquecida, segura por uma amarra ao massiço da terra, a nau do infante se prendia a Portugal, balouçando-se destacada do solo e da gente portugueza, como o seu pensamento, ondeante cm longínquos planos, arrebatado pela visão de uma pátria abstracta, estendida num velario azul sobre o mundo inteiro. Foi n'esta lingua de terra, ultima garra adunca do leão portuguez que, estendido de norte a sul ao longo da praia occidental da Hespanha, dormia com a mão avançada sobre o mar da Africa: a bordo d'esta nau, foi que o infante de- cidiu fundar a sua Terça-naval, assim que a empreza de Ceuta ficou rematada. Mas que era a Terça-naval, ou nabal. 72 Os jilhos de D. João I como escrevem os chronistas coevos? Que era essa instal- lação depois chamada Villa do Infante, e sua thebaida á volta da aventura desgraçada de Tanger? Que eram, quando cm pé, as ruinas a que agora chamamos Sagres?. . . Tam- bém o império gerado pelo infante se desmoronou, em rui- nas como a sua villa! A principio, o estabelecimento do cabo de S.Vicente não passava de um pequeno porto de abrigo para as barcas e varineis, que a medo largavam a reconhecer a costa de Africa fronteira. D'estes primeiros ensaios veiu, como vi- mos, a descoberta do archipelago da Madeira (1418-20). D. Henrique installou-se na península, e abriu ahi escola de náutica e cartographia. D. Pedro, de volta das suas viagens (1428), augmentára a bibliotheca do irmão com o livro de Marco Polo veneziano, os mappas de Valseca1 e as obras de Jorge Purbach, que em Vienna ensinou o celebre João 1 Com o livro de Marco Polo trouxe o infante D. Pedro de Veneza um mappa-mundi, onde os últimos resultados da geographia estavam registados. Tinha delineado todo o âmbito da terra, e estava indicado* o cabo da Africa, depois chamado dasTormentas ou da Boa Esperança. Embora não se achasse localisada, nem delineada com exactidão, a «Fronteira de Africa» (assim se denominava) excluía já a idéa árabe, affirmando a existência de uma passagem marítima para o oriente. Viram ainda este mappa António Galvão, o Apostolo das Molucas (i5. . - 1 557), auetor do Tratado dos descobrimentos antigos e modernos, ele. (Lisboa, 1 563) e o dr. Gaspar Fructuoso (i522-i5gi), que no seu livro das Saudades da terra compendiou a historia do descobrimento dos Açores (Cf. Cordeiro, Hist. ins., 11, 2) : viram e descrevem-no con- forme se deixa dito. — Cf. Santos, Mem. sobre dois antigos mappas, etc., nas Mem. de litt. da Academia, viu, 275 a 3o 1. No livro 11 das Saudades da terra (p. 9 da ed. Azevedo), Fructuoso diz : «E por estas rasões e conjecturas que direi adiante e por certo roteiro que dizem achou do tempo dos romanos, e conselho dos cosmographos e homens peritos e experimentados na navegação, desejando estender e alargar os reinos paternos com novas conquistas e descobrimentos, veyo a concluir que se podia navegar de Portugal á índia Oriental pela parte do meyo dia». — O fragmento da obra, publicado pelo sr. Azevedo, é apenas o livro 11, que trata da historia do archipelago da .Madeira. A villa do Infante 73 Muller, de Kõnigsberg, por isso chamado Regiomontano, ou de Monte Régio, auetor do tratado do Triangulo, tra- duetor do Almagesto de Ptolomeu, livros que tanta in- fluencia tiveram depois na cosmographia nacional. Con- tratara o infante em Mayorca mestre Jayme, cartographo e construetor dos rudes instrumentos náuticos do tempo, e nas cartas de marear do mayorquino dia a dia se regis- tavam as observações feitas durante as viagens que se re- petiam constantemente. Mestre Pedro1, o pintor cartographo do infante, ia illuminando a cores os mappas, coalhando-os de signaes symbolicos indicativos dos caracteres da fauna e da flora das regiões visitadas, e dos reinos e noticias recolhidas pelos viajantes, com legendas ingenuamente pie- dosas. O livro de Marco Polo e os mappas de Veneza foram para o infante uma revelação, que a sua fé abraçou com enthusiasmo. A geographia antiga de Ptolomeu, sobre que os árabes tinham construído a rede aérea das suas lendas, caía por terra diante do testemunho ocular do viajante que, em mais de vinte annos de viagens na Ásia, penetrara até á China, descrevendo o Cathay (nome com que no Oriente o império é ainda conhecido), atravessando por elle desde Pekim até ás províncias do extremo sul. Tendo visitado muitos pontos do Indostão, Marco Polo re- velava a existência dos reinos de Bengala e Guzarate, des- crevendo as suas riquezas e poderio. Tinha navegado no oceano indico, recolhendo informações sobre Zipangri ou Cipango, que provavelmente era o Japão; tinha estado em Java e em outras ilhas da Sunda, em Ceylao e na costa do Malabar, até ao golfo de Cambava, indicando os nomes actuaes das suas terras. O mysterio do Oriente desvenda- ra-o esse livro revelador, ao mesmo tempo que os novos mappas attestavam, como o acreditava a fé viva de D. Hen- rique, a passagem que devia haver pelo sul da Africa. 1 A existência de mestre Pedro consta de um doe. da Batalha visto pelo vise. de Juromenha, que o cita na comm. feita a Rackzynski, Les jris en Portugal) ao5. 74 Os filhos de D. João I Nem por isso elle descurava, comtudo, a pescaria mila- grosa dos archipelagos atlânticos. Em 140D abandonara João de Bettencourt as Canárias, de que fora rei1, e, descoberta a Madeira, o infante queria tomar posse d'esse outro archipelago, preparando em 1424 uma frota com dois mil e quinhentos homens para as ir conquistar2. Sobrevieram, porém, complicações do lado de Castella, e D. João I não consentiu, para evitar conflictos ao fim da sua vida longa e afortunada. Entretanto, o estabelecimento do cabo de S. Vicente ia tomando corpo. Havia uma escola, um porto e um pequeno forte. Construiam-se as igrejas de Santa Maria e de Santa Catharina, padroeira dos navegantes3. Na enseada fun- deavam esses navios redondos, pequenos, chamados cara- vellas, que no dizer de Cadamosto, o veneziano, também contratado pelo infante, eram os melhores navios de vela que andavam sobre o mar*. Mais fina, mais rápida, mais obediente á manobra do que as naus boiantes, a caravella, de que as faluas do Tejo nos conservam ainda o typo 1 Hist. de la prem. descouverte et conqueste des Canaries, faite dès l'an 1402, etc. Paris, i63o. 2 Azurara, Conq. de Guiné, lxxix. 3 « Item: estabeleci e ordenei a igreja de Santa Caterina que estaa fora da villa do Iffante. E a capella de santa Maria que estaa dentro em a dita villa.» — Test. do inf. D. Henrique, na Coll. ms. de Pedro Alvares, m; publ. pelo m. de Sousa, na sua Primeira confer., etc. 4 Navegações de Cadam. na Coll. de not. da Acad., 11, 3. — As flores- tas da Madeira concorreram para o progresso das navegações, permit- tindo a construcçao de navios de gávea, como diz Fructuoso, pois até ahi só havia caravellas e varineis. «E na ilha havia tanta quantidade de madeira tão fermosa e rija, que levavam para muitas partes copia de taboas, traves, mastros, que tudo se serrava com engenhos ou serras d'agoa, das quaes ainda hoje ha muitos da banda do norte da mesma ilha ; e n'este tempo, pela muita madeira que dahi levavam para o Reyno, se começara com ella a fazer navios de gávea e castello d'avante, por- que dantes não os havia no Reyno, nem tinham para onde navegar, nem havia mais navios que caravellas do Algarve e barineis em Lis- boa e Porto». — Saudades da terra, p. 65, da ed. Azevedo. .4 villa do Infante ~b inicial, era a gaivota dos bandos alados que largavam das costas portuguezas pairando sobre os mares. Ligeira e dócil, insinuava o seu voo por todos os recessos das costas, roçava ao de leve pelas praias, e partia para o largo, ba- tendo as azas, fugindo rápida como uma setta. De vinte a trinta metros de comprido, com seis ou oito de boca, a caravella de três mastros, sem cestos de gávea nem vergas transversaes, armava latinos em longas vergas obli- quas, pendendo suspensas de uma alça presa no tope dos mastros. Eram como braços de azas que, abertas as velas triangulares, roçavam a base pela amurada, inclinadas no ar as pontas á feição do vento. Corriam com todo elle, girando á sua mercê. Se batia de lado, bolinavam em direitura como se fossem arrazadas em popa; e quando queriam mudar, bas- tava cambar as velas, como fazem as aves com as azas'. Na enseada fundeavam os navios, na praia arrumavam-se os armamentos e equipações. Era um arsenal? Também era: assim o infante lhe chamara terça, ou tercena, do veneziano darcena, que não significava outra cousa2. Era um arsenal, um forte e uma escola náutica, installada n"aquelle ponto «onde combatem ambollos mares, scilicet, o grande mar Oceano com o mar Mediterrâneo3». Vindo das aguas inte- riores, o phenicio levantara em Gades as columnas de Melkart ou Hercules, para marcar o fim do mundo-, e os phenicios de agora erguiam ao lado, num promontório mais distante, uma esculca ou vigia para desmentir os antigos, afifirmando que, em vez de terminar, o mundo, através dos mares, ali começava — n'esse ninho de águias onde ensaiaram o vôo de tantas viagens e de tão dilatadas aventuras! Esta proximidade de Cadix fora intencional no espirito de D. Henrique, por ter o pensamento em Africa, e depois ' Osório, Vida e feitos d'clrci D. Manoel itr. F. M. do Nascimento), i, io morreu o infante, e a villa apenas esboçada, tombou em ruínas ao abandono. E que também se abandonava o largo e fecundo pensamento, só mais tarde restaurado por D. João II. Num intervallo de vinte ou trinta annos, Portugal, na mão de AtíonsoV, com a energia estouvada d^sse príncipe, apenas realisou metade dos planos de D. Henrique: conquistar Marrocos. Mas se essa politica era apenas o primeiro acto no grande drama da conquista do mundo desconhecido! A Villa do Infante caiu em ruinas; porém o seu plano, germinado no seio d'esse ninho marítimo, resurgiu, e soube- se atinai, em 1498, como acabava a Africa e onde ficavam as índias, mais o doirado reino do Preste Joham. A Ter- cena voltou a chamar- se Sacrum, ou Sagres, como hoje se diz: tanto é verdade que só dura o que se enraíza na tra- dição innominada do pristino bruxulear dos povos! Sacrum chamavam, em latim, ao promontório onde velhas gentes vindas das margens do Ana, celtas ao que pretendem, ti- nham n"outras eras levantado um templo. E foi esse o nome que ficou. Derrocaram-se os muros, caíram as casas, dispersaram-se os mappas, bateram azas as caravellas, e as galés, como cys- nes, partiram remando. Ficou só, deserto, sagrado, qual fora antes, o promontório a que as armadas noutro tempo abatiam velas, e onde a lenda mystica do christianismo poz o naufrágio da nau que trazia o cadáver de S. Vicente, guardado por corvos. Mas se a ruina do templo dos celtas sagrara o cabo, se o naufrágio lhe abençoou a tradição pagã, mais sagrado e venerando o tornam as ruinas posteriores da Villa do Infante, berço da nossa epopêa histórica. A reacção que se declarou em 1460, quando o infante morreu, trazia fundas raízes. Não se muda assim o tem- ' Azurara, Conq. de Guine, v. 78 Os filhos de D. João I peramento histórico de um povo até ali rural. A aventura de Ceuta fora tomada como o capricho desculpável e sem consequências de um rei querido e dos lilhos que elle e Por- tugal inteiro adoravam. Mas um capricho não se repete; em aventuras não se prosegue, pondo em perigo o socego e a fortuna da nação. O plano clássico de trocar o arado pelo remo, não quadrava a este povo bisonho de lavradores. A situação era absolutamente idêntica á do Lacio, quando o grande Scipião lançou Roma no caminho das conquistas, apesar dos protestos, apesar dos estorvos, apesar de tudo quanto Catão fez e disse, acclamado por um povo de pe- quenos lavradores, com os seus juizos terra-a-terra, as suas opiniões rasteiras, os seus preconceitos, é verdade, mas também com a solidez do bom-senso, a defender a prefe- rencia da abastança humilde sobre a gloria que é sempre origem de catastrophes. Eternamente os homens hão de de- bater este problema fundamental da vida pratica, retrata- do por Cervantes nos seus typos immortaes de Quixote e Sancho. Terras e maninhos ha no reino para romper e aproveitar, diziam logo do principio, sem perigo do mar, nem despezas desordenadas. Os reis passados d este reino, sempre dos reinos alheios para o seu trouxeram gente a fazer novas po- voações; e elle, o infante, queria levar os naturaes portu- guezes a povoar terras ermas, por tantos perigos de mar, de fome e de sede, como vemos que passam os que lá vão. Certo que outros exemplos lhe dera seu pae, pouco havia, quando fizera doação a Lamberto de Orches dos maninhos de Lavra, junto a Coruche, para que os rompesse e po- voasse, com obrigação de trazer a elle moradores estran- geiros, de Allemanha1. Assim faziam os reis antigos. Assim Guilherme e Roberto de la Corne tinham povoado Athou- guia-dos-francos, e a Lourinhã fora doada a um Jourdan, e a Azambuja povoada por Childe Rolim, eVilla Verde por D. Alardo, e Alcanede e Almada, e depois Villa Franca e 1 Barros, Dec. I, 1, 4. . I tnlla do Infante 711 Montalvo de Sor, para onde Sancho I importara gente da Flandres. A insistência do infante em mandar navios para o sul to- mava-se como uma perfeita loucura, pois o parecer corrente era ainda o dos árabes: de que o mar acabava n\im charco de lodo, consumido pelo calor do fogo, agonisando larga* mente em baixios aparcellados de recifes e sorvedouros. Era esta a opinião de muitos mareantes que voltavam ater- rados das primeiras investidas contra o cabo Bojador. Os murmúrios cresciam, e considerava-se uma rematada insen- satez, essa teima contra uma impossibilidade manifesta e «tão estreita, pela qual julgavam que nunca podiam vir a fim». Mas, logo eme se começaram a ver os primeiros re- sultados da colonisaçáo da Madeira, ao mesmo tempo que Gil Eannes voltava afinal, depois de ter dobrado o terrível cabo, com a noticia de que o mar não terminava ali 1 14^41; assim que as gentes iam e vinham da Madeira em muito maior abundância, íam-se já calando os maldizentes, e com vozes baixas começavam a louvar o que antes publicamente detestavam'. D. João I morrera; e nesse próprio anno (i433) o rei D. Duarte doava ao irmão «em todolos dias da sua vida as nossas ilhas, convém a saber, a ilha da Madeira, Porto Santo e Deserta, com todolos os direitos e rendas d'ellas, assim como as nós de direito havemos e devemos de haver, com sua jurisdicção eivei e crime, salvo em sentença de morte ou talhamento de membros», etc.2 A colonisaçáo da Ma- deira progredia de um modo brilhante. Em 1445, vinte e cinco annos depois da descoberta, Cadamosto, visitando-a, encontrou lá quatro povoações: Machico, Santa Cruz, Fun- chal e Camará de Lobos, com oitocentos habitantes, nos quaes cem de cavallo. As lavouras, que a principio chega- vam a dar sessenta sementes, davam ainda trinta e qua- > Azurara, Conq. de Guine, xvm. 2 V. a Carta de doação, em Sousa, Hist. geneal. Provas, 1, 442. Cin- tra, ib de setembro de 1433. (So Os filhos de D. João I renta. As plantas de canna de assucar e vinha que o infante para lá mandara, propagavam e produziam admiravelmen- te1. A Madeira já rendia quatrocentos cântaros venezianos de assucar, que são quatrocentos e sessenta e oito quintaes. O cedro e o teixo das matas infinitas da ilha, que d'ellas tirara o nome, eram as preferidas para o corte. Havia nu- merosos engenhos de serrar. A terra era um jardim, a gente achava-se rica e feliz: já tinham um convento de frades2. Começava a crescer a vinha3. Os sonhos e as esperanças do infante no seu observatório de Sagres íam-se realisando. Via surgir do mar uma terra sua, povoada, arroteada e plantada por sua arte, com lavras exóticas e novas. Via levantar-se do lado da Africa o tre- mendo cabo já despido dos seus mysterios e terrores. O mar não acabava ali, não! a estrada era franca, o caminho pa- tente, ao longo da costa, para os reinos obscuros dos jolofos. Incapaz de alegrias infantis, a sua face arrugava-se com o êxito, medindo o alcance do que havia a consummar, e não o valor do que estava feito. Ganhava esforço com o caminho i «O Infante D. Henrique, como era Mestre e Governador do Mes- trado de Christo, em cuja ordem cabia esta ilha da Madeira, como Ad- ministrador d'ella, mandou a Cecília buscar canas de assucar para se plantarem na ilha, pela fama que tinha das muitas ribeiras e agoas que nella havia; e com ellas mandou vir mestres pêra temperamento do assucar, se as canas nella se dessem; e esta planta multiplicou de ma- neira na terra, que he o assucar delia o melhor que agora se sabe no mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enrequecido muitos mercadores forasteiros e boa parte dos moradores da terra.» — Sauda- des da terra, p. 65 da ed. Azevedo. «Do primeiro assucar que se vendeo na Ilha da Madeira foi da Villa de Machico, onde se começou a fazer: recolheram treze arrobas delle, que se vendeo cada arroba por cinco cruzados, e mais se comprou por mostra para se ver a fermosura delle que por mercadoria.» — Ibid. p. 1 13. 2 Naveg. de Cadam. 9 a 1 1 ; Azurara, Conq. de Guine, lxxxiii. 3 «E de Cândia mandou trazer bacellos de Malvasia para se planta- rem. . . O vinho malvasia he o melhor que se acha no universo e se leva para a índia e para muitas partes do mundo.» — Saudades da terra, p. 11 3. A villa do Infante 81 andado. E assim como os seus mareantes iam marcando a passagem ao longo da costa africana, levantando cruzes de madeira, signaes symbolicos de suzerania (que D. João II mandou ao depois substituir por padrões de pedra ), assim no seu espirito insaciável cada passo andado ficava impresso como um vaticínio. Morrera o pae com setenta e sete annos. Não é natural que o infante lhe chorasse muito o passamento. A doçura e as impressões suaves da saudade não commoviam o seu gé- nio duro, temperado como aço na chamma de um desígnio. D. João I estava já velho de mais para comprehender o al- cance dos seus projectos e abalançar-se a aventura dos seus planos. Impedíra-o de conquistar Gibraltar; não o deixara ir tomar conta das Canárias. Sem a gente e os seus recursos próprios e da ordem de Ghristo, cujo mestrado tinha, não se haveria feito o pouco que se fizera. E podíamos ter já na mão Tanger, Alcácer, Azamor, Arzilla: toda a costa de Marro- cos! Desesperava-se por não quererem ver o alcance da to- mada de Ceuta, e considerarem esse feito apenas como uma façanha de cavallaria. A cavallaria de agora era outra, com- pletamente diversa! Forte empreza, a tomada de Ceuta! quando cumpria descobrir o mundo. E afigurava-se-lhe tão fácil, tão simples! Parecia incrível que não entrasse pelos olhos de toda a gente a illuminação que lhe enchia o cére- bro de relâmpagos e auroras deslumbrantes. Ceuta fora nada, um instante: oito victimas só. . . E agora que o irmão, bom, passivo, dócil, estava no throno, elle tyrannisava-o para que não fizesse como o pae, dando ouvidos aos conselhos da gente sem fé na sua estrella e no magnifico futuro que via abrir-se a Portugal. Ruminava já o plano de Tanger? Provavelmente. Em todo o caso, qualquer que fosse o ponto escolhido, estava decidido a em- penhar tudo, para que o novo reinado entrasse abertamente na empreza da conquista de Marrocos, parallela do progresso das navegações austraes. i Barros, Dec. I, m, 3. 82 Os JilJios de D. João I Para ir enviando seguidamente pesquisadores a reconhe- cer a costa austral africana, bastavam-lhe os recursos de que dispunha; mas, para a conquista de Marrocos, era mis- ter que o rei e o reino abraçassem com decisão o seu plano, accendendo-se n'essa própria fé em que D. Henrique sentia consumir-se. IV AS VIAGENS DO INFANTE D. PEDRO om Pedro era inteiramente outro homem : contem- plativo, cavalheiresco, benigno, prudente, sábio. Era louro. Tinha nas veias o sangue da mãe, e no rosto assignalada a ascendência. Assim que voltou de Ceuta, formou logo o pensamento de uma grande viagem, piedosa e politica, para sua instrucção, contando vagamente com aventuras quixotescas, em que cumprisse o legado da mãe moribunda de defender as donas e donzellas, planeando ir á moda christã visitar o Santo Sepulchro, e de lá inter- nar-se, quanto podesse, na direcção mal determinada dos rei- nos do Preste Joham das índias, conforme as instantes re- commendações do irmão que explorava tudo em beneficio da sua idéa. Estudasse o caminho por esse lado, emquanto elle, D. Henrique, ia iniciar em Sagres as viagens de ex- ploração do mar. Trouxesse-lhe de fora tudo o que por lá en- contrasse acerca da sciencia dos mappas e das derrotas dos genovezes e venezianos, tão celebradas no mundo de então. S4 Os filhos de D. João I A terra, cuja extensão se calculava, pois se lhe conhecia já a redondeza, apparecia, porém, como um vasto enigma e o maior problema do tempo. Acordada a curiosidade desde os primeiros movimentos das Cruzadas, a fé excitava-a com o empenho de christianisar todas as regiões do mundo. Parece-nos elle hoje mesquinho para o illimitado das nossas cogitações e para a energia dos nossos meios de acção. Falíamos instantaneamente de um extremo a outro do globo, percorremos em breves mezes toda a sua amplitude, conhe- cemol-o em todos os seus promenores, exploràmol-o na sua superfície inteira: pôde dizer-se que realisámos o velho sym- bolo religioso e imperial, aguentando-o sobre a mão, e so- pesando-o! Por isso mesmo lhe tomamos cada vez maior desgosto. Mas, no principio do século xv, o mundo tinha um encanto de sereia, uma seducção de mysterio, uma attracção de eni- gma. Nada se sabia ao certo dos mares, nem das terras, nem das gentes, fora de um acanhado recanto em volta do Medi- terrâneo; e tinham passado os tempos obscuros da Idade- média, em que os povos e os principes, cada qual no estreito âmbito de seus paizes, viviam absorvidos pelo cuidado ex- clusivo da organisação interna. Acalmada a crise que re- volucionara as populações da Europa latina, desabrochava a flor da curiosidade aryana, encantadora, mas venenosa: essa anciã de saber, que é ao mesmo tempo a nossa coroa e o nosso supplicio! D. Pedro tinha somente dois annos mais do que D. Hen- rique: vinte e quatro, em 141 6, á volta de Ceuta, quando o rei lhe deu o ducado de Coimbra. Impaciente por partir para a sua jornada, teve de a adiar por causa das compli- cações de 1417 com Castella, e em seguida pela expedição a Ceuta em 1418, onde o pae de modo algum lhe consentiu que fosse1. N^sse próprio anno partiu, porém, necessaria- 1 «... Sabendo como o infante D. Henrique, seu irmão, tinha já licença de seu padre, temendo-se que porque a pedisse, que lhe não seria dada, o mais escusadamente que poude se veiu á cidade de Lis- As viagens do Infante D. Pedro 85 mente', pois no principio do seguinte vamos encontral-o na Hungria. Levava o infante comsigo doze companheiros, em me- moria dos doze discípulos de Christo, diz piedosamente o chronista da viagem2; mas este numero sagrado era também clássico nas historias de Cavallaria desde os tempos de Carlos Magno. Fossem doze, ou os que fossem, partiram direito aValladolid, onde então estava a corte de Castella. O rei D. João II, filho de Catharina de Lencastre, era primo-irmão do infante, filho de D. Filippa; pois o casa- mento de Henrique III fora a solução que por fim tinham tido as pretensões do duque de Lencastre á herança da coroa castelhana. Faltavam dois annos apenas fem 1418) para que o rei João II tomasse aos dezoito as rédeas do governo. Durante o largo período da menoridade do rei, governara até 1412, como regente o infante D. Fernando, eleito nesse anno para a coroa de Aragão, vaga pela morte do rei obeso Martinho em quem se esgotava a linhagem dos velhos condes de Barcelona, e que acabou tristemente boa com intenção de se metter em algum dos navios com fingimento de servidor de algum outro capitão.» — Confessou-se primeiro, mas o confessor, num sermão, encommendou-o a Deus, e, divulgando as- sim o segredo, o rei prohibiu-lhe o ir, destacando-o em companhia de D. Duarte, para o Algarve com as reservas, conforme vimos. — Azurara; Chron. do conde D. Pedro de Menejes; 11, 77. 1 A partida de D. Pedro não pôde pòr-se, nem em 1424 segundo a tradição, nem em 1416 segundo affirma, sem provas, o abb. de Castro no seu Resumo hist. da vida, acções, morte e jazigo do inf. D. Pedro (Lisboa, 1843), pois o cerco de Ceuta foi em 141S. Azurara diz expres- samente : « Três annos, ou poucos dias menos, durou a cidade e os Fronteiros d'ella obrando estas cousas, no qual tempo, posto que os Mouros nom viessem realmente cercar a cidade, nom creaes que fosse por mingoa de vontade». — Ibid., 1, 62.. 2 A descripção da viagem consta de um folheto que entrou na litte- ratura popular de cordel, chamado Livro (ou auto, como dizia a i.' ed. de 1544) do Infante D. Pedro de Portugal, o qual andou as set te par- tidas (partes) d<> mundo, feito por Gomes de Santo Estevam, um dos do^e que foram na sua companhia.— Cf. Innoc, Dicc. Bibliogr., 11 1, 141.-- V. o app. B, no fim do vol. 86 Os Jí lhos de D. João I das pimentas que tomava, a ver se conseguia ter succes- são. Quatro annos apenas, de 141 2 a 1416, durou o reinado aragonez de D. Fernando, que na regência de Castella se enchera de gloria, batendo o granadino na campanha de 1407-1408, e tomando-lhe Antequera em 1410, depois de concluída a tregoa. Seu filho Affonso V succedeu-lhe; e as duas famílias reinantes, de Castella e do Aragão, tão estrei- tamente aparentadas, mais se ligaram ainda pelo casamento de João II com a prima, Maria de Aragão, irmã da que depois foi esposa do nosso rei D. Duarte. Mas se, com este casamento do rei de Castella, as duas grandes monarchias da Península andaram mais um passo no caminho da fusão, realisada ao depois em i5o4, foi também essa a causa das graves perturbações que agitaram o reinado de João II. Logo que principiou a governar, o rei entregou-se de corpo e alma a D. Álvaro de Luna (de quem mais tarde fallaremos com vagar), que fez condestavel, conde de Santo Estevam, dando-lhe seis cidades e setenta fortalezas; isto, quando os irmãos da rainha Maria, os in- fantes de Aragão, Henrique e João (que, no próprio anno do casamento da irmã, herdara pela esposa a coroa de Na- varra) imaginavam ter subido também ao throno de Cas- tella1. Estas deploráveis historias que de futuro se haviam de tecer tão intimamente na trama dos acontecimentos de Por- tugal durante a regência do infante D. Pedro, não agitavam, porém, ainda a corte castelhana, onde o condestavel Álvaro de Luna ia reinar omnipotente, na occasião em que o infante por lá passou a caminho de Jerusalém. D'essa visita vieram decerto as relações de estreita amisade que ligaram D. Pedro ao condestavel de Castella, determinando, vinte e oito annos mais tarde, o segundo casamento de João II, com a filha do infante D. João, indigitada esposa do nosso Affonso V pelos inimigos de D. Pedro. Ch. Romey, Hist. d'Espagne, ix, 16 e 17, As viagens do Infante I). Pedro 87 Todas essas historias distantes, ainda estavam, repetimos, no embryão dos futuros imprevistos, quando o moço infante e a sua cavalgada deixavam galhardamente a corte caste- lhana, depois de apertada a atnisade com o rei, rapaz de dezeseis annos, e com o seu companheiro querido e futuro omnipotente condestavel. Um e outro acompanharam os ca- valleiros andantes até uma légua fora de Yalladolid1. Tinham dado ao infante, alem de um grosso presente de vinte e cinco mil peças de oiro, um thesouro maior ainda no interprete, ou lingua, Garcia Ramires, pratico no latim, no grego e nas línguas d'esse Oriente remoto, o turco e o hebreu, o chal- daico e o árabe, para onde os cavalleiros se propunham jornadear. Ao lado do infante, seu fiel Achates, galopava Álvaro Vaz de Almada, fadado para um destino igualmente cruel. Desta jornada, agora começada, principia a amisade constante que ligou em vida Álvaro Vaz a D. Pedro, ami- sade estreita até ao ponto de ambos jurarem acabar juntos, conforme vieram a morrer no dia funesto de Alfarrobeira. Álvaro Vaz, mais idoso, já tinha corrido mundo, e por- ventura acompanhava o infante como seu mentor. Era filho de João Annes de Almada, o que no tempo dos reis D. Pedro e D. Fernando desempenhara logares eminentes. Lisboa devia ao pae de Álvaro Vaz o seu novo cinto de muralhas. Duas vezes embaixador em cortes entrangeiras, João Annes, que morreu centenário, legou ao filho o amor das viagens. Dois annos haveria apenas que Álvaro Vaz voltara ao reino coberto de gloria. Batalhara pelos inglezes em Azin- court, no próprio anno da tomada de Ceuta, e o rei Hen- rique V dera-lhe o condado de Avranches2, na marka fran- 1 Na lição castelhana da lenda, o infante, de Valladolid, teria vindo a Lisboa, embarcando aqui para Veneza, directamente. — V. o app. B, no fim do vol. Avranches, cidade antiga que os romanos chamavam Inpena e depois Abrincatui, é hoje cabeça de comarca (cirrondissement) do de- partamento da Mancha. Tomada por João-sem-Terra e arrasada em 88 Os filhos de D. João I ceza, com a ordem da Jarreteira. Essas guerras de França, começadas havia três annos, tinham de durar meio século, e talvez os viajantes partissem com idéa de também intervir íVellas. Álvaro Vaz, cavalgando ao lado do infante, contar- lhe-ía os casos de bravura presenceados no dia famoso de Azincourt-, e D. Pedro, em volta, lhe diria como fora a jor- nada de Ceuta n^sse próprio anno. Ambos tinham já um passado guerreiro, e a fama de Álvaro Vaz era tal, que o rei Aífonso de Nápoles e seu irmão o infante D. Henrique de Aragão, tendo vindo a Portugal, diziam «terra de bom pão e bom capitão», referindo-se ao companheiro de D. Pedro. No bom capitão via-se alem d'isso o homem mais alegre do mundo, com uma queda pronunciada para os ditos ou re- bollarias, extravagantemente divertidos. O destino immediato da viagem era a corte do imperador Sigismundo da Hungria, nos confins extremos da Europa, 1203, o santo rei Luiz fortificou-a de novo; mas logo no principio das guerras iniciadas em 141 5 voltou a cair nas mãos dos inglezes, que a tiveram até 1450. O condado de Álvaro Vaz era, pois, inglez, apesar de localisado no continente em França; nem se concebe que, estando em guerra os dois reinos, um homem fosse ao mesmo tempo feito conde de Avran- ches pelo rei de França, e cavalleiro da Jarreteira pelo de Inglaterra. Quem lhe deu, portanto, o titulo foi Henrique V, segundo rei da casa de Lencastre, e não Carlos VII, como diz erradamente o sr. Major na sua Vida do inf. D. Henrique, erro que passou para a traducção portu- gueza do sr. F. Brandão (Lisboa, 1876), p. 287. Ferdinand Denis, no seu Portugal pittor., p. 86, diz que Luiz XI re- conheceu officialmente a doação do condado, concedendo ao titular uma renda pecuniária. O reinado de Luiz XI vae de 1461 a 1483, e por- tanto o reconhecimento teria sido feito aos descendentes de Álvaro Vaz, e não a elle, que morreu em 1449. Era corrente na idade-media darem os reis aos soldados de fortuna que vinham combater com elles praças fronteiriças para as guardarem e defenderem. Henrique V deu a Álvaro Vaz a fronteira ou marka de Avranches contra a França, como vamos ver que o rei da Hungria dá ao infante D. Pedro a marka de Treviso, sobre a Itália, contra Veneza. Abundam exemplos, e o primeiro d'elles é, para nós, o próprio con- dado de Portugal, marka dos mouros doada por Affonso VI de Leão ao conde D. Henrique seu genro. As viagens do Infante D. Pedro 89 baluarte das nações christans batido pela assolação dos tur- cos. Três annos depois de Sigismundo subir ao throno da Hungria, em i38q, succedera a primeira invasão e o desas- tre medonho de Cassovia. Sete annos depois, em 1396, os húngaros eram de novo derrotados por Bajazet, e a onda turca alastrava-se pela Moldávia e pela Wallachia. Houve então uma pausa de seis annos, durante os quaes sobre os turcos vieram os tártaros de Tamerlan, que no dia terrível de Angora (1402) aprisionaram o sultão Bajazet. A herança do principado levantou cruéis guerras civis entre os filhos do sultão captivo, até que Mahomet reconstituiu a unidade do império, e, com a victoria magnifica de Semendria, em 141 2, abriu a nova era de expansão da Turquia. Sigismundo, que ainda no anno anterior, eleito para a vigaria do Império, descera á Itália com um exercito de vinte mil homens para bater o Malatesta1, viu-se comple- tamente absorvido pela questão do Oriente. No próprio anno de Semendria, seu irmão Wenceslao transmitte-lhe a coroa imperial2, e morrendo, em 141Q, deixa-lhe a da Bohe- mia3. Todo o peso do governo do mundo oriental, amea- çado pelo turco, se accumulava sobre os hombros de Si- gismundo. Em taes condições, recebia a visita do infante de Portugal, vindo das terras longinquas de Hcspanha, acompanhado por uma plêiade de cavalleiros, como Álvaro Vaz, Álvaro Gonçalves de Athayde, e outros de que a his- toria não reza os nomes. Collocavam-se ao serviço do im- 1 (141 1) «Sigismundus IU5 imperator Romam ascendit cum XIIm equi- tum et VIII1" peditum, quos in Venetos mittit cui exercitui perVenetis occurrebat Karolus Malatesta.» — Chron. de Jean Brcmdon (Coll. das chron. relat. á hist. da Bélgica), Brux., 1870; p. 1 56. 2 (14 12) «Hiis diebus, Venzelaus, rex Bohemiae, império resignat, et concordi electorum consilio, rex Hungariae, Sigismundus, frater ejus, quia antea vicarius fuerat imperii, imperator etheitur.» — Ibid., p. 161. 3 (1410) «Hoc anno Sigismundus imperator Wenceslao fratre suo mortuo regnum Bohemiae ad se traxit; et hic Sigismundus duas filias genuit, quarum unam cepit rex Poloniae, aliam Albertus dux Austriae sénior.» — Gilles de Roye, Chron. 179. 90 Os filhos de D. João I perador para batalharem assoldadados nos seus exércitos1, e um tal auxilio não podia, nem devia engeitar-se. De bra- ços abertos os acolheu Sigismundo, concedendo ao infante, com uma pensão annual de vinte mil ducados ou florins de Hungria, o feudo da marka de Treviso, governo em que Álvaro Gonçalves de Athayde logo foi investido2. Guardada por tal forma, contra Veneza, essa fronteira occidental do império, o infante ia com o imperador ajudal-o nas suas campanhas. A marka ou ducado fronteiriço de Treviso, entre a Itália oriental e os paizes que vieram a ficar á Áustria, estende-se pelas planicies de entre o littoral veneto, no fundo do Adriático, e os primeiros socalcos da cordilheira alpestre. Na guerra de i334, terminada quatro annos depois, guerra em que as republicas da alta Itália se alliaram contra Mi- lão, cujo Scala ambicionava imperar até ao Adriático, Ve- neza, ficando com a marka trevisana, ganhou um caracter novo e outras ambições politicas. Pela primeira vez se via potencia também terrestre n'esse valle do Pó tão disputado. As florestas da província annexada davam-lhe madeiras para as suas armadas; e, tendo na mão a estrada commercial do Oriente slavo, nascia a essa potencia marítima a espe- rança de o vir a ser também terrestre3. Durou pouco esta ambição. Depois de successivas guer- ras que não vem para aqui referir, Veneza, esmagada pela paz de i38i, tendo de dar sete mil ducados de pensão an- nual á Hungria, tendo de entregar Tenedos ao duque de Saboya, tendo de restituir a Pádua o que lhe tomara, e de libertar Muco, Mucolano e Trieste que eram do patriarcha de Aquilea: Veneza cedeu Treviso ao duque de Áustria 1 «Vir magnorum operum & qui olim sub caesare Sigismundo sti- pendia faciens non parvam sibi gloriam in Turcos pugnando para- verat.» — ./En. Silv. Piccol., Oper. Hist. Europa, p. 445. 2 V. os doce. no App. C, no fim do vol. 3 Cf. Dr. Leo e Botta, Hist. de Itália, na trad. Dochez (Paris, 1844), 1, 538-9. As viagens do Infante D. Pedro 91 para elle poder por ahi continuar durante três annos ainda a sua guerra com Pádua1. Depois o duque vendeu as suas possessões italianas ao rei da Hungria2, e foi assim que este pôde conferir ao infante D. Pedro o feudo da marka tre- visana3. Logo no anno de 1419, o infante foi com o imperador Si- gismundo na sua campanha contra os hussitas. Estava com 1 Verei, Storia delia marca Trevigiana; xvi, 6-63. 2 Leo-Botta, ibid. 549. 3 Vê-se do segundo dos doce. no App. C, que, em 1448, o infante, ao tempo regente de Portugal, enviou a Allemanha, como seus procu- radores e embaixadores, João Telles, cavalleiro de sua casa, e Braz Affonso, bacharel em direito canónico, para reivindicarem o feudo de Treviso, que é confirmado em Neustadt pelo imperador Frederico III, ficando João Telles como administrador da marka. Por Braz Affonso enviou Eneas Silvio, que depois foi o pontífice Pio II, a carta sem data que se encontra nas suas obras, e a que d'este modo se determina a epocha: «Jineas Silvius. S. P. D. Domino Lupo de Portugal, Legum Doctori, Fratri óptimo. — Eximie doctor & amice clarissime : Literis tuis quas Basileae suscepi jam annus est non potui tunc respondere, quia mox Caesarem sum secutus, ab eo in secretarium receptus. Postea per quem scriberem nullus affuit tabellarius. Sed revertitus nunc ad do- minum suum Blasius Alfonsi in decretis baccalaurius, qui apud Regiam magestatem infantis Petris Ducis Cornubiae fuit orator. Is si valet hanc meam epistolam tibi reddet, sibi enim commissa est. . . etc. Vale tam mei magis quam a me remotior.» — JEn. Silv., Oper., Epist. x, p. 5o6. Parece que o imperador, não tendo encontrado no infante D. Pedro o auxiliar que esperava, e vendo que elle, em vez de ficar em Allemanha, regressara a Portugal, lhe tinha cassado a concessão da marka. É pelo menos o que diz Eneas Silvio, registrando a renovação do beneficio. «Petrus juventutis suae tempore multum orbis partem migravit, ve- niensque ad Sigismundum caesarem in Hungaria, diu cum eo fuit ac in pluribus bellis contra Turchos multa exhibuit virtutis suae experi- menta: cui pro stipendio viginta millia auri pondo quotannis dabantur. Exin quoque propter egrégia ejus facínora, propterque alia, quae factu- rum se promittebat, marchionatus Trivisanus concessus est; sed postea cum proinissa non adimpleret rursus Sigismundus marchionatus ipsum Venetis concessit. Sed Fridericus demum iterum Petro Infanti mar- chionatum tradidit cum oratores ejus in Áustria venissent.» — JEn. Sylv , De viris illustr., pub. pela Société biblioph. de Stuttgard, 1842. q2 Os filhos de Z). João I ambos o rei da Dinamarca, Erik1. Ás complicações e perigos da invasão dos turcos, juntava-se agora a guerra religiosa no próprio coração da Bohemia, convulsionada pela morte do rei Wenceslao. Herdando-lhe a coroa, o irmão começava o reinado pelo cerco de Praga que João Ziska, o chefe dos hussitas, havia tomado, trucidando o senado inteiro. Quatro ou cinco annos ficou D. Pedro na Allemanha, junto do imperador, acompanhando-o nas campanhas con- stantes, embora obscuras, que durante esse periodo se fe- riram. A guerra dos hussitas só acabou de todo em 1433 muito depois da partida do infante; e a dos turcos dura ainda, e durará até que se apague de todo no mundo cm- lisado o ultimo vestigio das suas eras barbaras. Provavelmente, a monotonia d'essa vida de obscuras batalhas, longe da pátria, e a curiosidade de ver de perto o Oriente sobre que os turcos estendiam a garra: provavel- mente o desejo piedoso de visitar a Terra Santa, e saber porventura alguma cousa acerca das regiões distantes do Preste João, cuja lenda enchia o mundo christão e tanto aguçava a anciã descobridora do infante D. Henrique: tudo isto, provavelmente, fez com que D. Pedro se decidisse a deixar a corte do imperador Sigismundo, e a emprehender a viagem oriental. # Embarcando, em direcção de Crrypre, D. Pedro começava por ahi a viagem da Terra Santa2, seguindo o itinerário ' «Contra vero Zisco ab omni religione ac humanitate destitutus, eo felicius quotidie in Imperatorem bella gerebat. Ericus Rex Daciae, Germanicae & Petrus Lusitaniae regis germanus, quam Hispaniae partem, Portugalliam nunc vocant, ambo domi militiaeque praestantes, cum óptimo equitatu, non nulliusque cohortibus ad Imperatore venere, ut tot bellis circumventum adjuvarem, excitabantur hereticorum saevitia, quam perpeti summum nefas esse censebant.» — Ant. Bonfinii, Rer. Ungaricar. (Hann. 16061, p. 392. 2 V. Itinerário da Terra Sancta, etc, por Fr. Pantaleão Daueiro (Lis- boa, 1596; 2.a ed.) Este itinerário valiosíssimo servir-nos-ha para com- As viagens do Infante D. Pedro o,3 clássico dos Cruzados. Em Nicosia, capital da ilha e corte dos Lusignans, desceu a visitar a rainha. Os Lusignans rei- navam em Ghypre desde 1191, quando Ricardo-coração-de- Leão, depois de conquistar a ilha aos árabes, a dera a essa familia franceza. Acharam a rainha em prantos, porque seu marido, Hugo IV, andava captivo dos egypcios. — Amigos, de que geração sois? perguntava a rainha chorosa. E dizendo-lhe o infante quem era e donde vinha, a triste senhora observou melancolicamente: — Prouvera a Deus que as provindas de Hespanha esti- vessem perto do nosso senhorio, e nos poderamos soccorrer uns aos outros: assim os inimigos da fé seriam menos po- derosos! O turco era n'essa epocha o terror medonho do mundo. Sentiam-no vir, como em séculos distantes se ouvira crescer o trovão aterrador dos cavalleiros de Attila. Toda a metade oriental do Mediterrâneo, para alem da Itália, estava sendo um verdadeiro inferno, desde que o império byzantino come- çara a cair por pedaços das mãos impotentes dos Paleologos. A pobre rainha de Chypre chorava sósinha as consequên- cias de um caso cruel. Em i365 o Lusignan fora incendiar Alexandria aos mamelukos, em cujo poder estava o Egypto, tendo passado por varias mãos depois dos árabes. Em 1424 os mamelukos assaltaram Chypre, tomando e saqueando pletar a narrativa summaria de Gomes de Santo Estevam. Posterior um século, Aveiro visitou a Terra Santa quando ella já tinha passado, com toda a Syria e o Egypto, para o domínio da Turquia, sem por isso sair do regimen musulmano. Fr. Pantaleão seguiu a derrota que depois ficou adoptada, de desembarcar em Jaffa, e subir a Jerusalém por via de Rama (p. 107). D. Pedro foi primeiro ao Cairo, pois a Palestina per- tencia ainda ao Egypto. Esta circumstancia depõe a favor da authentici- dade (parcial, como veremos) da narrativa de Gomes de Santo Estevam. Aveiro não data a sua viagem, mas dizendo que saiu de Roma no pon- tificado de Paulo IV, é fácil affirmar que ella se fez nos annos de i556 a 1559, quasi quarenta antes da impressão do Itinerário, e cento e vinte depois da de D. Pedro. 94 Os filhos de D. João I Famagusta; no anno seguinte tinham voltado, prendendo o rei, que depois fizeram seu tributário. O infante D. Pedro, ao passar em Chypre, em 1425, achou a ilha numa desola- ção e a rainha debulhada em lagrimas1. Largando Chypre e a sua atribulada rainha, foram ao acampamento, ou corte, de Amurat II, sultão dos turcos, em Patras, no golfo de Lepanto2; foram provavelmente com cartas e recommendações de Veneza, pedir sãlvo-conducto para se internarem no Oriente, e obtiveram-no mediante vinte e seis peças de oiro. Amurat commandava os turcos havia quatro annos, tendo em 1421 succedido ao primeiro Mahomet. Datava d'ahi a grandeza actual da Turquia. Alas- trando-se como uma vasta cheia, dominava tudo, desde o Egeo até ao Danúbio, incluindo a Bulgária, a Macedónia, a Thessalia, a Thracia, e impondo a suzerania á Servia, á Walachia, e aos restos miseráveis do império grego, reduzi- dos a Byzancio onde os Paleologos dormitavam. Acampado em frente, em Nicomedia, Amurat II cercou pela segunda vez, em 1423, a cidade de Constantino3; e foi então que se ouviu nos Dardanellos o ribombar surdo dos canhões. Con- stantinopla salvou-se, todavia, pela revolta dos irmãos do sultão, que se levantaram em Nicea, obrigando Amurat a ir lá estrangulal-os. João II pode ainda morrer no seu throno (1448;, porque só ao cabo de vinte e cinco annos Byzancio veiu a cair ás mãos de Mahomet II. 1 O Livro de Gomes de Santo Estevam, que vamos seguindo, tem sido tomado como uma fabula. A nós parece-nos verdadeiro, até certo ponto. Alem de outras provas que se irão vendo, está esta da visita a Chypre, e da rainha afflicta pelo captiveiro do marido. Ora é facto, segundo se vê no texto, que Hugo IV caiu prisioneiro dos egypcios em 1425. 2 O Livro diz que primeiro foram procurar o turco em Mandua (?), e que depois é que foram a Patras. Mandua será Nicomedia? Na versão castelhana os viajantes vão de Veneza a Damasco, de lá regressam a Tróia, na Ásia menor, e é d'ahi que vêem á Grécia. O itinerário da lição portugueza é n'este ponto mais verosímil. V. o app. B, no fim do vol. 3 O primeiro cerco de Constantinopla data de 1397. As viagens do Infante D. Pedro 95 De Patras seguiram os viajantes para Constantinopla, a visitar a magnifica cidade, agora tão abatida no império, mas cada vez mais brilhante no seu luxo, no desvairamento das suas festas e na folia constante do seu viver. Constan- tinopla suecedia a Antiochia, e tem no Paris de hoje um herdeiro, porque todas as civilisações carecem de um cen- tro de gáudio cosmopolita. A cidade, mal saradas ainda as feridas do cerco de 1423, estava prevenida com um triplo cinto de fossos e corcovas, contra o annunciado ataque dos cavalleiros de Rhodes. Em Rhodes, como em Chypre, como na Syria, o movimento das Cruzadas deixara pequenos nú- cleos de nações, formados por gente do norte, e que teriam crescido com os despojos do império byzantino, se os turcos não viessem substituir-se-lhes, destruindo suecessivamente esses ephemeros estados neo-feudaes. Rhodes, conquistada em i3io pelos cavalleiros de S. João de Jerusalém, depois da queda da Syria enrista ás mãos de Saladino (1187J, era o ninho fortificado d^ssa Ordem, denominada depois pela ilha que tiveram até 1479, quando Mahomet II os expulsou de lá. Rhodes fora tomada a Byzancio, e os cavalleiros pen- savam também em herdar Constantinopla, sem nunca pode- rem passar de planos. A velha metrópole do mundo grego, numa caducidade garrida, dormiu socegada atrás dos seus fossos e corcovas. Mas estes aprestos de guerra faziam escassear os manti- mentos: não havia vacca, nem carneiro; comia-se dromedá- rio, o cavallo desse Paris de outras eras ! Partiram por terra. Jornadearam por desertos em que se perderam. O roteiro nota grandes serras cobertas de neve. N'um ponto diz que viam a terra de Jerusalém, neutro que deixavam á mão esquerda o norte da Noruega. Montavam dromedários ao uso da região «e cada dromedário leva quatro homens com todo o necessário para elles: pão, agua, mel, manteiga, figos, passas, com três ou quatro saccos de tâmaras, que é o man- timento da cavalgadura». Tudo isto nos está dizendo que não saíram das regiões da Ásia menor, e que a vizinhança da Noruega é uma phantasia como tantas que se encontram 96 Os filhos de D. João I nas viagens remotas dos tempos antigos — e também mo- dernos. Outra phantasia é o verem Jerusalém, que de certo viam apenas com os olhos da alma, pois esse era o primeiro destino da viagem do infante. Provavelmente, de Constantinopla passaram á Ásia, e, perdendo-se talvez nas serras da Arménia, vieram parar de novo á costa do Mediterrâneo, onde embarcaram para Ale- xandria. De outra forma, vindo por terra, péla Syria ao Egypto, teriam encontrado primeiro a Palestina. 0 grão Babylão, que foram visitar a Babylonia, não é mais do que o sultão baharita do Cairo. Chamavam muitos a esta cidade Babylonia do Egypto, coníundindo-a com o velho Cairo, ou Babul, fundado por Amru em 658, a meia légua da cidade moderna de que é um arrabalde, no ponto onde o Nilo recebe o canal de Trajano1. Quando o infante D. Pedro visitou o Egypto ainda os turcos lá não tinham chegado. Destacado do califado árabe de Bagdad no principio do século x, caíra no poder da dynastia apostólica dos fati- mitas, que teve por quasi dois séculos toda a Africa medi- terrânea. No ultimo quartel do século xn o Egypto voltou a reconhecer o califado de Bagdad (que já era então, como o papado de Roma é hoje, apenas uma instituição religiosa), mantendo a sua independência politica sob os novos sultões ayubitas, em cujo tempo (1 171— 1204; se deram as cruéis tragedias de Saladino na Syria e a expedição do santo rei de França, em que ficou captivo. Foi um periodo de anar- 1 Pietro delia Valle, il pellegrino, nas cartas da sua viagem pelo Egypto, pela Syria, pela Pérsia e pela Índia, onde viu de pé, e em plena força ainda o nosso império, escreve do Cairo a iò de janeiro de 1G16: «Ma io, a dir la verità, sono andato pensando un' altra cosa, non sò, se totalmente a preposito : cioè, che il Cairo, dal suo primo fundamento, sia stato sempre dove adesso è il nuovo, e che il Cairo vecchio sia 1'antica Babilónia di Egytto, colónia già di quei Caldei, che, como narra Strabone & anche Diodoro Siculo, havuto dei Re di Egytto quel sito da habitare, ivi la edificarono e dal nome dell: altra Babilónia loro pá- tria cosi la chiamarono». — Viaggi (ed. Veneza, 1G61), 1, 283.— «O Sol- dão do Grão Cairo: a que muytos chamam Babylonia. . .» diz Aveiro, Itiner., 181 v. As viagens do Infante D. Pedro 97 chia sangrenta, terminando com o assassinato do sultão pelo chefe dos seus mamelukos, Ibegh, o fundador da nova dy- nastia baharita que durou até ao principio do século xvi, quando o imperador Selim trucidou os mamelukos e an- nexou o Egypto á Turquia ( 1 5 1 7) . Ao tempo da viagem do infante D. Pedro, em 1425 ou 142G, a Syria, portanto, era dos mamelukos. Depois da ca- tastrophe de 1291, em que o reino christão de Jerusalém fora definitivamente aniquilado, o rei de França obtivera, em i336, que a guarda do Santo Sepulchro se confiasse a monges christãos1. Comprehende-se, pois, que, para ir a Je- rusalém, como era seu desígnio, o infante quizesse primeiro obter o salvo-conducto do sultão do Egypto; mas é no Cairo que pela primeira vez o chronista accusa o segundo intento da jornada: ir ao Preste Joham das índias! Desco- brir esse reino tão encantado como as ilhas do Oceano, en- trava de certo nas idéas combinadas antes da partida com o infante D. Henrique. A viagem terrestre de um irmão completava o plano emprehendido no mar pelo outro. Diz o roteiro que se demoraram no Cairo quatorze dias, e que o sultão quiz que lhe contassem como eram os reinos do poente, e lhe dessem noticias de Hespanha. % De ahi largaram para Jerusalém, por terra. Do Cairo para a Palestina, a estrada das caravanas seguia, como ainda 1 V. La terre saincte, ou description topographique três particulière des saincts lieux & de la terre de Promission, etc, par F. Eugène Roger, recollect. mission. en Barberie. Paris, 1646, 4.0 Embora posterior pouco mais de dois séculos, a descripção do missionário, minuciosa e erudi- tamente feita, e luxuosamente impressa, tem para nós o máximo valor histórico. É também bibliographicamente um primor. D'ella nos servi- mos no texto para completar os apontamentos de Gomes de Santo Estevam, bem como do Itinerário de fr. Pantaleão d'Aveiro, utilisando também as Viaggi de Delia Valle, já citadas, que visitou a Terra Santa em 161Õ. 98 Os filhos de D. João I hoje, em linha recta para oriente, passando pouco acima de Suez. E o que o chronista chama a província de Centurio, onde viu que «quando nasce uma creança d'ahi a nove mezes lhe põem uma verga de ferro na cabeça, e assim fica com pouco juizo, mas mui forte de cabeça». Ora, entre os vários povos que na terra seguiram esse uso ou rito an- tiquíssimo da macrocephalia, deformando de vários modos os craneos tenros dos recem-nascidos, estão justamente os egypcios, e os egypcios de Suez, propagando-se d'esse ponto o uso para norte e para oeste, entre os kabylas. A espécie de deformação do Egypto é a que Vesale chamou lateral ou temporo-parietal, commum aos macrocephalos de Hip- pocrates, aos abases do noroeste do Cáucaso, e aos antigos habitantes do norte europeu: flamengos, belgas e outros. Consiste na compressão lateral do craneo em toda a sua extensão, no sentido anterior ou posterior, e obliquamente, de baixo para cima, produzindo o entumecimento da fronte e do occiput, como nos macrocephalos de Hippocrates, ou de um dos dois isoladamente, ou por fim o estreitamento da abobada superior do craneo e o alargamento da sua base. Esta deformação, que só se praticava, ou se pratica, sobre as creanças do sexo masculino, obtem-se por meio de com- pressões manuaes, ou pela applicação de compressas e ap- parelhos apropriados1. Gomes de Santo Estevam desenha um d'esses nas palavras transcriptas. A estrada transpõe uma das gargantas dos montes que limitam por oeste o deserto de Tih, habitado por tribus de alarves2 quasi selvagens, que andam nús, alimentando-se de hervas e carne crua, errando entre as montanhas e o 1 Magitot, Essai sur les mutilatiom ethniques, no Rei. do Congresso Intern. de Anthropol. e Areheol. prehist. de 1880, pag. 549-612. 2 Alarve era o termo genérico com que se designavam os mouros ou árabes nómadas, mais ou menos salteadores. A exactidão perfeita da narrativa de Gomes de Santo Estevam encontra-se em Delia Valle, que com os mesmos traços descreve as tribus nómadas das vizinhanças do Sinai. «Se altro no trovano, mangiano radiei e foglie di herbe, se pur deli' herba hanno ventura di trovare». — Viaggi, 1, 346. As viagens do Infante 1). Pedro 99 deserto, onde descem para assaltar os viajantes. Chegando a meia largura da península terminada pelo monte Sinai, que divide as aguas do mar Roxo nos dois golfos de Suez e de Akabah, a estrada vira para norte, bifurcando: um ramo vae a Gaza, e segue na costa por Jaffa até Casarêa, outro ramo toma as cumiadas dos montes de Judá em direitura a Jerusalém. Foi esta ultima a derrota que seguiu D. Pedro. Por ahi entrou na Terra Santa, chão predestinado para theatro da epopêa do mundo, desde o Paraíso e o seu Pec- cado, até á Redempção pela morte de Jesus, e ao Juizo Final que encerrará a Historia no valle escuro de Josaphat. Dividiam n^ste tempo a Terra Santa em quatro províncias. A primeira é Galilea, entre o Libano e Samaria, indo a me- tade superior desde o Jordão até á Phenicia, e a inferior de Saphet aos montes Gilboe, com o lago Tiberiade, e até ás serras de Zabulon. Na Galilêa ficam, alem dos montes Gil- boe, Hermon e o Thabor, e as ruínas das velhas cidades de Nazareth e de Nain, de Salem, Bethulia, Tiberiade, que deu o nome ao lago, Canna, Sephoris e Bethsaida. Depois vem a Phenicia, desde o Adónis, fronteira da Syria, ao longo da costa mediterrânea, até ao castello do Peregrino, faxa de seis léguas de largura por vinte e cinco de extensão, sobre a qual assentam Biblis e Barut, Patron e Sidónia, Tyro, Pto- lomaida, Caipha e Sarepta. Depois, Samaria. Depois, a Pa- lestina propriamente dita, com os seus quatro portos de Jaffa, Gaza, Ascalonia e Cesárea em ruínas; com as cidades santas de Ramatha e Lidda, Bethlem, onde nasceu Jesus, Hebron e Emmauz, Azotus e Jerichó, escondida entre hortas e palmares, vergéis e cannaviaes de assucar, regados pelas linhas de agua que vão dar ao Jordão, tendo banhado a vasta campina de Galgala1 tapetada d'essas rosas verme- lhas que se tingem de branco, e revivem sempre, apesar de seccas, logo que se immergem na agua2. 1 Aveiro, Itin., 214. 2 Eug. Roger, L.i terre saincte, p. 18 a 20 e 149. A rosa de Jerichó, Anastatica kieros., é uma crucifera que, depois de secca, sempre que se ioo Os filhos de D. João I A terra da promissão, tantas vezes alagada em sangue, e sempre abençoada por Deus, era ainda o jardim onde o leite e o mel corriam em ribeiras. O romano cobríra-a de cidades e monumentos*, a santa imperatriz Helena, primeira mulher de Constâncio Chloro e mãe de Constantino, o que converteu o império ao christianismo, coalhára-a de igrejas e mosteiros, consagrando os momentos divinos da historia doce de Jesus. Agora a desolação via-se por toda a parte, as ruinas a cada lado, depois das invasões dos árabes e egypcios: especialmente depois da conquista de Saladino que em 1 187 expulsara os christãos de Jerusalém, annexando o reino ao sultanato de Damasco; e depois do incêndio da cidade santa pelos turcos do Egypto em 1244, até á data de 1291, em que, tomada S. João d1 Acre, toda a Palestina ficara em poder d'elles. Fora um longo século de destruição feroz ! Mas se as cidades caíam por terra despovoadas, se os mosteiros abandonados se despedaçavam, transformando-se os santuários em estrebarias, essa terra, igualmente sagrada para o judeu, para o christão e para o musulmano, conti- nuava a desabrochar em flores e fructos, como um ver- dadeiro paraíso que era. Os sycomoros, as acácias, as pal- meiras, os aloés e as cevadilhas, os jujubeiros, os terebin- thos, e todas as arvores mediterrâneas, fechavam-se em ma- tas, cobrindo com a sua sombra os tapetes de rainunculos e narcisos, de anémonas, jacintos e nardos, de açucenas e lirios, flores bulbosas, de um aroma inebriante, que trepam nos vallados, bordando os caminhos, entremeando-se com mette na agua, absorvendo-a por capillaridade, abre, parecendo rever- decer. De tal phenomeno vem a superstição antiquíssima da influencia d'esta planta sobre os partos, e o commercio que d'esta relíquia fazem ainda hoje os judeus e mouros da Palestina. Na occasião das dores immerge-se o pé da flor secca em agua, e o parto é feliz quando ter- mina antes da rosa estar completamente aberta. Retira-se da agua, li- ga-se, secca, e guarda-se para outra vez. Quanto á mudança de côr, de que falia o missionário, não se observa nos exemplares que vem para a Europa. As viagens do Infante D. Pedro 101 o aconito cuja raiz basta pegar-lhe para se cair em syncope, com o kermes donde se tira a purpura, com a mandragora e as solaneas cujos venenos religiosos contribuem para a exaltação mystica d'essa terra eleita por Deus. Nas encos- tas dos montes trepa a vinha, e os meloaes cruzam a rede dos seus braços como polvos; a oliveira ensombra os altos, e pelas várzeas estendem-se os pomares de amêndoas, os figueiraes, as amoreiras que dão a seda celebre da Phenicia, e os algodoaes entremeados pelos bosques de canna saecha- rina. Mais para longe, as searas louras ondeam ao vento, e nas serras pastam os rebanhos de cabras de orelhas pen- dentes, como podengos, cujo cabello fino de setim faz os ricos chamalotes da Syria e de Damasco, e as manadas de ovelhas e carneiros de cauda tão farta e gorda que suppre aos judeus o toucinho nas comidas1. A Judêa dorme em paz nas suas ruinas2, comprimida sob o pé do egypcio, ba- fejada pela aragem fresca do norte que se côa pelas neves eternas do Libano, defendida dos ventos do deserto pela cortina dos montes de Seir e da Idumea. No coração da terra, dividindo-a de norte a sul em duas, o Jordão, bor- dado de tamargueiras e altos cannaviaes3, transposto o lago de Tiberiade, distribue para ambas as margens uma rega invisivel e abençoada, evaporado no ar pelo calor fecun- dante do solo*, até se ir perder no sumidouro do mar Morto, que o mesmo sol aspira constantemente, sorvendo as aguas i Aveiro, Itin., 53. 2 «... inda que terra sancta está toda ou quasi destruída. . .» Ibid., 54 v. 3 Delia Valle, Viaggi, 1, 463. — «O Jordão vay naquella parte (junto a Jerichó) muyto fundo, & estreyto: não tem área, mas hum lamaçal quasi como greda, da qual lama me disse o Abbade Caly que tomasse e ao sol sequasse para trazer comigo a Franquia, affirmando-me ser terra miraculosa e muy medecinal para febres... Da outra parte vay o terreno mais alto, & em algú rochedo, & de húa, &. outra cuberto de arvoredo muyto espesso, o mais d'elle tamargueyras altíssimas, mos- tardeiras & grandíssimos carriços». — Aveiro, Itin., 217 v. 4 Eug. Roger, La terre saincie, 3, 4. 102 Osjilhos de D. João I da lagoa podre de Sodoma, cujas emanações mephiticas le- vam nos ares a peste a Jerusalém1. Antes dahi entrar, a caravana do infante obliquou para oriente, deixando a direcção norte, e, descendo ao deserto de Judá, foi pelas margens do mar Morto metter-se no valle do Jordão, que subiram até á fonte onde reza a lenda ter sido baptisado S. Paulo. «Ganham-se ahi cem quarentenas de perdão». De lá partiram para Nazaré th «d"onde foi a li- nhagem de Nossa Senhora». Nazareth, que quer dizer flor, fica na planície olhando a oriente, com o horisonte limitado por um circulo suave de montanhas arborisadas. Era uma villa de duzentos fogos mouros que habitavam sacrilegamente no meio das ruinas venerandas. Em baixo, no centro da cidade velha, ficava a casa de Sant'Anna, onde Nossa Senhora recebeu a Annun- ciação: a casa construída pela imperatriz Helena, porque a verdadeira fora levada pelos anjos para Loreto2. Sobre os alicerces d essa levantou a santa imperatriz outra, cuja porta dá para o lado de Jerusalém, e estava encerrada dentro de uma basílica, transformada agora em estrebaria pelos mouros. Duas columnas de porphyro marcavam o lo- gar da Virgem e o do Archanjo ao communicar-lhe a ordem celestial. E por entre as ruinas desconjuntadas brotavam anémonas e chalcedonias, rainunculos, narcisos, cyclamens e iris, enchendo o ar de uncções devotamente perfumadas. Logo ao pé, visitaram a fonte da Virgem e os jardins plan- tados por Santa Helena; mais acima, para o poente, a duzentos passos, a mesa do Messias, lapide redonda onde Jesus ceou com os doze apóstolos. Por toda a parte viam e se benziam da piedade de Santa Helena que, repudiada pelo marido por causa do seu christianismo, mereceu por 1 «A causa de ser alli a peste tam continua he o mao cheiro que vê do mar de Sodoma, quando no verão continua Leuante; porque passa por aquelle maldito mar & conrõpido o ar causa peste.» — Aveiro, Itin., 149 v. 2 Ibid., 267 v. As viagens do lujlmic l). Pedro io3 isso mesmo do filho o titulo de imperatriz, e do céu o logar de santa1. Estavam outra vez na região montanhosa, e desciam agora, nas serras samaritanas, provavelmente a estrada que por Se- basta ou Samaria, Silo e Arimathia, vem direita a Jerusa- lém. Tanto assim que, antes de entrarem por fim na cidade, visitaram a aldeia de Emmauz, sacrosanta, afastada apenas duas léguas para noroeste. D'ahi a Virgem Maria fugira para o Egypto com o Menino Jesus. A lembrança d'estes casos ingenuamente piedosos, enchia de encanto o generoso espirito do infante. Foram ver a palmeira que se abaixou ao passar a Virgem, para ella colher as tâmaras que deu a seu divino filho2. Ao pé da palmeira está uma fonte que por essa occasião brotou, e donde beberam a Virgem e o seu esposo S. José. A suave lenda do homem-deus enchia-os de contricção. Emmauz, a duas léguas e meia de Jerusalém, deserta, demolido e abandonado o seu mosteiro, no sitio onde milagrosamente Jesus appareceu aos discípulos, er- guia-se no cimo da montanha, encerrada em um ninho cin- zento de olivaes. Nas encostas pedregosas, tornadas férteis á força de arte, com as levadas e cisternas abertas a ferro na rocha dura, as pendentes Íngremes, que as aguas desnuda- riam, ficavam interceptadas com escadas de socalcos sobre- postos sustentados por muros3. Alem, está a fonte onde o Redemptor lavou os pés com os seus dois discípulos, Cleo- phas e o outro, e essa agua milagrosa era fresquissima e de muito sabor'. Porque não entraram logo em Jerusalém? Talvez quizes- sem preparar-se, visitando primeiro todos os logares intro- duetorios ao drama sagrado da paixão de Christo. O facto > Eug. Roger, La terre scriwcte, 4* a 54. - "ViV albero antichissimo' di Terchinto che ha certi rami molto bassi & é lama che gl' inclinasse alia Madona una volta che di la pas- - Del la Yalle, Viaggi, 1, 478. g. Roger, La terre saúacfe, 161. — Delia Valle, Vhaggit 1, 420. •1 Aveiro, Itin., 287. 104 Os filhos de D. João I é que, torneando a cidade, foram primeiro a Bethlem, do lado do sul, na estrada que, seguindo pelos montes de Judá, entronca em Hebron com a que vem de Gaza, da costa. Em Bethlem visitaram o presepe do natal do Redemptor, e a sepultura de S. Jeronymo, deixando a sua espórtula de um cruzado por cabeça. A igreja, levantada por Santa He- lena sobre o sagrado presepe, que é uma gruta de quinze passos de comprimento por quatro e meio de largura, e nove ou dez de altura, estava de pé, coberta ainda pelo seu tecto de cedro; mas os infiéis tinham-lhe arrancado os re- vestimentos de mármore. O convento, em torno, fora sa- queado, e jazia deserto em ruinas, levantando no ar um es- queleto de muralhas torreadas. Das ruinas, no alto da calçada que vem do nascente subindo para Bethlem, viam desenro- lar-se a paizagem opulenta, na qual se divisava perto En- gaddi reclinada no seu valle mystico, onde entre os pâmpanos das videiras cresce o bálsamo doce da Judêa. Ao pé, ficava o sitio do apparecimento do anjo aos pastores, mais a gruta cujo saibro augmenta o leite das mães1. De Bethlem caminharam para norte, em direcção de Je- rusalém que lhes appareceu ladeada pelas suas collinas, cada uma das quaes ficou bemdita por uma sacrosanta lem- brança. A torrente do Gedron, bifurcando, abre entre os seus dois braços um planalto em que Jerusalém assenta. Por leste corre apertada contra o monte das Oliveiras, de cujo cume dominante, ahi onde houvera o templo de Asta- 1 «II paese, ai mio gusto, è il piú vago, è '1 piú delitioso che possa imaginarsi.» — Delia Valle, Viaggi, i, 479. — Eug. Roger, La terre sain- cte, 161, 75 e 7. «A terra desta Capella & toda a mais daquella furna hequasicomo branca & desfasse como farinha, a qual tem particular virtude de acerescentar o leyte as molheres & aos outros animaes brutos que se crião e não só usão delia molheres christãas, mas também as Turcas & Mouras, bebendo-a com agoa e a dão ordinariamente a seus ani- maes pêra o que digo. Chamáo todos áquella terra leyte de nossa Se- nhora.»— Aveiro, Itin., 186 v. As viagens do Infante l). Pedro io5 roth, Jesus subiu ao céu, deixando marcada no solo a sua derradeira pegada, que mouros e christãos beijam sofrega- mente. Santa Helena puzera nesse logar uma igreja octo- gonal, agora arruinada1. Na vertente oriental do monte fica Bethphagé; na de occidente, estendem-se, abençoados pela paixão do Salvador, os jardins de Gethsemani, sobre o Ce- dron, que para o sul corre apertado contra o Candal, em cujo cimo se erguia o palácio dos Erros de Salomão. Na quebrada entre o Olivete e o Candal passa o caminho de Bethania, deixando d direita os túmulos dos Apóstolos. Para oeste de Jerusalém, ao longo do segundo braço do Cedron, por onde segue o aquedueto de Bethlem, subindo para o norte, encontra-se o monte do Mau-conselho, onde se tomou a resolução fatal — Expcdit ut unus mor iatur homo! (Joan. ii, 5o) — ladeado pelo do Escândalo da idolatria no tempo de Salomão2. E na base d'estes cerros que o Cedron bifurca, abrindo-se em dois valles, e deixando em meio o espaço da cidade. Para o sul, vae correndo, a perder-se no mar de Sodoma, a oito léguas de Jerusalém, depois de lavar a Gehenna onde em antigos tempos fora o templo de Moloch: esse deus phenicio cujas entranhas esbrazeadas se alimentavam de creanças vivas, inferno immundo para onde vasam os despejos da cidade que a torrente leva no seu caudal intermittente3. Acima do monte do Mau-conse- lho, ladeando Jerusalém pelo poente, erguem-se as eminên- cias em que o rei David destruiu os philisteus; depois, o morro em cuja base tícam os sepulchros dos Juizes de Israel; depois, a garganta obscura da piscina, d'onde nasce este braço do Cedron; depois, a montanha, com os seus dois cumes, ladeada ao fundo pela gruta de Jeremias, junto da qual passa o caminho de Damasco. Ficam ahi os túmulos dos reis de Judá, e foi ahi a conversão de S. Paulo. i Aveiro, ibid., 145 v. — Eug. Roger, ibid., 1 38. 2 «Perche la sopra furono edificati i Tempij & adorati gl' Idoli dalle concubine con permission di Salomone.» — Delia Valle, Viaggi, 1, 438. 3 Eug. Roger, La terre saincte, etc, 1 38. íoó Os filhos de D. João I Antes de entrarem em Jerusalém, D. Pedro e os seus companheiros metteram-se pela garganta aspérrima do Ce- dron, do lado de leste, subindo o terrível valle de Josaphat, cujo comprimento mede meia légua, com quatrocentos a quinhentos passos de largura, e onde os turcos e judeus têem o cemitério em sepulturas escavadas na rocha das en- costas1. Foram até ao alto, até ao tumulo de Nossa Senhora2, que é onde por este lado começa a torrente, cujas alluvioes tinham soterrado quasi a capella construída por Santa He- lena3. Estavam ahi diante da ponte da estrada de Bethania, que vae dar á porta dos Rebanhos, ou de Santo Estevão, pois junto d'ella foi lapidado o proto-martyr. Viram as pe- gadas dos apóstolos, quando faziam vigília ao cadáver de Nossa Senhora, no momento em que os anjos a levaram ao céu; viram junto á porta os pés e mãos de Nossa Se- nhora marcados na rocha com a profundidade de dois de- dos; e penetrado por um sagrado terror, Garcia Ramires disse: — Aqui havemos de ser julgados no dia do Juizo: deixe- mos um signal para nos encontrarmos juntos. Mas o infante D. Pedro, inspirado por uma piedade mais pura e por isso menos realista, observou que seria tentar a 1 «I sepolcri di Gierusalem non sono tombe. . . ma fatti a guisa d'un altare da dir Messa ó d'una pietra sola, o di piu, secondo i luoghi : e sopra questi tumuli (per dir cosi) come altari si metteva il cadavero disteso dentro ad una cella o cameretta che era o fabricata a posta, overo cavata a forza di scarpello; come erano le piu nel sasso vivo de' monti, che da tutti i lati ce n'e abbondanza; & in una di queste celle, vi erano o piú tumuli overo uno solo, secondo per chihaveva da servir la sepoltura.» — Delia Valle, Viciggi, i, 433, 4. 2 Eug. Roger, La terre saincte, 123, 4. 3 Ibid., 129. O sepulchro da Virgem tem duas camarás; á direita a de Sant'Anna e S. Joaquim, á esquerda a de S. José. Tudo está soter- rado. «Questo tempio é molto basso sopra terra e per andare ai Sepol- cro delia Nostra Signora si scende anche sotto terra da cinquanta scalini : cosa che mi fa credere che la Valle in quei tempi fosse assai piú cupa che adesso no è; riempiuta forse dalla pioggia e delia terra che il tor- rente deve portar da i monte intorno». — Delia Valle, Viaggi, 1, 433. As viagens do Infante l). Pedro 107 Deus, e, estranhando as palavras de Garcia Ramires, res- pondeu severamente : — Nunca Deus queira que taes signaes fiquem n este lo- gar! Entre os valles divergentes sulcados pelo Cedron, Jeru- salém levanta-se na lombada de quatro collinas reunidas, formando um planalto continuo. Por qualquer lado se sobe para entrar na cidade santa, sobre cujo lastro de casaria, encerrada nas muralhas, as cúpulas do Templo e do Santo Sepulchro se erguem sobranceiras. O monte Acra fica no centro, o Gion a poente, o Moria a nascente, fronteiro ao Olivete, ladeando o Cedron, e ao sul o Sion que é de todos o mais alto1. Na beira dellc o rei David mandou construir ' Um illustre peregrino de hoje, o sr. bispo de Bethsaida, descreve assim a cidade santa que visitou: «Jerusalém pôde considerar-se si- tuada em posição similhante á cidade alta de Coimbra. A natureza do sub-sólo é igualmente calcarea. Tomando o alvéo do Mondego pela torrente do Cedron e a encosta que sobe desde o cães até ao cimo das Couraças, pelo pendor do valle de Josaphat, pôde muito bem o monte em que se levanta o convento de Santa Clara assimilhar o Olivete, ficando no sitio da egreja de S. Francisco o horto de Gethese- mani, e no da igreja velha de Santa Clara a gruta da Agonia... O valle de Josaphat não é no fundo tão largo como o do Mondego : a largura media não ultrapassa ioo metros e o comprimento 3 Uilome- tros, cortando a cidade por dois lados, como o valle de Coselhas unido com o do Mondego. «Jerusalém forma um quadrilátero, cujo maior lado mede 1:200 me- tros e o menor 800. Approxima-se de um quadrado : e é toda circuitada de altiva muralha. A população não chega a 21 :00o almas. Com proprie- dade equivalente á que se empregaria dizendo-se: que a cidade de Coimbra assenta sobte cinco montes; dando este nome aos diversos cabeços em que se fundamentam a Universidade e os conventos de Santa Thereza, de S. Jeronymo e das Ursulinas e o cemitério da Con- xada; supprimindo, ou, melhor, enchendo e nivelando os valles das cer- cas dos Bentos e dos Cruzios; — assim se diz que a cidade santa está alteada sobre cinco montes: Sião, Moria, Bezeta, Acra e Gareb. — Ora, se algum d'estes avulta sensivelmente, também algum é quasi imperce- ptível. . . 108 Os Ji lhos de D. João I um palácio, cujos alicerces ainda se viam, no próprio sitio em que observara Bersabé banhando-se no ribeiro que corre em baixo. Junto ao palácio do rei está o seu tumulo, e ao lado os de Salomão e Josaphat1. Jerusalém era agora um terço menor do que no tempo dos romanos, quando Jesus padeceu. O monte de Sion fi- cava fora das muralhas, mas o do Calvário fora incluído n^llas. Tinha a cidade sete portas, das quaes a ultima, ao sul, a Esterquilinaria, por onde as immundicies saíam para a Gehenna, fora aquella por onde entrara Jesus Christo depois de preso no monte das Oliveiras. Habitavam Jeru- salém quatorze a quinze mil almas: turcos, mouros, árabes e christãos latinos, gregos, georgianos, arménios, coptas, syrios e nestorianos, abexins, chaldeus, gossitas, e uns cen- tos apenas de judeus2. De samarra branca e sapatos ver- «E no declive do Gareb que está situado o Calvário; como na suave descida que, para o Jardim Botânico, vem do convento de Santa The- reza, está o de Sant'Anna. . . Agora acrescente-se: que toda a deno- minada montanha ladeirenta do Calvário e o sepulchro onde foi depo- sitado o Redemptor, cabem folgadamente dentro de um edifício menos vasto do que a Sé Nova; e lembre-se que a via dolorosa, via crucis, desde a casa de Pilatos. . . pouco mais percorre de meio kilometro.» — Ensaios do púlpito (1880), pag. 1 85 a 188. 1 Eug. Roger, La terre saincte, 95 a 97. 2 Ibid. 86 a 90. «Os Judeus ordinariamente não chegão a seiscêtos, posto que algumas vezes sejam mais, &: outras menos; porq como na terra não tê fazêdas de raiz, nê nella não ha modo de viuer cõ mer- cadorias, nem outros tratos com que possam sustentar a vida: come o que leuaráo & ajuntarão em outras partes. . . Os Judeus viuê humilde- mête mal tratados & pior vistos de todos. Os Christãos pelo côtrario, permittindo assi o Senhor Deos por sua misericórdia porque de todos são bê tratados cõ muito respeito : os que morão na terra, como hos- pedes, como são Gregos & Arménios todos tê X> que hão mester, os que morão como naturaes são afazêdados muyto mais que os Mouros, cõ suas laurãças de pão e de vinho.» — Aveiro, Itin., 62 e 62 v. «Tem por costume os Judeus que vivem naquellas partes Orientaes fazer o possiuel por ajuntar dinheyro: com que se possão sustentar em terra sãcta, & juntos se vão morar a Hierusalem & alli se aposentão & morão todo o tempo que lhe dura a provisão esperando o Mexias que hade vir ao dia de Juyzo julgar os viuos & os mortos.» — Ibid., 147. As viagem do Infante 1). Pedro 109 melhos como o cinto, gorro encarnado-escuro, longas barbas pendentes da face adunca, o judeu cruzava-se com o negro nubio ou ethiope semi-nú, com o arménio de turbante azul e branco, semelhante ao dos gregos. Passavam nas ruas as freiras arménias, cujo rito não tem clausura, com as suas vestes compridas, calções de panno da Turquia, e um véu negro na cabeça, mendigando esmolas, arranjando o leito das calçadas, para que os pés nús dos peregrinos se não magoassem demasiado. O árabe, a cavallo, de turbante branco, envolvido em largo manto, branco também, raiado de roxo ou vermelho, com o cinto de marroquim segurando a adaga e a machada, de alfange pendente e rédeas de couro azul, trotava soberanamente, ladeado pelos peões de largas calcas atadas nos tornozelos sobre os borzesmins vistosos. Os syrios nús de peito e pernas, com saiões escuros de al- godão presos no hombro por um suspensório e justos na cinta, traziam na cabeça altos gorros de pelle de carneiro, e o seu armamento era o arco e as frechas, com uma adaga e um alfange recurvo á cintura. Mulheres árabes, de mãos e pés nús retintos a vermelho, com manilhas de contas nos tornozelos e nos pulsos, seguiam vestidas nas suas amplas camisas de algodão azul, que as cobriam todas, levando na cabeça o capello guarnecido de moedas de oiro e prata cosidas em escamas e um lenço negro a cobrir-lhes a cara, com dois óculos diante dos olhos. Nas orelhas traziam brincos e no nariz anneis de agatha, ou» lapis-lazuli, ou jaspe verde. As faces, a testa e os braços eram tatuados com signaes symbolicos. As creanças, aos molhos, revol- viam-se alegremente nuas pelas calçadas, com estrellas pin- tadas a cores sobre as testas. E no meio d esta confusão pittoresca dos povos e usos mais extravagantes, encontra- va-se a gente de Deus: os derviches e santões, os mendigos, os ermitas, calendéres, e toda a casta de homens allucinados pela visão, ululando esfarrapados, fazendo gala da sua misé- ria, que o povo respeitava com verdadeiro medo. O dervi- che vestido com um poncho de cores rutilantes, agitando o seu bastão, de mitra branca e pernas nuas; o mendigo com no Os filhos de D. João I mantos singulares, rapada a cabeça, ou emmaranhada em cabelleiras e barbas grotescamente medonhas, de cruz de ferro na mão, batendo como um doido ; o calendér com- pletamente nú, attestando de um modo physico a castidade da sua vida1 •, as santas mulheres maronitas, trajando á moda svria, seguindo processionalmente e soltando coros de gri- tos agudos e estridentes — Heli, li, li, li, li, li. . . com a ponta da linsua agitando-se entre os beiços n:um delírio2: todos esses doidos da religião, eram a gente querida na metró- pole do mundo transcendente, cidade santa de judeus, ma- hometanos3 e christãos. Tinham a mesa sempre posta' e o tecto patente sempre, em todas as casas, para os receber, alimentar e servir, com uma veneração feita de piedade e susto, como relíquias sagradas do antigo vendaval da fé, quando em turbilhões se agitavam as velhas heresias: gnós- ticos e priscillianos, carpocraticos e elksaitas, marcosianos e nicolaitas, montanistas e arianos, circuncellios, velesianos, sethanianos, arconticos, marcionitas, e os cainitas satânicos, mais os ebionitas, directos discípulos do Galileu, que pro- clamavam a morte universal por uma doce caridade apathi- camente extenuante. Entraram em Jerusalém os romeiros, indo habitar no re- cinto da cidade baixa, reservado aos peregrinos christãos, i Eug. Roger, La terre saincte, pass. 2 Delia Valle, Viaggi, i, 455. 3 Ziarèt é o nome que os mahometanos dão aos logares santos que sem serem sagrados pelo islamismo, são reconhecidos como taes e onde os christãos se admittiam mediante espórtula. (Cf. Delia Valle, Viaggi, i, 462.) O culto dos musulmanos por alguns dos logares santos é attes- tado por todos os peregrinos. Do Sepulchro Santo diz Pantaleão de Aveiro: «E os peregrinos assim Mouros como Turcos que vão em Ro- maria á Casa de Meca não a tem por boa & acabada, se não vão visitar este Têplo & outras particularidades de Hierusalem.» (p. 1 38.) Alem do Sepulchro, o Templo de Salomão, o tumulo da Virgem e a sepultura ' dos patriarchas em Hebron, eram logares visitados sempre. No dia 1 de agosto, seis, sete ou oito mil turcos e mouros celebravam no tumulo da Virgem a festa da sua assumpção, vindo ahi de todas as partes, até da índia (p. i52). O mesmo succedia com o presepe de Bethlem (p. i83). As viagem do Infante D. Pedro 1 1 1 que os receberam de braços abertos com extremos de reli- giosa alegria. Começaram logo as suas peregrinações devo- tas. A primeira foi ao Santo Sepulchro, que rica na vertente sul do Golgotha, adiante da prisão de S. Pedro; e, entrando na igreja, oraram em companhia dos doze monges que, ha- via um século, o rei de França Filippe VI ali puzera, com licença do sultão, para guarda do Santo Sepulchro e em memoria dos doze apóstolos1. O guardião acompanhou-os logo ao recinto sagrado que um mouro guardava2, e dan- do-lhe vinte peças, penetraram cheios de contrição. Sobre o Sepulchro havia uma capella onde não cabiam mais de tres homens: o sacerdote da missa, o diácono e o sub-diacono. Para entrar era mister curvarem-se todos, e sujeitarem-se á affronta de receber uma bofetada da mão do mouro. Mais soffrêra Jesus Christo para nos trazer a redempção! Visitado o Sepulchro, subiram ao Calvário, no alto do monte Golgotha, d'onde para o poente viam fechar-se a garganta escura de Gehennon, em que nasce a torrente do Cedron, e palparam com as suas mãos as tres covas ainda abertas das cruzes do Sacrifício. Todo o monte do Calvário, pequeno cerro de dezoito a vinte pés de altura, incluindo o logar do Sepulchro Santo, e aquelle onde se achou a ver- dadeira cruz do Salvador no tempo de Santa Helena, fora 1 Em 1418, sete ou oito annos antes da viagem de D. Pedro, alguns emulos dos frades menores, a cuja guarda fora confiada o Santo Se- pulchro, quizeram despojal-os d'essa regalia; o papa Martinho V com- metteu a causa ao patriarcha de Jerusalém, Egradense, que sentenciou a favor dos franciscanos. — Cf. Aveiro, Itin., io5 e io5 v. - Era ainda assim um século depois, como diz Fr. Pantaleão de Aveiro: «A porta d'este Sagrado Templo, sempre está fechada com duas chaues: & no alto selada com o selo do gram Turco, o qual selam pondo hua escada de mão. As chaues, & selo estão sempre a bom re- cado, na mão de tres Turcos, tendo hum delles o selo, & os dois cada hum a sua : os quaes, quãdo se hade abrir a porta, para entrarem pe- regrinos, ou por qualquer outra causa são chamados os ditos tres Turcos cõ seus officiaes», etC. (p. 68 v. »">). V. a descripção do Santo Se- pulchro, c. xxii e xxiii ii2 Os filhos de D. João I pela piedosa imperatriz transformado n'um santuário de in- numeras capellas. Aqui está a cova onde se ergueu a Cruz, emmoldurada em prata1 e confiada á guarda dos georgia- nos2, ladeada pelas columnas erguidas no logar das cruzes do bom e do mau ladrão-, alem, a rotunda do Sepulchro, com os seus lampadários que n'outros tempos, quando havia ainda milagres, em Sabbado Santo o fogo do céu, baixan- do, vinha accender3; depois a capella de Santa Maria Egy- pciaca, essa outra Magdalena; depois a dos túmulos de Go- dofredo de Bouillon e de Balduíno; depois muitas mais, incluindo aquella onde se guarda a verdadeira cabeça de Adão, trazida ali nas ondas do diluvio, para que fosse re- gada pelo sangue do Redemptor4. Desceram a Via Sacra, Dolorosa, Tenebrosa ou da Amar- gura, que do Calvário vae dar á porta dos Rebanhos, por onde se sáe para Bethania pelo valle de Josaphat, cortando em angulo recto a rua desde o palácio dos Macchabeus até ao de Herodes de Ascalonia, levantado no cerro de Bezetha. Na intersecção dos dois caminhos ficava a casa de Poncio Pilatos sobre o logar do antigo palácio de Salomão; e de- fronte, a quarenta passos para o norte, as ruinas da capella erguida no próprio logar onde o Salvador fora açoutado. Blasphemia! Essa capella era agora uma estrebaria5. 1 «Tem aquelle buraco mais de dois palmos de altura & quasi de três: sua largura quasi que cabe húa cabeça humana: o que muitas vezes experimentey para minha spiritual consolação, hora metendo a cabeça, hora os braços... Tem o dito buraco hum grande bocal de prata laurado de Imagens, & derredor hum letreyro que diz : Locus in quo Crucem domini fixa fuit quando in ea pependit.» — Aveiro, Itirt., j5. 2 «O qual lhe concedeo o Soldão do Egypto, quando possuia aquella terra.» — Ibid., 95. 3 Ibid., in. 4 «Onde affirmão que foi achada a caueira de nosso Padre Adam &; que estando nosso Redemptor crucificado na Cruz: seu diuino san- gue correu de maneira que foi dar na caueyra, & a banhou toda & tem os Georgios isto tanto por fé : que só Deus lhe pôde fazer crer outra cousa.» — Ibid., 94 v. — Eug. Roger, La terre saincte, io3 a 120. 5 Ibid., 101. As viagens do Infante 1). Pedro u3 O palácio do antigo pretor da Judêa está por cima do templo de Salomão-, e ainda, apesar de tão grandes voltas dadas pelo mundo, era a residência do pachá egypcio; ainda se levantava sobre doze degraus de pedra: outros, porque os antigos tinham ido, muito havia, para S. João de Latrão, em Roma. O Pretório servia de cozinha ao pachá1. Paravam-se a orar, ajoelhando piedosamente em todos os logares santificados. Foram á arcada do Ecce Homo, junto da qual Nossa Senhora e S. João encontraram Jesus no caminho do Calvário; subiram á galeria que atravessa a rua sobre a arcada, com duas grandes janellas, d\)nde Pilatos, cujo palácio fica para sul a trinta passos, mandou mostrar o Salvador aos judeus, vestido de purpura, coroado de espinhos e ainda lavado no sangue da flagellação, per- guntando o arauto qual das duas vidas preferiam, se a de Christo, se a de Barrabas! E a plebe n'um delírio respondeu, condemnando Jesus: Tolle, tolle, crucijigel A galeria estava franca aos romeiros, e na pedra dos pilares via-se gravado o clamor blasphemo: Tolle, tolle, crucifige2! Pisaram o próprio sitio em que Simeão ajudou o Re- demptor a levar a cruz; a casa do pobre lazaro, onde as santas mulheres choravam; a do mau rico; a de Izabel, fronteira ao collegio dos scribas; e com todas estas recor- i Aveiro, Itin., 1 3 1 ; lbid., Eug. Roger, La terre saincte, ioo. 2 lbid., ioi. Da arcada do Ecce Homo, diz Delia Valle : «La sua pros- pettiva è una colonna in mezo che sostiene due archi voltati un di qua & un di la, come due finestre grandi». — Viaggi, i, 429. A casa da Veró- nica «è ancora in piede e se habita.» — lbid., 428. «Este passadiço tem duas janelas, hua ao Norte, outra ao Sul, lau- radas toscamente, cõ seu pilar no meyo de obra rústica & tem ao pé do pilar de cada parte hua pedra grade com um Letreyro de Letras gregas & Latinas: & como estão gastadas do tempo, & altas: hus afir- mam dizerem hua causa & outros outra. No Letreyro da parte do Norte se lê claramête Christus Deus de Letras Latinas: & na outra parte das mesmas Ecce Homo: et Tolle, tolle: Eu, ou pelo que ouuia dizer a outros, ou por ser assi : sempre me parecia que lia estas palavras.» — Aveiro, Itin., 1 32. 1 14 Os Ji lhos de D. João I dações presentes, reconstruiam na sua alma atribulada o glorioso drama da Paixão. Para o sul, na velha cidade de David, sobre o Sion, foram ver as casas de Annaz e de Caiphaz, na rua do Captiveiro, e observaram com religiosa compuneção que nem a herva crescia, nem havia terra oitenta passos em volta do logar onde Judas deu a paz a Christo: todo o chão ficou da cor do sangue! Ambas as casas dos juizes eram igrejas: na de An- naz um convento arménio; na de Caiphaz o templo de S. Sal- vador ainda de pé, e sob cujo altar se guardava a tampa do Santo Sepulchro. No átrio da casa de Annaz viram a oliveira onde amarraram o Senhor, emquanto esperava que o julgassem; e ao pé a laranjeira a que se encostou Pedro, quando pela primeira vez renegou a Christo. Escutaram a ver se ouviam o ruido milagroso da bofetada dada na face do Salvador1. . . No pateo da casa de Caiphaz ainda havia um resto da chaminé a que o mesmo Pedro se aquecia, quando renegou a Christo pela segunda vez. Viram por doze cruzados a cadeira de Annaz, em que julgou a morte de Jesus; e subiram ao tumulo de David no alto da acrópole da velha Jerusalém2. Querendo entrar no Templo, não lhes foi consentido. Junto aos muros, na encosta do monte Moria, tinha sido o templo de Salomão d:onde Jesus expulsou os vendilhões, e onde sua mãe veiu encontral-o a discutir com os doutores. Arrazado e queimado i «Opinião he de muytos Christaos da terra que alli naquella Igreja se ouve sempre o tom de hua bofetada, em memoria da injuria que alli foy feita a nosso Redemptor. . . Nunca tal cousa senti, & se passa, como dizem & affirmão, por meus peccados não mereci ouvila, nem sen- tila.» — Aveiro, Itin., 125 v. e todo o cap. xxxvm. Cf. Eug. Roger, La terre saincte, 99, 100. 2 «L'antica torre de David chè composta di grossissime pietre quasi intera infin' adesso si conserva.» — Delia Valle, Viaggi, r, 441. «... cu- berta com hu muy rico pano de ouro broslado do mesmo, com letras Mouriscas entalhadas & recamadas, que declarão cuja é a sepultura: a qual he feita como hum Altar, em cima do qual tem posta, como tumba, daltura de dous couados: & o pano douro cobre tudo até o chão.» — Aveiro, ltin., 121. As viagens do Infante D. Pedro 1 1 5 por Tito, quando os romanos saquearam Jerusalém, no lo- gar cTelle tinham construído os mahometanos outro, cuja entrada era absolutamente defeza a chrístaos. O Haram, assim lhe chamavam, era um corpo octogonal encimado por uma cúpula, ricamente vestido de mármores. A porta Áurea ficava ao lado: ali Jesus pregava ao povo, encostado aos humbraes, que do roçamento do seu divino corpo rece- beram uma efficaz virtude para a cura da gota coral e para a extracção de demónios. Pela porta Áurea entrou o Re- demptor em triumpho, no dia de Ramos1. Proseguindo as suas visitas para o lado oriental da cidade, foram ao logar onde S. João Baptista fazia oração e á gruta onde dormia, e pagaram um cruzado. «E perdoada culpa e pena». Junto á porta dos Rebanhos, para norte, ao lado da probatica Piscina, encostada aos muros da cidade, está a casa de S. Joaquim e da Senhora Sant'Anna, os pães da Virgem, piedosamente guardada por uns santões, «e não ha casa em Jerusalém mais conhecida, porque é feita a frontaria de grandes e formosas pedras». Via-se ainda o próprio quarto dos pães da Virgem, e em que ella foi con- cebida sem peccado. Apesar da igreja servir de mesquita, e do convento annexo estar oceupado por um chefe mouro, dizia-se ahi missa: dizia-se também no próprio quarto da Senhora Sant'Anna2, porque os musulmanos eram tanto mais tolerantes em Jerusalém, quanto, n'esse berço com- mum das religiões do Livro, já não corria perigo o seu im- pério. Saíram as portas, passaram a ponte do Cedron: es- tavam na outra margem, diante do monte das Oliveiras, melancolicamente levantado perante os seus olhos arrazados de lagrimas. Não tinham visitado ainda a casa de Nossa Senhora, Ja- mas-el-Adra, que ficava a uns cem passos para o sul do Templo, e que, depois d'elle, era o melhor monumento de 1 Aveiro, Jlin., 09 v. e todo o cap. xui; Eug. Roger, La terre sin- ete, 90 a 95. 2 Ibid., 120 e 121. 1 16 Os Ji lhos de D. João I Jerusalém, com os seus três zimbórios cobertos de laminas de chumbo, assentes sobre columnas de mármore cinzento. Aqui a Virgem esteve desde a idade de três annos até ao seu casamento: na casa de Anna prophetisa com quem vivia em jejuns e devoções, separada de seus pães. Jamas- el-Adra era tida em grande respeito pelos mouros, e os in- fiéis iam ahi rezar piedosamente1. Tampouco tinham visto ainda a fonte da Virgem, cujos restos vão cair na piscina sa- grada de Siloé, e onde Nossa Senhora ia com as raparigas de Jerusalém lavar a roupa; nem a casa no cume do Sion, logo ao lado do Cenáculo (onde Jesus Christo instituiu o Sacramento do seu divino corpo e sangue) em que a Vir- gem viveu depois da Ascensão de seu filho, e em que os apóstolos se reuniram para lhe assistir á morte. Restava d'essa casa um lanço de parede2. Faltava-lhes ainda ver, com a sua curiosidade piedosa, tantos logares sagrados ! O horto de Gethsemani, encravado no sopé do monte Olivete3, onde Jesus chorou, junto ao ponto em que se apartam a estrada de Bethania e a rua do Captiveiro; a gruta da Agonia onde chorou S. Pedro, e se arrependeu de ter negado a Nosso Senhor Jesus Christo. Ahi se pagam quarenta dinheiros por cabeça. Viram a pró- pria arvore em que Judas se enforcou, a figueira da Maldi- ção, e junto d,ella os restos da arcada do traidor 4-, pisaram o logar exacto da prisão de Jesus, á beira da ponte, no co- meço da rua do Captiveiro; andaram no deserto onde o Sal- vador jejuou a quaresma, e sobre o sitio em que Satanaz i Eug. Roger, La terra saincte, g5. 2 Aveiro, Itin., 120; Delia Valle, Viaggi, 1, 428; Eug. Roger, La terre saincte, 123. 3 «E está tam metido dentro da raiz do Monte Olivete, que parece ficar sobterraneo. As paredes & coberto de cima são do mesmo Monte, a terra he como saibro, & pisarra: & da mesma tem no meyo dous esteios que sustentam aquella coua: a qual terra aproueyta pêra muytas infirmidades & a temos lá por particular Relíquia.» — Aveiro, Itin., i55. 4 Eug. Roger, La terre saincte, 1 33. As viagens do Infante D. Pedro 1 1 7 o tentou, ao pé do tumulo de Zacharias, já no fim do valle de Josaphat, para o sul, quasi na raiz do morro do Candal, junto das sepulturas de Jeremias e dos prophetas. Terminada a visita de Jerusalém, jornadearam outra vez para o norte, atravessando a Samaria. Pararam no monte Thabor, onde Jesus Christo appareceu transfigurado aos seus discípulos, Pedro, Thiago e João, resplandecendo-lhe a face como sol, vestido de uma alvura offuscante; e Moysés e Elias vieram fallar-lhe; e os discípulos caíram por terra fulminados por aquella revelação milagrosa da divindade do Mestre e da santa missão que tinha a cumprir em Jeru- salém. O Thabor appareceu-lhes envolvido no seu manto de milagres, coroado de neve, «e uma sepultura mui grande; e quando a gente chega perto desapparece a neve e a se- pultura, e tornando depois a olhar, logo torna a apparecer, que não é Nosso Senhor servido que os homens saibam onde está o corpo de Moysés». O Thabor levanta-se isolado, com a forma de um pão de assucar. Na base mede uma légua de circuito; o cume tem quinhentos passos de diâmetro; e desse terraço, mil metros erguido sobre o mar, avista-se toda a Palestina, salvo Tiberiade e o seu lago que o monte Saron esconde. Tibe- riade, a sete léguas de Nazareth para oeste, não era então mais do que uma floresta de columnas, no meio das quaes habitavam umas dúzias de famílias de mouros1. O lago, 1 Eug. Roger, La terre saincte, 61. Na primeira metade do século xvn, que é quando Roger a descreve, havia em Tiberiade doze famílias de judeus portuguezes, certamente fugidos á perseguição do século anterior. Já no meiado d'esse século, a viagem de Fr. Pantaleão de Aveiro accusa a existência de numerosas colónias de judeus portuguezes e castelhanos emigrados. Em Sapheto moravam mais de quatrocentos (p. 266 a 268), «dizendo-me que seus peccados os auiam tirado de Portugal não pêra a terra da promissão como elles cuidauão: mas pêra a terra da deses- peração, onde se uião & com suas misérias espermentauão». Em Da- 1 18 Os ji lhos de D. João 1 tambcm chamado Genezareth e mar da Galilêa, tem uma superfície de vinte léguas quadradas; o seu aspecto lembrava aos viajantes o golfão do Tejo, em frente de Lisboa1. A sua agua é santa para judeus, árabes e christãos. Nas suas margens, viçosas de pomares, congregavam-se cinco tribus: Manasse, Gad, Issachar, Zabulon e Nephtalin; e dos tempos felizes da Judêa, quando os romanos a governavam, viam-se em torno d'elle as ruinas de numerosas cidades: Tiberiade, reclinada sobre a agua que lhe beija os pés, Capharnaum, Corosaina, Hippos e Bethsaida, onde nasce- ram S. Pedro e Santo André, S. João e S. Thiago, os pescadores galileus que primeiro ouviram a palavra do di- vino Mestre, cuja voz amansou as aguas quando iam na barca, deitando as redes... Entre Bethsaida e Tiberiade, no alto da collina, erguiam-se negras as ruinas das mura- lhas do castello de Magdalon, que deu o nome á formosa Magdalena. E pelas margens do lago sagrado, entre os des- troços das cidades, erravam mouros impenitentes: dez ou doze famílias delles viviam em Bethsaida2. Também o Thabor já se erguera duas vezes coberto de construcções: da primeira nos tempos remotos em que o fi- lho de Aristobulo ahi defendera a independência da Judèa contra os romanos de Vespasiano, commandados por Gabi- nio; da segunda quando Santa Helena poz na montanha um santuário, levantando-lhe três capellas no cume. As rui- nas da cidade antiga, as ruinas das muralhas, as ruinas das igrejas e conventos desappareciam sob as espessas moitas de medronhos, de cambroeiros, de camarinhas e cevadilhas, de alfarrobas e zambujos, erguendo-se no chão coalhado de rosmaninho, esteva e tojo. Bandos infinitos de rolas ge- miam, como a chorar a desolação do monte sagrado de masco, o viajante encontra outra colónia (p. 2j3) ; em Tripol, o porto de mar de Beiruth, «auerá dois mil Judeus, os mais delles Portuguezes» (p. 292). 1 Aveiro, Itin., 264. 2 Eug. Roger, La terre saincte, 62 a 04. As viagens do Infante D. Pedro 119 que os javalis tinham tomado posse, e cujas Íngremes ver- tentes eram absolutamente inaccessiveis por todos os lados, menos um. Na base dessa vereda abrupta, a poente, a al- deia de Tur, habitada por mouros, vivia miseravelmente das espórtulas dos peregrinos: cada subida ao monte sa- grado deixava-lhes vinte soldos'. Transpondo as fronteiras da Galilêa, foram outra vez a Nazareth, e visitaram o ponto onde Nosso Senhor, resusci- tado, appareceu a seus discípulos; depois de terem ido a Hebron, oito léguas distante de Jerusalém, ver a sepultura de Adão. Tinham os mouros posto ahi um templo magni- fico, traçado sobre o risco do de Jerusalém, guardando a gruta onde estão enterrados aos pares, Adão e Eva, Abra- hão e Sara, Isaac e Rebecca, Jacob e Lia: logar vedado aos judeus e christãos2. Para alem da Galilêa, entra-se, e en- traram os nossos romeiros, no campo damasceno, de cujos bancos de terra vermelha e gorda como greda foi que Deus fez Adão3. Levaram desse barro, para relíquia; viram as grutas onde Adão e Eva habitaram depois de expulsos do paraiso, e a bananeira cujo frueto comeram*. Não pode- 1 Eug. Roger, La terre saincte, 55 a 59. Delia Valle chama Tabor á aldeia. — Viaggi, i, 5oo. 2 Gomes de Santo Estevam diz Ecrem: evidentemente é Hebron. — Cf. Aveiro, Itin., 95, e Eug. Roger, ibid., 1 85 e 186. 3 «Os christãos da terra fazem delia rosayros de contas que vendem aos peregrinos: hús da mesma côr natural, >S: outros, que tinge de ne- gro. Os Mouros fazem delia hus bolinhos como pastilhas a que cha- mam Terra Sigilata & os levão a vender a Pérsia, Ethiopia, & Índia: & per todo o Oriente os vendem como cousa muy preciosa & de es- tima. A coua donde a tirão, quanto ao que vi, podem nella caber três homens, aos quaes dará pola cintura. Aífirmão os moradores daquella terra, assi Mouros como christãos, estar sempre em hum ser a terra daquella coua, com tirarem de comino delia.» — Aveiro, Itin., 200 v. Kiepert, Atlas antíq., põe o Paraiso na entrada N. do valle de Bucca, abaixo de Laodicea, num confluente do Orontes. Damasco fica ao sul, fora do valle, a leste do Anti-Libano. 4 «Estas são húas aruores de altura de húa lança, ou quasi: dão hús cachos grandes», etc. Descreve uma espécie de musa que o auetor crê serem «as Bananas do nosso Sã Thomé». — Aveiro, Itin., 32, v. 12o Os filhos de D. João I ram ir a Jaffa, que foi onde Noé construiu a arca do di- luvio1. Toda a historia, sagrada pela religião, lhes apparecia concretamente, com uma nitidez de fabula realista. Jorna- deavam de novo a caminho da Arménia, Syria em fora, esperando que, abençoados já com a santa peregrinação, podessem penetrar nesse Oriente mysterioso, depois do mallogro da primeira investida, quando tinham partido da corte do Turco com o salvo-conducto para atravessar a Ásia Menor. Diz o chronista que chegaram ás serras da Arménia onde a lenda põe a arca de Noé depois do diluvio, no monte Ara- rat (Macis, ou Agri-Dagh), que fica a treze léguas para su- doeste de Erivan. Não é crivei, porém, que fossem tão longe, porque, sendo assim, a narrativa não seria tão summaria, nem tão caprichosa. Os nomes regionaes applicavam-se com uma grande indeterminação, e a Arménia era um d'esses. Progredindo para o norte da Palestina, chegaram talvez até á cordilheira do Libano, sendo forçados a regressar. «Estas serras de Arménia são mui altas, diz Gomes de Santo Estevam, e gastamos em subil-as dia e meio, e por entre as serras passa um rio mui corrente onde se acham pedras preciosas2. Entre estas serras está atravessada a Arca de Noé e da humidade do rio estava a Arca coberta de hervas, e do esterco das aves estava branca como a neve, e nenhum de nós pôde chegar junto á Arca por causa dos grandes bosques e altas serras que por alli havia». Mallograda, pois, a segunda investida para o Oriente, tor- naram ao Egypto; e n^ste ponto a jornada do infante ad- quire um caracter novo. « Eug. Roger, La terre saincte, i85 e 186. 2 Talvez o Lita, ou o Orontes que, nascendo em Balbek (Heliopolis) no centro do valle de Bucca, aberto entre as cordilheiras parallelas do Libano e do Anti-Libano, correm divergentemente, o primeiro para o sul, vindo sair ao mar acima de Tyro, o segundo para o norte, indo confundir as suas aguas com as do Eleuthero que cáe no mar em Ze- mar (Simyra). — Kiepert, Atlas antiq., 82. As viagens do Infante D. Pedro 1 2 i Chegada a caravana a Babylonia, isto é, ao Cairo, en- contraram ahi outro sultão. O de agora era castelhano, natural de Villa Nova da Serena, na Extremadura, e filho de mestre Martins e da Barbuda. Estas indicações positivas, sem relação com as idéas convencionaes do século xvi, em que pela primeira vez veiu a lume a narração da viagem, são mais um argumento a favor da sua authenticidade. Ou já mutilada e interpolada pelo primeiro editor que a teria colligido de algum velho manuscripto, ou adrede acrescen- tada para lhe dar um alcance histórico superior ao da empreza do infante D. Pedro, o facto é que este segundo período da viagem se encontra singularmente confuso e fal- seado. Não, porém, no caso do sultão do Egypto, de certo algum dos muitos renegados que desde então até hoje, e sempre, abundaram nos estados musulmanos. Contou o mameluko a sua historia. Fora feito captivo n'uma correria dos árabes de Granada que o tomaram na sua villa, o mandaram a Fez, e o fizeram mouro. O caso era frequente, e muito mais nas províncias e estados, como o Egypto, em que, pela anarchia do império, o poder caíra nas mãos da soldadesca: tão frequente, que as próprias guardas do sultão do Egypto se compunham de renegados como elle. Em taes circumstancias, corria-se o perigo de encontrar nos renegados uma ferocidade excepcional, origi- nada no remorso; mas succedia também, e foi isto o que succcdeu ao infante D. Pedro, achal-os rendidos pela sau- dade da pátria. O mameluko recebeu os peregrinos de bra- ços abertos e permittiu-lhes que seguissem acompanhados por guardas suas. Seguissem para onde? Parece fora de duvida que cami- nharam pelo valle do Nilo, subindo-o. Pela terceira vez in- vestiam com o Oriente mvstcrioso, em demanda do Preste Joham, e d'esta feita iam por estrada certa e mais segura. Pelos desertos que ladeiam o Nilo, chegaram até Assião, que é sem duvida Assuan (24o 5') no extremo da região in- ferior do rio. Dahi entra-se no desconhecido. A travessia do deserto de Ntnipe pôde ser a da Núbia; e a cidade de 122 Os filhos de D. João I Sarnosa pode ser Samhara, no litoral do mar Vermelho, em baixo, junto ao estreito de Bab-el-Mandeb. O chronista diz, com effeito, que passaram depois á Arábia (e a costa do Yemen fica fronteira) de onde cita o conhecido uso da exposição dos cadáveres, mencionando com exactidão a ci- dade de Saba, que é Mara, Marieba, hoje Mareb ou Sab- biah, entre o Yemen e Mascate, empório do commercio oriental, velha e riquíssima terra d*onde as tradições fazem vir a rainha que visitou Salomão, na era em que esse D. João V da Judêa estabelecia as suas relações commer- ciaes com Ophir, que é a índia occidental, por meio da na- vegação do mar Roxo e do golfo de Akabah, lateral do Sinai, com as frotas construídas nos estaleiros de Asionga- ber1. Se pelo Nilo foram até ao extremo da costa occidental do mar Vermelho, subiram-n'a pelo Oriente até ao Sinai; e o Preste Joham que procuravam, deixavam-no escondido nas suas montanhas acastelladas da Ethiopia. No Sinai, destino já no Egypto indicado á peregrinação, foram visitar o tu- mulo de Santa Catharina, guardado por um batalhão de cento e oitenta frades. Eis aqui a descripção do livro de Santo Estevão: «O logar onde está o corpo de Santa Catharina é acima do mosteiro em uma penedia muito alta, a qual dizem que feriu Moysés com a vara, quando saiu agua em abundância para os filhos de Israel. Em o penedo está um grande si- gnal e esta agua não sae. Em cima d^sta penedia está uma igreja pequena, onde está a sepultura d:esta santa e conti- nuamente estão aqui dois frades de S. Francisco que vigiam o corpo de Santa Catharina que está alli em carne e osso. Ao pé deste penedo estão duas estacas, e uns calabres muito grandes atados n'ellas, e em cima da parede da igreja de Santa Catharina estão outras duas estacas, onde os cavallei- ros estão bem amarrados, e por elles á maneira de escada 1 Cf. Renan, Hist. du peaple d'Isra'èl, n, 1 19 e 120. As viagens do Infante D. Pedro 123 com seus degraus de corda sobem acima, que bem haverá cento e sessenta braças dalto, e os frades do mosteiro, de baixo, de três em três dias lhe mandam três cousas: pão e agua para os frades, e azeite para a lâmpada: e isto mettem dentro duma cesta, a qual tomam os de cima por uma corda que está no alto. E assim, quando hão mister alguma cousa escrevem num papel, e mettem-no dentro da cesta, e de baixo olham o que querem e o mettem dentro, e fazem si- gnal que tirem ao de cima, e logo sobem a cesta. Pedimos licença ao prior para subir acima, que de boa vontade a concedeu. E começamos a subir pela escada, e como nos sentiram os padres de cima, deitaram-se de peitos sobre os degraus do altar, que não lhes pudemos ver a cara. Entra- mos na igreja, a qual é feita de duas pedras só. O chão da igreja e os degraus do altar e do sepulchro de Santa Ca- tharina, onde está o prato em que cae o óleo do corpo da santa, tudo é uma pedra; e o portal da igreja e a abobada d'outra pedra, e d'onde está encaixada, é feito milagrosa- mente por mãos dos anjos. E subindo sobre os degraus se vê o corpo d'esta santa em carne e osso, que está mettido no altar meia vara para dentro. E para que se possa ver sem lhe tocar, está diante uma pedra a modo de rede, mi- lagrosamente feita, e no altar celebram os padres missa. E alli se vê o óleo que lhe sae dos braços, o qual sara todas as enfermidades. Estivemos a fazer oração, e vendo a perfeição da igreja cinco ou seis horas, e depois descemos pela escada de corda para o mosteiro de baixo, e D. Pedro pediu licença ao prior para passar adiante. O prior lhe disse: « — Pois vossa vontade é ir avante, olhai que haveis de passar por terras de infiéis; e vós outros sois treze, e se algum morrer, levai d'aqui treze túnicas em que sejaes en- terrados.» E muito fácil que no Sinai houvesse, por occasião da visita do infante, ermitões stvlitas vivendo á moda habitual desses monges, no alto de penedias inaccessiveis, recebendo a co- mida por vai-vens de corda; mas não é menos verdade que 124 Os filhos de D. João I o chronista da viagem mistura aqui o phantastico e o ver- dadeiro, em doses variadas. No cume do Sinai está a ca- pella onde a tradição reza terem os anjos guardado o corpo de Santa Catharina1; em baixo o mosteiro onde se conserva o cadáver da santa2. O convento, erguido sobre o logar em que a sarça ardente appareceu a Moysés, quando guiava o seu povo para a terra da Promissão, foi primeiro apenas uma capella construida por Santa Helena; mais tarde Jus- tiniano edificou uma vasta igreja e o mosteiro acastellado em volta de cujos muros os alarves do Sinai vinham diaria- mente reclamar alimentos com alaridos ameaçadores. Reza a tradição que Mahomet fora um d'esses nómadas, servindo de moço de camelos aos frades, e que em reconhecimento ordenara se respeitasse por todo o sempre o mosteiro do Sinai3. No Sinai acaba, ao que parece, a descripção da viagem; se porventura não pertence também ao domínio da phanta- sia a excursão da Arabial Do Sinai, D. Pedro deve ter re- gressado á Europa pelo Egypto, atravessando embarcado 1 «... cappelletta che stà nella cima altíssima dei Sinai dove gli An- geli portarono il corpo di Santa Caterina e lo custodirono un tempo. II sasso dove a punto ella giacera è per miracolo, come dicono, gonfio e mostra quasi la figura de un corpo nel luogo dove il suo corpo ripo- sava.» — Delia Valle, Viaggi, i, 356. 2 «Bacciamo piú volte la Santa testa e la mano sinistra, che bellis- sima si vede con tutte le sue dita, carne, & unghie.» — Ibid., 362. 3 Ibid., 345, 7. 4 O Livro ou Auto de Santo Estevam diz ainda que foram á casa de Meca ver o tumulo do propheta (que aliás está em Medina), e des- creve as viagens de D. Pedro na Ethiopia, pintando as terras do Preste Joham com os traços que se encontram nos chronistas do século xvi. (V. a Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias, pelo P. Francisco Alvares, ed. de i520, fielmente reproduzida pela Imprensa Nacional de Lisboa, 1889.) Não é crivei que D. Pedro fosse á Ethiopia, nem que descobrisse o Preste, pois um tal facto não poderia passar despercebido. São evidentes additamentos do editor do século xvi. As viagens do Infante 1). Pedro 12 5 o Mediterrâneo; e percorrendo a Europa1, do sul ao norte, estudando os collegios em Paris2, acaso, conforme a tradi- ção reza, fosse até á Dinamarca visitar o seu antigo com- panheiro de armas na corte da Hungria. Desde a união das três coroas, da Suécia, da Noruega e da Dinamarca, na cabeça da rainha Margarida, a quem Erik I succedêra em 1397, eleito pelas cortes de Calmar, os povos scandinavos, unificados n^m só estado, preten- diam constituir ao norte um império parallelo ao velho im- pério romano, ou germânico, do centro da Europa. O mesmo succedêra na Hespanha, quando Atfonso VI (1072-1109), depois da expansão prodigiosa dos seus domínios, também se chamava imperador. No pensamento politico da Idade média ficara a idéa de que, acima dos thronos independen- tes das nações, tinha de haver um poder suzerano, deno- minado Império, como succedia para a Allemanha e para a Itália; mas esta idéa não se generalisou, nem a Europa se dividiu em impérios, principalmente por causa da consti- tuição moderna da França, que deu ás monarchias um typo novo a imitar. A tentativa de império scandinavo falhou também em 1409, quando Erik I foi deposto*, e se Christovam «o bavaro» ainda conservou a união por oito annos, em 1448 os três reinos separaram-se. Na occasião, pois, da visita de D. Pe- dro, se acaso tal visita se deu, o imperador Erik estava no goso pleno de um poder considerável. Da Dinamarca passou a Inglaterra, onde o achamos no quarto anno do reinado de Henrique VI (1422-1461), isto é, ' A chronica de Nuremberg, ed. de 1493, examinada pelo visconde de Santarém (Essai sur 1'hist. de la cosmog., etc, 111, 23 1) inclue no fo- lio ccxc, Portugália, um grande elogio do infante D. Pedro, regente na menoridade de Affonso V, e diz que elle viajara em quasi toda a Europa. 2 V. a Carta do Infante D. Pedro a seu irmão D. Duarte, escripta de Bruges; ms. do Arch. nac; Coll. de Cortes, vi, pag. 253 a 272; publ. no App. D. I2Ó Os filhos de D. João I em 1420 ', sendo investido na ordem da Jarreteira, a que o seu companheiro de viagem, Álvaro Vaz, já pertencia. Es- treitos laços de parentesco ligavam o rei de Inglaterra e o infante de Portugal, e a esses laços correspondiam os vín- culos apertados das allianças entre os dois paizes. Era uma creança ainda, este rei, primo do nosso infante, e igualmente fadado para um destino cruel. As conquistas de França con- solidavam-se, crescendo a ponto de que em dois annos (1429-1431) Henrique VI, o ultimo dos Lencastres, chega- ria a ser coroado em Paris, quando em Ruão queimavam Joanna d'Arc. Contava-se que a França desapparecesse do mappa da Europa; e D. Pedro, inglez pela mãe, em vés- peras de se aparentar com o duque de Borgonha, tão ini- migo da França como a Inglaterra, e tão interessado como ella no despojo: D. Pedro partilhava a opinião corrente da ruina inevitável da monarchia dos frankos. Joanna dArc salvou-a; as labaredas da fogueira em que a queimaram levantaram o incêndio do amor pátrio; e desde esse momento épico, a roda da fortuna girou inversamente. 1 «About Michaelmas Peter, Duke of Cuímbre, Prince of Portugal, carne into England, and was honorably received and feasted by the King's uncles, and was also elected into the order of the garter» (Anno regni 4. Henry VI) John Stow, The Annales of England (London, 1592), p. 593. — Outro auctor, porém, data de 1422 a visita do infante: «The prince of Portugal, being at this time (nov.-dez. 1422) on his traveis in England, he, vith the archbishop of Canterbury, generously understood to compose the difference between the protector and the bishop; but their endeavours proving unsuccessfull, the duke of Bedford regent of France, and brother to the protector for the good of the pu- blic, judged it necessary to come over to accomodate the affair in con- troversy.» — Ths. Allen, The hist. and antiq. of London, etc, 1, 1 53- Na menoridade de Henrique VI governavam-lhe os estados os dois tios, duques de Bedford e de Glocester, o primeiro em França, e o segundo em Inglaterra com o titulo de protector. Henrique V tinha morrido em França no próprio anno de 1422, quando o herdeiro con- tava apenas oito mezes. Porventura o infante D. Pedro visitasse duas vezes a Inglaterra, uma antes, outra depois da sua viagem ao Oriente. As viagens do Infante l). Pedro 127 Em [45i, com a perda de Bordéus e Bayona, acabou-se o reino de Henrique VI em França, e no anno seguinte, com a rebellião do duque de York, foi-se-lhe o juizo. Pobre rei Lear, depois da longa lueta das Rosas, a branca de York e a vermelha de Lencastre, prisioneiro em Saint-Albans (i-p5;, vencidos os seus em Northampton, em 'Wakefield, em Tow- ton [460-1461 , deposto do throno, exilada a rainha Marga- rida de Anju para França, acclamado o York: pobre rei Lear, acabou preso na torre sombria de Londres! No fim de dezembro o infante embarcou em Dover para Ostende. Ia visitar a Flandres e encontrar-se com o duque de Borgonha, Filippe-o-bom, acaso talvez já para tratarem do casamento da infanta D. Izabel, que veiu a realisar-se quatro annos depois. O duque succedèra a seu pae, Joao-sem-medo, em 14 19, e andava desde 1420 alliado aos inglezes nas guerras que estes traziam em França. Os ílamengos queriam-lhe muito pelo bem que lhes fazia, residindo quasi constantemente en- tre elles. A politica hostil ao rei de França, antigo suzerano da Flandres desde a creação do condado em 862 para Balduino- o-braço-de-ferro, accentuára-se a partir de 1384, quando pelo casamento da condessa de Flandres, Margarida III, de Dam- pierre, com o duque de Borgonha Filippe I, ficavam nas mãos de um mesmo dono os dois pequenos estados que, a norte e a sul, se intercalavam separadamente entre a França e a Al- lemanha. Unil-os, ligal-os, completando a barreira, com a res- tauração da Lotharingia carolina de Verdun (843), era o pen- samento da casa de Borgonha, e foi a ambição mallograda de Carlos-o-temerario, frueto que havia de nascer do casa- mento de Filippc-o-bom com a irmã de D. Pedro, em cuja idea. ao pisar a Flandres, provavelmente se agitavam os planos de futura grandeza da Borgonha. A ambição ligava-se o ódio, e ás esperanças futuras da sua casa o desejo de vingança em que ardia Filippe-o-bom, duque de Borgonha e do Brabante, de Limburgo, do Lu- xemburgo, conde de Flandres e da Hollanda, da Zelândia, do Hainaut, do Artois, de Namur, de Charolais, senhor de ri8 Os jilhos de D. João I Malines, marquez do santo império — «o maior principe sem coroa que naquelle tempo havia na christandade'». Tinha de vingar o assassinato do pae, João-sem-medo, em 1419, na ponte de Montereau, quando fora a Paris para acabar as pazes contra os Armagnacs. Mandara lá, mezes antes, com as suas hostes, o balio de Auxois, Gui de Bar e os senhores de Chatelux e de 1'Isle-Adam; e quando elle pró- prio, foi em setembro, estando com o delphim na ponte, descarregaram-lhe á traição um golpe de espada na cabeça, Tannegui du Ghatel matou-o com a facha de armas, e outro enterrou-lhe a espada pelo baixo ventre, vindo sair a ponta pelo pescoço2! João-sem-medo tinha apenas quarenta e nove annos, e dezeseis de governo. Este caso não podia esquecel-o o filho herdeiro; e D. Pe- dro vinha também de Inglaterra cheio de inimisade pela França. Emquanto os inglezes a assaltavam por um flanco, era de crer que, assaltando-a o borgonhez pelo outro, a vi- ctoria fosse segura. Não foi: a França expulsou o inglez e esmagou a Borgonha. As ambições do infante, se acaso formava taes perspectivas, eram illusorias . . . No dia seguinte ao do desembarque em Ostende (22), es- tava D. Pedro em Udenburgo3, onde pernoitava, segundo o uso desses tempos, na abbadia do logarl O senado de • Azurara, Chron. do conde D. Pedro, n, p. xxvi. 2 «. . .llamado a íabla por elrey de Francia oy viviente fue muerto de una fachada en la cabeça por cierto fea: e falsamente por mano de Tanequim do Chateio. — Glosas ao poema do Condest. D. Pedro, na ed. de 1478, Saragoça, n. 776 dos reserv. na Bibl. nac. de Lisboa, fl. 8. 3 Arch. du Franc. de Bruges, varia n. 102, ann. 1420-1430 (arch. de VEtat). — Os registos da passagem de D. Pedro pela Flandres foram ex- tractados em 1872 dos cartórios de Bruges e Gand pelo sr. Emile van den Busche, a pedido do sr. M. d'Antas, de quem o A. os houve. 4 Dep. pour méssages: Le 22 décembre (1425) a Guillaume Haghe- lin envoyé à Oudenbourg à la rencontre du fils du Roi de Portugal, pour un jour xx gros — valent xx sous». — Comptes de la ville de Bruges pour les ann. 1425-1426 n. 3z. 480 de YInvent. impr. des reg. des eh. des comptes. As viagens do Infante I). Pedro 129 Bruges mandára-lhe ao encontro um enviado1, c preparou- lhe uma recepção festiva. Logo no dia da chegada, que foi um domingo, e depois no immediato, que era véspera de na- tal, o senado ollereceu ao infante o «vinho de honra2» con- forme os usos tradicionaes flamengos, repetindo-se a cere- monia no Anno-bom de 1426 e no dia de Reis3. Neste dia foi D. Pedro com o seu séquito encontrar-se com o duque de Borgonha, Filippe, seu futuro cunhado, no castello de Wynendale, onde lhe estava preparada uma caçada de monte4; e no ultimo do mez a cidade de Bruges deu-lhe o espectáculo de um torneio, no Buerch, uma recepção no se- nado e á noite um baile5. Bruges empenhava-se em feste- jar condignamente o amigo do seu duque. 1 «XXa secunda die mensis decembris, ann. D.ni mccccxxv illustr. prin- ceps Petrus fil. regis portucalensis, visitav. ca'nobium et ecclesiam nos- tram». — Arch. de l'Etat; abb. d'Oudenbourg. Annot. histor. Inv. litt. v, 2. 2 « Dec. 23, dimanche. Oífert à Dom Pierre, tils du Roi de Portugal : 24 cruchons, tout en amer, payés à Jean de Bicke à 7 gros le cruchon, 141.» — «Dec, 25 mardifjour de Noel. Achete à Pierre Bustyn: 18 rasiè- res et 5 cruchons de vin qui fut offert au bailli, bourgmestre, échevins et autres qui ont 1'habitude d'avoir du vin, et tous ceux que com me le fils du Roi de Portugal, etaient ici, etc.» — Arch. de Bruges; reg. des eh. des comptes, cah. 1425- 1426. 3 uJanvier 1" mardi: A Monseigneur le chancelier — 16 cruchons à 8 gr. 101. 8. Au fils du roi de Portugal — 24 cruchons. A Monseigneur de Tornai — 16 cruchons. ■ Janvier 6. dimanche: A Monsigneur de Tournai — 12 cruchons à 8 gr. Au fils du roi de Portugal — 24 cruchons. Aux deputes de Gand — 12 cruchons. Aux dçputés d'Ypres — 4 cruchons. Arch. de Bruges; reg. des eh. des comptes, cah. 1425-1421''. 4 Arch. de 1'Etat, à Bruges. Justif. de comptes. n. 921. 5 «Dépenses pour choses diverses: Le 3o janvier, donné pour frais faits chez Dolius vau Thielt, ou les bourgmestres, échevins, trésoriers, notables et autres officiers de la ville soupèrent lorsque le fils du roi de Portugal assista ao tournoi au Buerch : xxxm sous v deniers gros, valent xx livres, xiii sous. — Item. Donné à Corneille Jordaen doyen des boueurs pour avois arrangé le íumier au Buerch, avec ses compagnons i3o Os filhos de D. João I Em abril, depois da Paschoa, o infante partia para Gand, onde, recem-vindo, o esperava o duque de Borgonha. Adiante mandava um arauto annunciando a sua chegada1, e hospeda- va-se no próprio palácio de Filippe-o-bom. Um anno ou mais se demorou pela Flandres, em com- panhia de seu futuro cunhado, vendo, observando, estu- dando. Carteava-se com D. Duarte que, como sabemos, havia annos que tinha o governo do reino; e de Bruges nos ficou uma longa carta ao irmão, que é um programma po- litico inspirado nas generosas idéas communs á geração de Aviz2. Da Flandres desceu pela Hungria a Veneza, na primavera de 1428, talvez por causa do seu ducado de Treviso, fron- teiro á republica; e de certo para colher informações acerca dos estudos novos que o commercio veneziano provocava, planos de descoberta que, bem o sabia, accendiam as am- bições e esperanças de seu irmão Henrique. A republica attingia n;esse periodo o fastígio de um poder conquistado desde os tempos obscuros em que, apavorados pelas invasões de Attila, os venetos se tinham miseravel- mente escondido nas lagunas do Rialto, refugiando-se entre os lodos das ilhas. Distantes eras! Diversa fortuna! Nos dez séculos decorridos, tinham assistido á derrocada do impé- rio occidental, e encostados a Byzancio saqueavam dia a dia o império oriental; emquanto do lado opposto o árabe, depois o turco, o desmembravam. Esses dez séculos tinham sido um progredir constante. Rainha no Adriático, Veneza disputava a Milão o dominio da Lombardia, imperando no Mediterrâneo com as suas colónias e feitorias espalhadas por toda a velha área grega. quand eu lieu le tournoi en honneur du fils du Roi de Portugal: xvi s. gr. valent ix livres xn sous.» — Comptes de la ville de Bruges, 1425- 1426., n. 32.480, etc. 1 «Avril. . . Donné en present au héraut du fils du Roi de Portu- gal: nu se, gr.» — Extr. des comptes de la ville de Gand, 1425-1426. 2 V. App. D, no fim do vol. As viagens do Infante 1). Pedro i3i Attingindo no século xv a culminância do seu poder, Veneza, sobre a rede dos canaes onde vogavam silenciosa- mente, negras como esquifes, dez mil gôndolas, cruzando-se debaixo de quinhentas pontes, apresentava ao viajante um aspecto ao mesmo tempo deslumbrante e singular. O es- plendor dos palácios, o luzido dos mármores, as illumina- ções das vidraças coloridas, estonteavam a vista, sem que o ruido próprio das grandes cidades ferisse os ouvidos. A rua que liga a praça de S. Marcos ao Rialto era uma feira onde todos os géneros preciosos appareciam expostos á venda em bazares intermináveis: pedrarias e perfumes, al- faias e especiarias, brocados, marfim, os produetos do Oriente e os da Europa, entre os quaes os livros e os vidros de Ve- neza tinham uma primazia absoluta. O arsenal e o the- souro, um encerrado no seu cinto de muralhas torreadas, outro escondido nas cryptas de S. Marcos, guardando o corpo milagroso do patrono da cidade, a coroa de Chypre e de Creta, e os dois carbúnculos tamanhos como ovos de franga, eram das maiores maravilhas da cidade singular nas- cida do casamento com o Adriático, todos os annos cele- brado ainda1. O commercio inteiro das regiões distantes vinha parar a Veneza; os seus navios mandavam nos pró- prios mares da terra dos turcos. Commissarios e mercado- res penetravam em toda a metade oriental do mundo; e em 1270 Marco Polo escrevera as suas viagens tão singula- res que pareciam phantasticas, e por isso andavam na ima- ginação de todos. D. Pedro entrava em Veneza quasi como um soberano vizinho: duque da marka de Treviso, que neutro tempo per- tencera á republica, e d onde ella extrahia as madeiras para as suas frotas, por onde seguiam as estradas que a punham em relação com o centro europeu. Trazia comsigo o in- fante um cortejo de trezentos cavalleiros, e a republica, de- cidindo recebel-o faustuosamente, mandou ao seu encontro 1 Aveiro, Itin., c. 1. i32 Os filhos de D. João I quatro embaixadores. Esperava-o o doge com os senhores da cidade, na galé sacrosanta da republica, o Bucentauro, no meio de uma frota magnifica de gôndolas e barcas em- pavezadas e guarnecidas de tropa. A republica hospedou á sua custa o infante e o seu séquito, enchendo-os de dadi- vas, repetindo as festas publicas com centenares de donas esplendidamente vestidas de sedas, de velludos, de brocados de oiro, nesse deslumbramento de cor que a escola dos pintores venezianos fixou para a historia, mais brilhante- mente ainda do que as narrativas dos chronistas. D. Pedro saiu de Veneza a caminho de Roma, e os gen- tis-homens da republica foram acompanhal-o até Chioggia, seguindo com elle uma escolta até Ferrara1. De tudo quanto levava de Veneza, nada, porém, lhe valia mais do que o exemplar das viagens de Marco Polo que a republica lhe dera em agradecimento pelas liberdades de que os venezia- nos gozavam em Portugal2, e os mappas das regiões lon- i «D'Ungheria da Marco Dandolo orator nostro s'ebbe come veniva in questa terra um figliuolo dei Re di Portogallo, nominato Don Pedro, per andare a Roma dal Papa. E fu determinato di fargli grand' onore. Gli furono mandati incontro quatro ambassiatori à quali egli vede gra- ciosamente. E giunto à Mestre, Messer lo Doge colle Signoria gli ando incontro sino à Marghera col Bucintoro e con molti palischermi e bar- che armate. Allogió alia casa dei Marchese e fattegli le spese finchè stette qui e datigli assai doni e fattegli feste, sulle quale erano da 3oo donne, la maggiore parte vestite de panno d'oro e di seta e assai vel- luti; ai suo partito fue accompagnato da molti gentil-huomini fino à Chioggia, il quale ando poi ai suo viaggio. Aveva con lui cavalli 3oo à quali per la Signoria furono fatte le spese e 25 gentil-huomini 1'accom- pagnarono fino à Ferrara.» (meado de março de 1428) — Marino Sanudo, Vihv ducum venet.; in Muratori, Rer. italic. script., xxn, 999. 2 «E no tempo que ho Iffante dom Pedro de gloriosa memoria nosso tio, chegou a Veneza. E depois das grandes festas e honrras que lhe foram feitas polas liberdades que elles têe nestes nossos regnos, como por ho elle mercer, lhe offereceram em grande presente ho livro de Marco Paulo que se regresse por elle, poys desejava de ueer e andar polia mundo». — Trad. de Marco Polo, por Vai. Fernandes; pref. da ed. de i502, no ex. da Bibl. de Lisboa. Cf. Santos, Mem. s. dois ant. map- pas, etc. 276. As viagens do Infante D. Pedro 1 33 ginquas, preciosos thesouros que encheriam de satisfação o infante D. Henrique. Em maio de 1428 estava o infante em Roma, onde Mar- tinho V o recebia paternalmente, dando-lhe como presente da passagem a bulia que concedia aos reis de Portugal o serem ungidos na sua coroação, como os de França e de Inglaterra, e o poderem os infantes reger o reino como fi- lhos primogénitos e haver coroa de rei1. Assim o papa sanc- cionava o facto que se dava com D. Duarte em Portugal. De Roma, por terra, passou directamente á Hespanha, a caminho de casa, encontrando-se em Penafiel, junto de Valladolid, na confluência do Douro e do Duranton, com o rei de Navarra2, irmão de sua futura cunhada, a mulher de D. Duarte. Repousava, finalmente, depois de dez annos de longas e dilatadas viagens. Vira, pôde dizer-se, o mundo inteiro. Por todo elle honrara o nome portuguez, deixando um rasto de saudade e amor em todas as cortes que visitara. Portugal ficou engrandecido com a viagem de D. Pedro; e o enlace de Borgonha, se as ambições d'essa casa tivessem vingado, fariam da família de Aviz, ligada á casa de Lencastre, a maior dynastia da Europa. Trazia D. Pedro um thesouro de lição e experiência como ninguém possuía em Portugal, e vinha encontrar o pae caduco, um dos irmãos inteira- mente absorvido pelos seus planos de descoberta e de con- quista, o outro vergando sob o peso da administração in- terna do reino a ponto de prejudicar a saúde. 1 V. a bulia Venit ad prae sentiam nostram dilectus filius nobilis vir Petrus, Dux Colimbriccncis, etc. 16 maio 1428; no Arch. nac, liv. i.° dos Breves, foi. 52; publ. em Sylva, Memorias, etc, doe. 21 ; iv, 148 e 149. 2 (1428) «Salió de Tordesillas (o rei de Navarra) teniendo-le elrey de Castilla compania en media legoa y caminó a Penafiel y, en esta villa, estando adereçandose para venir á Navarra, le llegó D. Pedro, in- fante de Portugal que vénia de ver las cortes de los príncipes christia- nos, y aviendole hecho muchas fiestas le presentó dos cavallos sicilia- nos y fue a Portugal." — Garibay, Comp. historial de las Cron. y univ. hist. de todos los reynos de Espana (Amberes, 1571) 111, 437. 134 Os filhos de D. João I Era, pois, tempo de voltar, cuidando da politica interna- cional portugueza. Num regimen de monarchias aristocrá- ticas, como foi o da Europa no principio da Renascença, os casamentos dynasticos eram os principaes actos para as relações externas dos povos. D. Pedro, de regresso á pá- tria, resolveu desde logo encerrar á sua vida o periodo das aventuras, casando-se. Escolheu para esposa a princeza Izabel, filha do duque de Urgel, que disputara em tempos (1410-1412) a coroa do Aragão ao pae da rainha de Cas- tella e da futura rainha de Portugal, que eram irmãs. Estes casamentos provinham da passagem do infante por Hespa- nha; mas da velha rivalidade das familias de Urgel e de Castella veiu também o azedume da rainha D. Leonor para com D. Pedro, origem de futuras e deploráveis discórdias. Logo em setembro de 1428 casou D. Duarte: uma quarta- feira. Na sexta-feira precedente, chegara o infante D. Pedro a Avellans, e em Coimbra achava o irmão gravemente en- ternecido pela noiva, rendido a seu lado, ouvindo-a cantar e «tanger o minicordio», sem querer saber de caçadas e di- vertimentos. Com D. Leonor tinham vindo o arcebispo de Santiago e o bispo de Cuenca; por parte de Portugal esta- vam os arcebispos de Lisboa e de Braga, mais o bispo de Coimbra e o de Ceuta com todos os infantes. O casamento celebrou-se em Santa Clara, desmaiando a noiva no fim da ceremonia «pola opa que era muito pesada e pelo esquen- tamento da gente d"aquelles bons que hy estavam e das to- chas que era grande». Quizeram-na levar, não pôde; bor- rifaram-na com agua e acordou1. Triste presagio, para o futuro rei malaventurado! Depois de casado o herdeiro da coroa, casou D. Pedro, em 1429-, e n'esse mesmo anno se realisaram também as bodas da infanta D. Izabel com Filippe-o-bom da Borgonha, cujo 1 Treslado da própria Carta que ho I/ante D. Anrique escreveo a El Rey D. João o I. de Portugal seu Pay, porque lhe deu conta de como se fe^ o casamento do I/ante D. Duarte primo- genito em Coimbra; publ. em Sylva, Mem., etc, 11, 470. As viagens do Infante D. Pedro 1 35 hospede fora o infante nas suas viagens. No fim de 1428 tinham chegado como embaixadores do duque a Lisboa1, o senhor de Molembai, depois elevado, em paga da missão, a duque de Saint-Albin; o senhor de Rombais e muitos ou- tros cavalleiros que, levando a infanta por mar, chegaram pelo Natal á Eclusa, effectuando-se as bodas em Bruges a 10 de janeiro. Foram festas memoravelmente estupendas: oito dias de kermesse, coroados pela instituição da ordem do Tosão de Oiro2. O duque era o Jason que roubara dos confins occidentaes do mundo o berço salvador de Phryxo e de Helle, vencendo o dragão, e alcançando a mão de Izabel de Portugal, a nova Medea. . . Também o infante D. Pedro, concluída a sua viagem, acreditava ter fundeado no porto seguro da paz domestica, depois de conquistado esse outro tosão de oiro da sabedoria, feita de experiência do mundo! Pobre sábio que ignorava ainda a vaidade amarga da pró- pria sabedoria! Os seus conselhos, as suas idéas, os seus pla- nos, concatenados com firmeza, cimentados com prudência, dissiparam-se como fumo, varridos pelo vento da insânia, quando a sorte, lançando-o nos azares da ultima viagem pe- las partidas obscuramente procellosas do governo, o levou ao porto fúnebre de Alfarrobeira. Essas datas radiantes do casamento dos três irmãos, D. Duarte, D. Pedro, D. Izabel, entre festas engrinaldadas 1 D. Duarte recebeu magnificamente a embaixada do futuro cunhado. Entre outras festas brindou os embaixadores com uma ceia que ficou memorável. «N'esta ceia deu o senhor infante primogénito grandes dadivas e larguezas aos frautistas e menestréis, as quaes foram trazidas a cavallo e altamente publicadas por toda a sala, e tocaram mui con- certadamente as trombetas e outros instrumentos.» — V. a Rei. da emb., etc; ftis. n. 11.20 da bibl. nac. de Paris; extractada por Santarém, Quadro elem., m, 43. — Gachard, Coll. de doe. ined. sur 1'hist. de Bel- gique, 11, 63-qi, publicou integralmente a relação. 2 Sylva, Mem., etc, 1, 5i6. — Com o embaixador Balduíno de Lanoy, senhor de Molembai, vinha o creado do duque, João van Evck, o cele- bre pintor. — V. o nis. n. n.2i5 supracitado da bibl. nac. de Paris. — Cf. Raczynski, Les arts en Port.> 197. i30 Os filhos de D. João I de esperanças e ambições, tinham o gérmen das catastrophes mais cruéis. O calvário de Tanger distava para D. Duarte cinco annos apenas; mais remota, mas não menos segura, assobiava no ar a setta, hervada em perfídia, que matou D. Pedro. E mais longe ainda, o frueto das bodas de Bor- gonha, embalado no vellocino de oiro de ambições magni- ficas, morria também no dia trágico de Nancy (1477), le- vando comsigo para a cova o sonho da reconquista do velho império de Lothario. V UM ESTADISTA DO XV SEGUI. O uando casou, contava o infante D. Pedro trinta e sete annos, e com a experiência ganha em tão di- ' latadas viagens, estava senhor de um saber enca- necido. O decennio {1428- 1439) que medeia entre a sua volta a Portugal e a morte de D. Duarte, empregou-o a viajar pelas remotas paragens do pensamento. Vira o mun- do por fora: queria ver agora a medulla das cousas. Estu- dara os homens e os seus actos: agora queria estudar as idéa se os pensamentos que regem o mundo. Era um homem alto, secco, bem feito, com o rosto com- prido, o nariz cheio, a barba, que usava toda, e os cabei- los ruivos, como inglez, e nos olhos azues uma vaga ex- pressão de molleza, a denunciar o feitio contemplativo do seu espirito, a fleugma saxonia do seu génio. Tinha os de- feitos inherentes a essa espécie de temperamentos: a apa- thia, que se lhe denunciava no fallar arrastado e aceusa- i38 Os filhos de D. João I damente indifferente, com uma affabilidade convencional; a teima, própria dos homens saturados de idéas, e por isso in- capazes das decisões súbitas e inconscientemente volúveis; a cólera explosiva, falseando em relâmpagos, natural nos contemplativos em que a vontade habitualmente não func- ciona, e que por momentos se vingam, com a violência ex- cessiva, da sua falta ordinária de energia. Mas tinha tam- bém as qualidades preciosas da gente que vive por inclina- ção com as cousas ideaes, estranha ao mundo, e, portanto, compassiva no meio das suas fraquezas, discreta e sensata no meio dos seus arrebatamentos. Alem de tudo o que a origem saxonia da mãe lhe trouxera para o sangue, dera-lhe ella ainda uma bondade inexcedivel, uma gravidade rara, e um tal respeito e modéstia, que não permittia que os eccle- siasticos lhe beijassem a mão, nem ajoelhassem diante d'elle. Profundamente christão, jejuava com frequência, e na qua- resma dormia vestido sobre um molho de palha1. Vê-se, pois, quanto era o contrario do infante D. Henri- que. Este esquecia o homem pelo mundo, escravisava-o á acção, com a vista e a vontade alongadas para o futuro; emquanto D. Pedro, caracter subjectivo e philosopho, tor- nando para dentro de si próprio a vontade e a vista, con- sumia-as a indagar o segredo dos enygmas moraes. A final, os dois irmãos achavam-se ambos empenhados numa tarefa similhante, absorvidos por uma idéa parallela de descoberta: um, a do mundo que é considerado real; outro a do que, existindo só na mente dos ideólogos, passa por phantastico. E qual d'elles, a final, será o verdadeiro? E qual das duas vocações valerá em absoluto mais para o fim mysterioso do Universo? Os dez annos que decorrem entre o casamento de D. Pe- dro e a morte de D. Duarte foram de certo os d'essa se- gunda viagem, em que se deitou a visitar as terras vastas do pensamento humano. Explorando a Antiguidade, traduzia o • Ruy de Pina, Chron. de D. Affonso V, cxxv; nos Ined. da Acade- mia, ii, 4Ò1 e 433. Um estadista do xv século 1 3g De Officiis, de Ciccro c o De re militari deVegecio1; recor- dando-se do que vira pela Europa e do que aprendera no De regimine principum, de Gilles de Colonna, ou de Roma, traduzia também esse primeiro cathecismo das monarchias modernas da Europa3, composto para a educação de Fi- lippe-o-bello de França, e que nem uma noite D. João I passava sem ter á cabeceira. Para seu irmão Henrique, punha em linguagem o livro de Marco Polo que a Senhoria de Veneza lhe dera, conforme vimos3. Absorvido o saber clássico, lidos os auetores modernos, formado o espirito, como instrumento e como órgão do pensamento, o infante aventurava-se a navegar nos mares ainda obscuros da especulação juridica e moral, definindo as suas idéas próprias e intercalando as suas cogitações com phantasias poéticas, á moda do tempo. Cartcava-se com João de Mena, o principe dos poetas castelhanos d'aquella ndc não houvesse juizes especiaes dos pleitos mixtos, crea- dos pela lei1. Todas as questões íiscaes corriam pelos juizes respectivos2. Na jurisprudência de um tempo, em que o habito de escrever não estava ^eneralisado como hoje, a prova tes- temunhal era mais do que eminente: era, pôde dizer-se, exclusiva. Comprehende-se, pois, quanto importava para os judeus este ponto, principalmente porque, sendo o ju- ramento um acto religioso, o judeu, como réprobo, era tido por testemunha imperfeita, senão falsa. O seu juramento ou não valia, ou era herético. O direito achava-se, n'esta espécie, constituído pelas duas leis de D. Diniz: a primeira de Coimbra, de 1 de janeiro de 1294 (E. i332), a segunda de Santarém, de 27 de julho de 1 324 (E. i362)3. Ahi se estabelecia a doutrina das testemu- nhas mixtas, determinando-se que em pleito de christão contra judeu, quando o auetor desse testemunha christã, o réu tivesse de fazer outro tanto4. O réu christão podia sus- tentar a excepção com testemunhas, exclusivamente da sua crença: não o podia, porém, o judeu. O testemunho exclu- sivo de judeu não valia em pleito entre judeus, nem entre christãos, sem vir corroborado por depoimento de christão, salvo em casos excepcionaes de crime de morte5. Em com- pensação de todas estas incontestáveis inferioridades, os ju- deus gosavam da regalia, concedida por D. João I, de não poderem ser constrangidos a ir ás audiências ao sabbado1'. Mas que revoltas, capciosamente reprimidas, agitariam os ânimos d^ssa gente, paradoxal na submissão externa que encobre uma tenacidade e uma força psychologica tão rija como o aço! Tinham cartas, tinham foros, tinham garantias; 1 Orden. affons., n. 2. 2 Ibid., n. 3. 3 Ibid., 11, 4 Ibid,, n. 2. 3. 5 Ibid., n. 7, 8, 9. 6 Ibid., 11, 90. 1403 (E. 1441). i3 i g4 Os filhos de D. João I mas sentiam-se aviltados e inimigos no meio de uma socie- dade que os apertava, como o mar cercando os recifes, n'um cinto Âagellante de ameaças. Eram parias-, eram menos do que os christãos, elles que, com um desdém intimamente transcendente, se consideravam maiores do que todos, em virtude, porém, de uma força ainda por cotar no mercado do mundo. Curvavam-se com humildade felina, para for- mar o salto e desembainhar a garra. Caçavam na grande floresta da gente christã vencedora! Humilhações, confiscos, açoites, a mina e o patíbulo: ar- rostavam submissos com tudo; minando, porém, incessan- temente uma sociedade que, ou os havia de exterminar a elles, ou ser por elles devorada. Na Hespanha, exterminá- mol-os com effeito; mas sobre nós refluem agora, fortes e cheios, das terras onde venceram. . . Ao anoitecer dobrava o sino, chamando-os á judiaria, e ahi tinham de se encerrar, guardados ás portas por sen- tinellas, sob pena de perderem a liberdade e os bens, pois esse era antigamente o castigo do judeu encontrado á noite fora da communa1. D. João I moderara a pena, estabele- cendo, porém, a multa feroz de cinco mil libras pela primeira vez, o dobro pela segunda, e á terceira açoites em publico2. É verdade que as excepções eram tantas ! Se vier do campo e lhe anoitecer no caminho, se vier em barca, de viagem, ou por motivos de lavoura, ou por necessidade de oíficio, não ha multa3. E fora das villas e logares podem andar de noite; e indo com christão podem andar por toda a parte na cobrança das sizas reaes**. Lembremo-nos de que a dynastia dos Navarros tem o senhorio da administração da fazenda. Por isso o farrapo vermelho, uma estrella de seis pontas, que a lei lhes mandava trazer sempre em evidencia sobre 1 Ordcn. ajfons., n, 76 e 80. Lei de D. João í; Lisboa, 12 de fevereiro 1412 (E. 1450) n. 1. 2 Ibid., n. 2. 3 Ibid., n. 5, 6, 7, 8, 9. 4 Ibid., n. 10, 11. As ordenações e os judeus io,5 o peito para os denunciar: esse attestado cruel da sua in- ferioridade, escondiam-no, cobrindo-o, contra o preceito da mesma lei, com as capas e gibões luxuosos, e atrevendo-se ate a usar de armas, uso terminantemente prohibido. A longa crise do reinado de D. Fernando, os apuros da guerra civil e do estabelecimento da dynastia de Aviz, eram para elles uma providencia, pois folgavam, como agora impam com a penúria atllicta das nações. Comprehende-se por tudo isto o empenho que os reis po- riam em fundir no corpo da população nacional essas com- munas de judeus enkistadas dentro delle; e comprehende-se também, apesar das humilhações e soífrimentos dos israeli- tas, a resistência á absorpção. Absorpção significava baptis- mo. Convertidos, ficavam portuguezes; porque essa nação dos judeus tinha desde os tempos remotos de Babylonia e dos Prophetas, o caracter singular de estabelecer o seu vin- culo na religião apenas. Eram uma igreja sem pátria. Já desde as epochas até certo ponto distantes de Alfon- so II que a lei regulava as partilhas em caso de conversão de um tilho de judeu. Convertido, herdava logo, como se o pae lhe morresse1; e aquelle que, entrando no grémio do ca- tholicismo, voltasse á heresia, e o que, tendo nascido chris- tão, se fizesse judeu, pagavam com a vida a apostasia2. 'lai era, nos seus traços lundamentaes, a struetura da communa de judeus portuguezes ao findar do xiv século. A independência de Portugal fôra-lhes benéfica: encontra- ram no extremo occidente da Península um refugio aberto contra as perseguições intermittentes no resto da Hespa- nha. O espirito das populações não lhes era entre nós menos hostil, mas era-lhes mais favorável, sobretudo mais constante, a protecção dos governos. Essa protecção nunca foi maior do que na segunda me- tade do xiv século; e a immigração abundantíssima produ- zida pelas matanças geraes de i3çji em Castella e no Ara- 1 Orden. affons., n, 79. 2 Ibid., 11, o5. 19o Os filhos de D. João I gão', quando em Portugal Mosseh Aben Navarro, nomeado por D. João I physico mór e seu almoxarife, reunia a estes cargos eminentes o de rabbi mór, ou rei dos judeus, muito mais lhes augmentou a influencia e o poder. Já então, para prevenir em Portugal a reproducção das tragedias aragone- zas e castelhanas, o rabbi mór obtivera d^l-rei o beneplácito para as bulias papaes que citámos. A bulia de Bonifácio IX é de 1089, e as grandes matanças foram dois annos depois. Mas este próprio poder e influencia, e os abusos conse- quentes, haviam de produzir uma reacção. E produziram-na, mas não tumultuaria e sangrenta como depois foi, a partir da primeira matança de Lisboa em 14492 , prologo das fú- nebres tragedias posteriores. A reacção em Portugal come- çou pelo governo, e tem como órgão D. Duarte. E desde que o pae lhe entregou o regimento da fazenda e da justiça, nas vésperas de Ceuta, que o principe legislador, absorvido pela codificação das Ordenações, se extenua e adoece revendo as leis dos judeus, exaltada a cabeça pelas ambições do seu génio escrupulosamente religioso. Os judeus eram uma anomalia, e essa anomalia uma im- piedade. O povo tinha rasão na sua antipathia, e desculpa na sua deshumanidade cheia de inveja. Cumpria ao fim ideal da nação e á harmonia esthetica do estado eliminar es- sas nódoas que mosqueavam o reino, communas dispersas por todas as suas cidades e villas; urgia exterminar essa gramma que se alastrava pelo meio da seara doce dos fi- lhos de Jesus. Dos judeus recebêramos, como christãos, a idéa exclusiva do fim transcendente da existência social; e contra os judeus nos voltávamos armados com esse legado religioso, pois não havia no mundo logar para mais do que um Deus. Mas o idealismo d'esta epocha era ainda humano; 1 Rios, Hist. de los judios, etc; 11, 456 a 463. 2 Herculano, Da origem e estab. da Inq., 1, 92 e segg. As ordenações e os judeus 197 a chamma que depois se ergueu crepitante, dormia ainda mansamente. As rasoes da prudência e"da humanidade pe- savam muito. Por tudo isto, as reformas de D. Duarte pro- põem-se apenas a accentuar, a augmentar quanto possível, a separação dos judeus, cortando cerce todos os abusos, eliminando todos os motivos de influencia por contacto, au- gmentando as tentações com as regalias concedidas aos apóstatas. Propósito de perseguição, idéa de exterminio, ainda não surge. Mais tarde virá. As reformas de D. Duarte, tanto as que preparou quando infante, como as que promulgou durante o seu reinado, e as da regência de D. Pedro, que foi quando as Ordenações viram a luz: todas essas leis se inspiram no mesmo pen- samento de repressão que dictára para Castella o Ordena- miento de Valladolid ^141 2), adoptado também no Aragão, e as Constituciones de Valência1. A reacção contra as liberdades que os judeus iam to- mando, confundindo-se abusivamente com a sociedade enris- ta, caracterisa-se em primeiro logar por uma serie de dis- posições restrictivas. Sob pena de uma multa de mil dobras, prohibe-se ás sés, aos mosteiros, ás ordens e á fidalguia que tenham judeus por vedores, mordomos, recebedores, con- tadores ou escrivães. O judeu que exercer qualquer d'estes cargos levará cem açoutes publicamente2. Os abusos eram muitos e muito graves. Judeus vinham ás igrejas, entrando nellas para receberem ahi as offertas, assistindo affrontosa- mente aos oflficios divinos, acolytando até e ministrando os altares, com grande escândalo do povo contra os clérigos3. Prohibiu-se pois que os judeus tomassem de renda os bens de mosteiros, sés, capellas ou igrejas, sob pena de cem açoutes dados em publico c multa de cincoenta mil libras, para o denunciante'. • Rios, Hist. de los judios, etc. ; 11, 514 a 26. 2 Orden. affons., 11, 85. ■; Ibid., 11, 68, n. 1 . ■\ Ibid., n. 2 e 3. iq8 Os filhos de D. João I A excepcional capacidade commercial e administrativa dos judeus, especialmente entre os povos meridionaes, encon- trava n'estas disposições um correctivo. Atacar o judeu na bolsa, era atacal-o na própria alma. Mais longe foi, porém, D. Duarte. Equiparando-se aos christãos, os judeus iam também gosando das isenções de portagens e passagens concedidas por foral a certas villas, como se fossem moradores delias; quando em facto, ainda que ahi residissem, eram vizinhos sempre da sua judiaria, collocada pelas leis fora do grémio da nação dos christãos. Prohibiu-se, pois, o abuso, sujeitando-os ao imposto, uma vez que «os infiéis não são vizinhos1». Era a boa doutrina. Querendo por outro lado insinuar-se, mercê da riqueza, no grémio da gente nobre, os judeus valiam-se também do pri- vilegio da Avoenga, prelação na compra dos bens dos ante- passados, que foi a principal origem da propriedade vincular em Portugal. Coarctou-se igualmente o abuso, declarando a lei que o privilegio se não entendia com os judeus, mas que sendo o neto christão podia, sim, tirar os bens de raiz se o comprador fosse judeu2. Cortados por tal forma os tentaculos com que os judeus abusivamente sugavam a sociedade económica, era também necessário obviar ás desordens constantes provenientes da relaxação da policia das communas. Os judeus saíam del- ias armados, e, sob pretexto de festas e divertimentos, pro- vocavam rixas e motins, quando o uso das armas lhes es- tava formalmente vedado. Determinou-se que em tal caso a communa pagasse a multa de mil dobras de oiro, os réus perdessem as armas, e, havendo lucta, morresse o provo- cador3. Mas, sendo, com effeito, excessiva** esta pena que tornava solidariamente responsável a communa pelo crime ' Orden. affons., 11, 69. 2 Ibid., 11, 70. Santarém, 19 de agosto de 1898 (E. 1436). 3 Orden. affons., 11, j5, n. 1 e 2. 4 1.000 dobras a 2^793 réis (Cf. Aragão, Descr. geral, etc; u, 23j) são quasi 2:800^000 réis, que equivaleriam talvez ao sextuplo hoje em dia. As ordenações e os judeus 199 de algum dos seus membros, D. Pedro, quando regente, mandou que a communa somente fosse multada quando ti- vesse prévio conhecimento da saída, e, não o tendo, os réus fossem presos e seus bens confiscados, salvo a meação das esposas1. Pelo que diz respeito a garantias judiciaes não foi menos severa a reacção. Prohibiu-se o uso do hebraico nos instru- mentos públicos lavrados por tabelliães judeus, mandando-se que todos fossem lavrados «per linguagem ladinha portugue- za» sob pena de morte primeiro2, depois reduzida a açoutes públicos e perda do ofticio3. E se D. Duarte reformava a lei antiga de i36i4, atrás registrada, com referencia aos contratos entre judeus e christãos, distinguindo entre con- tratos sobre moveis e sobre immoveis, mantendo para es- tes as disposições antigas, e prescrevendo para os outros a completa liberdade de troca, sem necessidade de escri- ptura5; se determinava, alem d'isso, que as escripturas dos contratos mixtos se fizessem sem intervenção do juiz e só perante o tabellião e dois homens bons6; se d'esta forma fa- cilitava as transacções commerciaes e a mobilisação da pro- priedade: por outro lado destruía pela base a antiga machina da magistratura israelita. O rabbi mór acabava, mais os seus ouvidores de comarca, segunda e suprema instancia nos pleitos entre judeus. D. Duarte, sendo infante, mantinha sim a lei de seu pae, não a derogava, mas estabelecia a appel- lação para o rei e seus officiaes que desembargariam segun- do o direito tradicional dos judeus 7. Assim se decapitava a velha constituição da nação judia em Portugal: apenas fi- cavam no recinto fechado das judiarias os arrabis e verea- dores ou almotacés eleitos. 1 Orden. affons., 11, j5 n. 5. - Ibid., n, q3 n. 1. 3 Ibid., n. 2. 1 Ibid., 11, 73. 3 Ibid., 11, y3. Lisboa, 5 de dezembro de 1436; n. 14. 6 Ibid., n. i5. 7 Ibid., ir, 71. 200 Os filhos de D. João I Encerrados os réprobos nas suas communas, era mister que não irradiassem para fora, penetrando na nação christã e conspurcando-a. Judeu que se encontre nas tabernas, be- bendo, pague cincoenta reaes brancos1. De noite saíam, dormindo fora, e as excepções da lei de 141 2 eram tantas que o principio da legislação histórica estava illudido. Con- firmando a lei de seu pae, D. Duarte, porém, restringiu-a2 e ao mesmo tempo restaurou a velha ordenação de D. Pe- dro I3, mandando que a pena de confisco se applicasse aos que pernoitassem fora, em todas as villas onde houvesse dez judeus, ou mais4. Mais graves ainda foram as ordenações de D. Duarte, quando infante, acerca das relações pessoaes entre judeus e christãos. Uma prohibia aos judeus terem christãos crea- dos assoldadados, caseiros, azeméis, pastores, domiciliados em suas casas5*, podendo, porém, arrendar e aforar quin- tas ou herdades, e trazer jornaíeiros (mas nunca mulheres), comtanto que o dependente vivesse sobre si, em sua casa6. A pena era gravíssima: multa de cincoenta mil libras a pri- meira vez; o dobro á segunda-, á terceira quanto houver, e, na falta de bens, açoutes publicos7. Um terço da multa era para o fisco, dois terços para o denunciante. A outra lei dizia respeito ás relações dos judeus com mu- lheres christãs. Nenhum judeu entraria em casa de mulher só, nem na de casada estando ausente o marido: tendo cou- sas a tratar, fallassem da rua ou á porta8. Nenhuma mulher christã podia ir só a casa de judeu 9, nem penetrar no recinto das judiarias, senão acompanhada por christão «homem 1 A 1 1 réis, 55o réis. Orden. affons., 11, 91. 2 Orden. affons., 11, 80 n. i3. 3 Ibid., 11, 76, n. 1 a 3. 4 Ibid., n. 4. 5 Ibid., n, 66 n. 2. 6 Ibid., n. 3. 7 Ibid., n. 2. 8 Ibid., 11, 67 n. 1 . 9 Ibid., n. 3. As ordenações e os judeus 201 grande c não moço», e isto apenas durante o dia1. As mul- tas com que se puniam estes crimes eram enormes: cin- coenta mil libras á primeira vez, o dobro a segunda, acou- tes á terceira2. O decoro e a piedade, de mãos dadas, ins- piravam o pensamento de D. Duarte na prohibição das mancebias e concubinatos, e na prostituição das christãs aos judeus immundos e herejes. Excepções havia, nem podia deixar de ser, desde que os judeus, porém, exerciam tantos misteres na sociedade: excepções para os physicos c cirur- giões, para os alfayates e obreiros3, e para os mercadores ambulantes que não podiam pernoitar nas judiarias. De resto a lei só se entendia para Lisboa, Santarém, Évora, Coim- bra, Porto, Beja, Elvas, Extremoz, e outros logares grandes do reino, na parte relativa á entrada de judeus em casa de christãs4. Estabelecida a separação, extremadas as duas nações juxtapostas, insistia-se sobre os distinctivos dos judeus: a estrella vermelha no peito, attestado de origem. «Tragam signaes vermelhos de seis pernas cada um, no peito, acima da boca do estômago; tragam-nos na roupa que vestirem acima de todas, do tamanho do sêllo real redondo, bem des- coberto para se verem bem5», para que se não possam con- fundir com a gente christã, e se mostrem por toda a parte aptos a receber o castigo, desde que se insurjam contra a espada das ordenações que lhes pende sobre a cabeça. A immigração de judeus de Castella fora enorme depois da matança geral de i3gi. Lá como cá, o judeu converso ficava á mercê dos denunciantes, desde que recaía em ju- daismo. A pena podia ser a morte, e era sempre o confisco. A tentação era cruel, e as denuncias falsas repetiam-se de certo com frequência. Se contra esta perseguição rapace ' Orden. affons., n. 4. - Ibid., n. 1 e 3. 3 Ibid., n. 1. I Ibid., n. z. 5 Ibid., 11. 220 Os filhos de D. João I aos immigrantes os reis proviam; se D. João I ordenara que só se tivessem por christãos os que em Castella e no Aragão o fossem segundo o direito quer, e não os que força- dos receberam o baptismo para poderem fugir1: D. Duarte, sem revogar esta lei, mantinha, ampliava ainda o processo das denuncias e os prémios aos denunciantes, chamando a seu serviço a cobiça geral, para consummar o plano da seclusao absoluta dos judeus e adiantar o futuro da conver- são d'elles á fé christã. A compra e venda de oiro, prata e moedas era prohibida aos mercadores judeus; mas esse era o seu crime mais frequente e a fonte mais pingue de confiscos que logo se transferiam em doações aos denun- ciantes. D. Duarte fixou por lei a formula d'essas doações2. Isolando-os, comprimindo-os nas dobras de uma legisla- ção cruel, estimulando a cobiça, o príncipe que primeiro teve em Portugal a noção clara e erudita do estado como um edifício, bello na sua unidade, magestosamente coroado pelo throno, unanime nas crenças e ordenado nos órgãos: D. Duarte procurava ainda em outros meios mais directos instrumentos para a sua empreza. Se os prémios aos de- nunciantes estimulavam a cobiça dos christãos, queria tam- bém chamar a seu auxilio a própria cobiça dos judeus, trans- formando-a em arma proselytica. Em primeiro logar, ratificava a velha lei de Affonso II, prohibindo aos judeus que desherdassem os filhos conver- tidos ao christianismo, e mandando, pelo contrario, que os conversos recebessem desde logo as legitimas como se seus pães tivessem morrido. E alem de ratificar, ampliava o principio, estabelecendo as formulas de partilha. O filho ou filhos convertidos receberiam immediatamente duas terças partes dos haveres do casal, ficando o resto livre aos pães3. Havendo dois filhos, um que se convertesse, e outro não, o primeiro receberia metade dos haveres; havendo mais não 1 Orden. affons., n, 77. 2 Ibid., 11, 78. Santarém, 6 de outubro de 141 7 (E. 1455). 3 Ibid., 11, 79, n. 1. As ordenações e os judeus 20 3 convertidos, o converso recebia a terça-, c sempre a terça do que ficasse cabia ao filho ou filhos que suecessivamente se convertessem'. Sendo o converso casado c havendo re- cebido dote, abata-se-lhe a importância na partilha, caso ambos os pães estejam vivos; mas não se deduza se um for morto2. Litigando um casal de que um dos cônjuges seja converso, ou se repartam os bens por metades, ou levante- se cada qual com o que trouxe; devendo nesta hypothese, quando os haveres tenham crescido depois do casamento, caber dois terços do acerescimo ao converso e um terço ao outro cônjuge3. E coincidindo a separação por este motivo com a conversão simultânea de filhos, rejam para estes, com referencia á parte do pae não convertido, idênticas dis- posições ás prescriptas para o caso simples da conversão dos filhos4. Mede-se o alcance desorganisador d'estas disposições no seio da familia judaica? Era necessário que a crença reli- giosa fosse tenacíssima, para resistir a incitações tão dire- ctas e positivas. Ao filho cobiçoso de ganhar independência, bastava converter-se para a ter; outro tanto bastava aos esposos para dissolverem os laços matrimoniaes. E como se nem tudo isto fosse bastante — e não era, com effeito — a lei creava ao judeu converso uma situação privi- legiada no seio da sociedade. Creava-lh1a, a elle, e também aos christãos que casassem com judias convertidas. Por todos os modos se procurava extinguir a nação dos judeus; e só quando depois de largos annos se viu ser impossível fazel-o sem violência, só então os governos se tornaram órgãos do ódio ardente das populações. E de 1 de novem- bro de 1422, dada em Tentúgal, a lei que, para provocar a conversão, isenta os conversos das pesadas obrigações do serviço militar do tempo: nem tèem de ter cavallo, ainda 1 OrJen. affons., n. 2, 3. 2 Ibxd.y n. 4. 3 Ibíd., n. 6 ;i 9. t IbiJ., n. Mi a i5. 204 Os filhos de D. João I que os bens os incluam no arrolamento dos cavalleiros; os seus nomes serão eliminados, não só dos livros das coude- larias, como dos roes dos besteiros e das vintenas do mar1; nem podem ser constrangidos a ter armas, nem bestas de garrucha, nem de polé2. Eram absolutamente livres, quites, isentos. D. Duarte procedia com elles como na fabula do filho pródigo. Tinham do estado tudo: ficariam formando uma casta privilegiada no seio da sociedade christã, se no coração lhes não ar- desse, viva e quente, uma crença fervorosa. Por ella affron- tavam as humilhações e os açoutes, luetando contra a vida com as qualidades dos povos escravisados, que são a per- fídia, a mentira, a traição, reverso da nobreza apagada pelas condições cruéis da fatalidade. Por ella affrontariam mais tarde as perseguições e o martyrio, mordendo sempre, ro- jando-se com uma tenacidade de gramma e uma duetilidade de serpente. Essa forma de heroísmo que os judeus mos- traram na moderna Hespanha é antipathica, mas tem uma incontestável grandeza. Maior, porém, mais puro e mais nobre era o pensamento luminoso que inspirava a familia de Aviz, interprete emi- nente das idéas da Renascença entre nós. O edifício ma- gestoso da nação erguia-se-lhe perante o espirito acalentado pela crença forte, como ediculo na construcção maravilhosa do ceu. Cada povo, fallando, cantava uma estrophe do hy- mno eterno da grandeza divina; e trabalhando, procreando, ganhando a vida modestamente, cada nação era uma par- cella do immenso rebanho de Christo. A crença mais psy- chologicamente forte que houve no mundo, oppunha-se o idealismo mais genuíno que também o mundo vira depois das idades antigas. O conflicto era, assim, inevitável. Isto, porém, não diminue, antes augmenta a honra do pro- pósito de D. Duarte, esgotando a serie dos meios práticos e indirectos para conseguir pacificamente a unificação do povo i Orden. affons., ir, 83, n. i. 2 Md., n. 2. As ordenações e os judeus iob portuguez. Desapparecêra já a idéa antiga de uma nação fragmentada cm senhorios, privilégios, moléculas diversas juxtapostas e que nenhum laço de união social vinculava, mantendo-se apenas congregadas pela força das cousas. Fôra-se o principio constitucional da espontaneidade bar- bara da Idade media. Agora, o estado era cousa diversa. Por isso mesmo se unificava a legislação civil, codmcan- do-a, á maneira do que Affonso-o-sabio fizera em Castella. Ahi a tradição do império mantivera-se, como não suece- dêra n'este senhorio portucalense, desgarrado por insurrei- ção do corpo da monarchia central das Hespanhas. Codi- ficar as leis era concluir a Idade media, e o seu systema federativo de classes e privilégios, de excepções e particula- rismo: era submetter a sociedade inteira ao regimen de um código geral que substituia as innumeras cartas, foros e mais diplomas accumulados no decorrer dos séculos. Tinha D. João I encarregado a João Mendes a reforma e compilação das leis do reino; encarregou D. Duarte de continuar essa tarefa o doutor Ruy Fernandes, do seu con- selho; mas os breves annos que reinou não lhe consentiram ver o seu nome ligado ás Ordenações do Reino, que só ap- pareceram em 1446, cm tempo de seu filho, AlVonso V, do qual se ficaram chamando afonsinas, apesar de terem sido outorgadas na regência do infante D. Pedro1. Se porven- tura o não fossem nesse período, é fácil que a reacção aris- tocrática vencedora em Alfarrobeira não tivesse permittido a publicação do código, cujo prologo tem expressões tão categóricas como esta: «Bem aventurada é a terra onde ha rei sabedor, porque a sabedoria o ensina como subjugue os appetites mentaes e carnaes desejos a jugo da razão para direitamente reger seu reino e senhorio, e manter seu povo em direito e justiça». N'outro ponto lê-se: «Se o rei justo estiver sentado em seu alto throno para fazer justiça, não lhe poderá empecer nenhuma cousa contraria2». ' Cf. Figueiredo, Synopsis Chron., 1, 3a a 92. 2 Ibid., 35, prol. das Ord. 20Ó Os filhos de D. João I Eis ahi o rei do Leal conselheiro, segundo o concebia já o pensamento do século; mas esse rei, juiz e sábio, ha de ser um politico forte e hábil, como foi D. João II, uma vez que passou o tempo dos reis cavalleiros como D. João I foi, e como será anachronicamente D. Affonso V. Nem guerreiro, nem politico, D. Duarte, o bom e o justo, vae expiar a sua fraqueza acabando victima da mais cruel das tragedias. í ssim que D. João I fechou os olhos, o infante jj | D. Henrique precipitou-se como um falcão sobre és. D. Duarte, reclamando uma segunda campanha em Africa. «Era propósito que atara em sua alma com firmes nós de muita fé». Dominado por esta obsessão, pen- sava em mudar o motto da sua vida, Talent de bien faire, para a palavra ida (a ida a Africa), aggregação symbolica- mente fatal das iniciaes do seu nome Ijfante Dom Anrrique1. A opinião geral era, porém, contraria a essa aventura; e do fundo das suas terras, em Guimarães, o conde de Bar- cellos, sabedor da teima do irmão, escrevia ao pae, dois 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xiv. 208 Os filhos de D. João I mezes e meio antes da morte d'este, uma longa carta poli- tica acerca das emprezas marroquinas, mostrando-lhe a se- rie de argumentos dictados pelo bom senso, que as conde- mnavam1. Mas a verdade, também, era que em volta de D. Duarte, sem fallar no irmão bastardo desviado da corte e absorvido 1 A empreza do infante D. Henrique "das proveitosas não é, porque se seguem logo grandes despezas em muitas guisas: primeiramente o pedido que se não pôde escusar, do qual vêem muitos choros e muitas más orações. Vede se á gente natural será isto proveitoso : certo não, mas antes não proveitoso; e tomando as náos não é muito proveito aos mercadores, nem é muito proveitoso á terra quando forem os lavrado- res apurados; e isso mesmo officiaes, que todos, ou a maior parte, são besteiros, e se tomarem galeotes assas creio que dirão isto geralmente; em especial o que nos toca a nos perder a boa vontade do povo, da qual de razão vós não podeis escapar, porque de duas não se pôde er- rar, ou assim é que d'este feito descahireis, ou não : se descahirdes vede se terão que dizer, isto será que vos movestes por vontade a cousa que não podia haver bom fim; com isto os que perderem seus amigos não cuido que vos dêem muitos louvores ante Deus, nem ante o mundo; se houverdes vosso intento então será grande damno, que muito bem sabeis que o damno de cada dia, este não se pôde esquecer, especial- mente se é com perda, e já vós vedes o damno de Ceuta: ora olhae se mais carga tomásseis como o poderíeis supportar. Tenho que todo se perderia assim o d'Aquem como o d'Alem. «Senhor, o thesouro do rei no coração do povo é por Deus: guar- dae-o bem pois o tendes, e ainda não vos parece perderdes muito se perderdes os bons que lá irão. Certo, a perda dos bons homens não se pôde cobrar porque ainda que outros venham não vêem em tempo, as- sim que pois que estes damnos nascem d'este feitio, e elle não é pro- veitoso, nem saboroso é de ver se é bom, esta bondade se pode tomar de duas guisas: ou será boa e agradecente ante Deus: a mim parece que o não deve ser, porque o que quer obrar bem tendo sempre o olho naquella bemaventurança que é sobre todas as bondades, não deve começar de obrar em cousas que escandelisem as gentes, e como assim seja que vós não podeis em isto obrar que não façaes aggravos, pri- meiro agravar e depois gançar gloria não é muito santa via; e com isto quando se fizesse em fim havia de se perder e sempre com grande da- mno e vergonha do reino, assim que a mim não parece serviço de Deus e do mundo. . . » — V. a Carta do C. de Barcellos a D. João I (Guimarães, 29 de maio de 1433) em Sousa, Hist. geneal., v, 23 e segg. Tanger 209 pela faina de consolidar os vastos domínios do seu senhorio, havia quatro príncipes na flor dos annos, cheios de força e talentos, e cuja fama dava brado na Europa. O paleologo de Byzancio, o imperador romano, o papa, os reis de Cas- tella e de Inglaterra, convidavam-nos a ir a suas cortes, offerecendo-lhes largas mercês e postos eminentes. Haviam de ficar de braços cruzados em Portugal, inúteis? Pois não seria preferível empregar em beneficio da sua terra essa força cuja fama enchia o mundo? D. Pedro era pae e era philosopho; D. Henrique, porém, não tinha família: vi- via a vida casta de um monge, e o ascetismo accendia-lhe a imaginação. Dos infantes mais novos, D. João casara com a filha do conde de Barcellos; mas D. Fernando seguia o exemplo do irmão Henrique, e também virgem, excitado pelo ascetismo militante, devorava impaciente os Ímpetos dos seus trinta e três annos. Quando morrera o velho mestre de Aviz, João Rodrigues de Siqueira, regente do reino durante a jornada de Ceuta, o rei D. Duarte dera o commando dressa Ordem ao irmão mais novo, que á morte do pae tinha apenas Atouguia e Salvaterra, do campo de Santarém. Portugal era em ver- dade pequeno para fazer casas a tantos infantes; mas D. Fer- nando, comparando-se com os irmãos, queixava-se. Um dia, em Almeirim, declarou ao rei D. Duarte a sua decisão de ir correr terras em busca de fortuna, ou para França, ou junto do Santo Padre, ou do Imperador. O rei pediu-lhe brandamente que o não deixasse: tivesse paciência, lem- brando-se de que o reino era pobre e pequeno, e o pae ti- vera de repartir grande porção delle com quem lho aju- dara a ganhar. D. João, continuava o rei, está contente com o mestrado de Santiago, e todavia rende menos que o de Aviz-, a Coroa não lhe dera mais do que o paço de Bellas, porque as outras rendas e terras que tinha houvera-as, bem o sabia, pelo casamento com a filha do conde de Barcel- los. . . A isto D. Fernando respondia não ser a cobiça que fallava por sua boca, mas que em verdade seus irmãos maiores se tinham enchido de gloria na tomada de Ceuta; «4 2io Os Ji lhos de D. João I e elle, um homem feito, via-se ninguém, inútil, de braços cruzados1. O rei, afflicto por essa fatalidade que sentia arrastal-o, tornou-se para D. Henrique, pedindo-lhe de mãos postas que, em vez de excitar, applacasse o animo do moço in- fante. Reparasse na pobreza do reino e nas opiniões geraes; tivesse dó d'elle e da sua atribulação. Mas D. Henrique, descaroavel como quem vivia incendiado em fé, respondeu- lhe seccamente que não. A tenção de seu pae fora outra: alargar Portugal para alem dos mares, a fim de todos en- contrarem campo vasto á sua ambição; buscar taes empre- zas e conquistas a seus vassallos, com que não perdessem o exercício das armas e cavallaria. Portugal era uma legião e um campo de torneio: caput, cidadella de um larguíssimo império futuro! Estavam no reino ambos, D. Fernando e elle próprio, ociosos, sem impedimento de mulher e filhos : deixasse-os el-rei ir com os seus creados e servidores, com os cavalleiros de Christo e Aviz: deixasse-os ir a guerrear os infiéis em Africa! D. Duarte, consumido por este ardor que via no irmão, respondeu-lhe com as objecções repetidas: a fazenda estava pobre, o reino pedindo socego. Reparasse nas difficuldades crescentes para a conservação de Ceuta. Pelo amor de Deus, não exaltasse, socegasse o animo do infante D. Fernando. . .2 Concebe-se o desespero de D. Henrique perante esta re- sistência passiva. Para as recusas do pae, havia em primeiro logar o muito respeito que lhe tinha, e em segundo a con- sideração da idade, com a vaga esperança de uma breve mudança de cousas. Mas agora, no começo de um reinado novo! Mas do irmão, cuja fraqueza de animo conhecia de perto! Tanta cegueira e teima punham-no fora de si. Estava pobre o reino, e era pequeno? Pois justamente por isso que- ria elle tornal-o grande e rico, enorme, opulentíssimo! O seu parecer sempre esquivo confrangia-se ainda mais com a 1 Pina, Chron. de D. Duarte, x. 2 Ibid., XI. Tanger 2 1 1 scisma constante no meio de vencer esta campanha. Vio- lências não valiam contra um fraco: os tíbios são os mais teimosos, e contra a teima usaria de arte. Tinha a cólera fria. Sabia muito bem que império exercia no rei o infante D. Pedro, principal oppugnador dos seus planos; mas sabia melhor ainda como a rainha D. Leonor, fielmente amada pelo esposo, e gravida sempre1, detestava o cunhado com um odiosinho feminino, por elle ter casado com a filha do conde de Urgel, irreconciliável inimigo da sua família, a quem disputara a coroa de Barcelona2. Calculou o infante que o piedoso rei nada recusaria á esposa, mormente no estado em que ella se achava; calculou mais que a rainha estimaria essa occasião de contrariar D. Pedro; contou ainda com o etfeito que produziria n^lla a offerta de lhe perfilhar o infante D. Fernando, que tinha três annos apenas, ele- gendo-o seu herdeiro. Tudo isto calculou, contando com a fraqueza do rei, com o despeito e com o amor maternal da rainha. E tudo lhe saiu certo, porque D. Leonor entrou de corpo e alma na conspiração tramada para impor ao rei uma annuencia. Adivinham-se os meios de que lançaria mão para vencer esse pobre leal conselheiro, tão deslealmente acon- selhado ou seduzido. Ainda assim D. Duarte resistira dois annos. No principio de 1436 o papa Eugénio IV, porém, mandou a bulia da Cruzada, pedida pelo rei, para quando podesse mover guerra aos infiéis; e D. Henrique aproveitou logo esse incidente, a ver se as baterias assestadas pela rainha teriam já aberto brecha no muro espesso da teimosia do irmão. Foi perdido ' 1429, n. D. João (m. em creança); 1430, D. Filippa (m. 3q); 1432, D. Affonso V, rei (m. 81) ; 1432, D. Maria (m. á nascença) ; 1433, D. Fer- nando, duque de Vizeu, herdeiro de D. Henrique (m. 70); 1434, D. Leo- nor, imperatriz de Allemanha (m. 67); 1435, D. Duarte (m. creança); agora, 1436, D. Catharina (m. 63). D. Joanna, que foi rainha de Castella, mulher de Henrique IV e mãe da beltraneja ou excellente senhora, sobrinha e mallograda esposa de Affonso V, nasceu posthuma em 1439 (m. em 75). 2 Pina, Chron. de Affonso V, n. 212 Os filhos de D. João I o assalto. O rei objectou-lhe que não havia dinheiro: só o casamento da infanta D. Izabel, em 1428, custara duzentas mil coroas1, fora os gastos das festas e viagens; lembras- se-se quanto custara a recepção da embaixada que o duque de Borgonha, Filippe III, o Bom, mandara a Portugal para levar a infanta D. Izabel", depois, a despeza do casamento d'elle próprio, D. Duarte; depois, o do infante D. Pedro no mesmo anno; e as exéquias de D. João I, transportado para a Batalha. . . Não podia ser! — Todavia, observava despeitado D. Henrique, não% fal- tava dinheiro quando mandastes offerecer auxilio a Gastella para a guerra de Granada . . . Elle, D. Henrique, não se casara, não houvera gastos de bodas: o que lhe propunha era o seu consorcio com a Africa portentosa, como os romanos lhe chamavam, portas doura- das do império que via alargar-se por um mundo inteiro. Se o rei estava prompto a gastar o dinheiro fora, gastasse-o antes em casa. Tanger convidava-nos a tomal-a. Ceuta cus- tava a conservar, por isso mesmo que era um baluarte iso- lado e só entre as praças de guerra de Marrocos. Quando todas, Tetuão para um lado, Alcácer, Arzilla e Tanger para o outro: quando todas fossem nossas, a difficuldade desap- pareceria, e teríamos outro Portugal, um segundo reino . . . — Vamos a rilhar Tanger: o reino de Fez é nosso! Este assalto da eloquência ardente do infante foi perdido. Tombaram em hastilhas as escadas, e retirou cabisbaixo. Virou-se então para o trabalho de sapa, lavrando com a 1 A coroa (velha, ou de França) equivalente á dobra (valedia, ou de banda) apparece no século xv com valores diversos. Em 1436 e 1488 a lei dá-lhe o valor de 120 reaes brancos; em 1453 o de 144 e 168; e em 1473 o de 216. Não sendo já a coroa moeda legal, isto mostra o pro- gressivo encarecimento da prata metallica, pois o real branco conserva o seu valor intrínseco de 1 1 réis da moeda actual. (V. Aragão, Descr. geral, etc. 1, 221, 36 e 3j, e 11, 240). Assim, em 1428, que foi quando se effectuou o casamento da infanta, as duzentas mil coroas representariam, a i£?320 réis, 264:000^000 réis de hoje. Tanger 1 1 3 rainha a mina pela qual conseguiu por fim entrar na praça. D. Duarte — são assim os homens indecisos! — optou pela temeridade, e disse que sim, a final, sem ter sequer ouvido o conselho*. O consentimento foi naturalmente arrancado n'alguma hora de ternura doce. Formou-se o programma da expedição', quatorze mil ho- mens era o que o infante D. Henrique reclamava: três mil e quinhentos homens de armas, quinhentos besteiros de ca- vallo, dois mil e quinhentos de pé, sete mil peões e qui- nhentos serviçaes. Como não havia dinheiro, reuniram-se no meado de abril em Évora as cortes, lançando-se pedido e meio, «não sem grande murmuração e descontentamento do povo, cujas vozes e lamentações feriam a alma del-rei com muita tristeza2.» D. Duarte, arrastado pelo remoinho da agitação do infante, que não cessava agora de cantar lou- vores e de o encher de afagos, sentia o coração ferido pelo golpe que o matava. Os carinhos da rainha não lhe desan- nuveavam o espirito. Esquecia-se a pensar na morte, e as lagrimas corriam-lhe ás vezes espontaneamente dos olhos. Outras vezes tinha deliquios e fluxos de sangue, como suc- cedêra no conselho em Almeirim. Minava-o uma tristeza prophetica. Desdobrado em duas vontades, ambas impoten- tes, queria e não queria ao mesmo tempo, no meio das cruéis lançadas da memoria agitando-lhe o remorso pungente de ter decidido talvez por fraqueza de paixão amorosa. N^sta tortura dilacerante, o seu grande desejo seria des- manchar o que fizera, mas não por decisão própria, antes por algum obstáculo invencível, imprevisto, para que an- gustiosamente appellava o seu desejo impotente. Em agosto reuniu os irmãos a conselho em Leiria, a ver se o remiam da paixão amarga em que andava. Tanger apparecia-lhe em sonhos como um calvário. Primeiro fallou o infante D. João: nos conselhos é praxe começar-se pelos menos graduados, e D. João era o mais i Pina, Chron. de D. Duarte, xn, xin. - Ibid., xiv. 2 14 Os filhos de D. João I novo. Fallou sem dizer nada. Foi um discurso lúcido e hábil em que mostrou as duas pontas do dilemma: o siso e a honra, com todos os argumentos pró e contra a expedição. Era uma obrigação a Cruzada? «Por mil dobras que enviemos a um cardeal para fazermos uma mui pequena obra de mi- sericórdia, nol-as enviará outorgadas pelo papa com graças muito maiores». Tendo em vista a rasão e o siso, a jornada de Tanger não devia emprehender-se. Ainda que seja tão certa e segura como a de Ceuta provou ser, fazendo-se bem as contas, do bem e do mal, das perdas e dos ganhos, o resultado não aproveita a vós, nem ao vosso reino — dizia ao rei. «Dareis causa a se perder o d^quem, por não ga- nhar o d'alem». E desenvolvia, insistia, amplificava todos os argumentos contra, deixando ver bem qual era a opinião do seu próprio espirito. Mas no fim citou Alexandre e Roma e os povos que jogam tudo n'uma carta, concluindo por di- zer que a honra aconselhava e approvava esta guerra, que o siso condemnava. Decidissem. A própria trama do discurso mostrava o estado de espi- rito do infante, pois quando se raciocina com lucidez, não se praticam dessas loucuras que a honra leva os homens a commetter, somente quando não discorrem. A honra, isto é, o enthusiasmo, não se obtém por decisões do pensa- mento: é mister que a alma inteira esteja arrebatada pelo Inconsciente, como succedia a D. Henrique. D. João era um rapaz cordato, discreto, leal e firme, como o tempo veiu a mostral-o: inclinava portanto para D. Pedro, e também para o sogro, que agora navegava ainda nas mesmas aguas. Foi elle que fallou depois. O conde de Barcellos, com uma certa auctoridade filha dos annos (tinha quasi sessenta) e com a eloquência rude de homem educado n'outra escola, sem os requintes da corte letrada, portuguez pesado e pé- de-boi, que levara a vida batalhando e arredondando os bens da sua casa acrescidos com a herança do Condestavel, chã- mente disse, respondendo ao pé da letra ao discurso do gen- ro, que as taes rasoes da honra eram «frolidas e apparen- tes» apenas, e que só nas do siso havia «froll verdadeira e Tanger 2 1 5 sem fingimento.» O siso, a verdade e a honra, tudo conde- mnava a guerra — tudo! Faltou então D. Pedro; e as suas palavras, nítidas, sim- ples, breves, sem frolls ou flores, eram escutadas num si- lencio ávido. Sentiam que a sabedoria se lhe escoava pelos lábios. A lealdade e o singular e perfeito amor que tinha pelo rei obrigavam-no a fallar verdade, ainda contrarian- do-o. (Contrariava-o? Sim e não-, nem sim, nem não.y Guer- rear mouros era bom, mas só quando não trouxesse males maiores. Sabidamente, faltava o dinheiro que era o nervo principal e a parte formal d'este negocio. Gomo ladrão de casa, segundo o dizer vulgar, sabia a penúria do rei. E dos povos não devia el-rei tomar dinheiro sem grande cargo de consciência: não fizesse tal! «Mudar (enfraquecer) a moeda não podeis como rei, nem deveis como justo e christão». — Mas supponhamos, continuava o infante, que tomás- seis Tanger, Alcácer, Arzilla: quereria saber que lhe farias? Povoal-as com reino tão despovoado e minguado de gente como o vosso, é impossível; e se o quizesses fazer seria torpe comparação como de quem perdesse boa capa por mau capello, pois era certo perder-se Portugal e não se ga- nhar a Africa. A conquista de Granada, sim, porque tudo se enche de christãos; mas lá na mourisma podeis ter as praças, mas não tereis o campo sem o qual toda a conquista será de muito perigo e pouco proveito. Cercar Tanger é uma temeridade e uma empreza immensa: acudirão os mou- ros de Tripoli e da Berbéria até Meca, e de sitiantes fica- remos cercados. A conquista de Africa seria empreza difli- cil até para todos os reis de Hespanha juntos e postos em um accordo... Pelo qual, senhor, concluo que meu pare- cer é que agora, nem em algum tempo, Vossa Mercê não se deve intrometter nesta guerra de Africa1. E calou-se no meio de um silencio geral, levantando-se a sessão, partindo o rei mais afHicto, mais indeciso, mais infe- liz do que viera. Que fazer em taes apuros? De que modo » Pina, Chron. de D. Duarte, xiv, xix. 2i6 Os Ji lhos de D. João I resistir á obsessão do infante D. Henrique e da rainha? Se houvesse alguém que podesse mandar, e a quem tivesse de obedecer por força! Lembrou-lhe então o papa, e escreveu a Roma pelo conde de Ourem, seu embaixador no concilio de Basilea1. D. Henrique desde logo procurou aparar o golpe. A opinião do papa podia destruir todas as suas com- binações. Era necessária uma decisão immediata. Acudisse- lhe a rainha! Salvasse a empreza! Votava-se-lhe de corpo e alma! Quanto tinha2 dava-o, perfilhando esse infante de três annos que ao lado ria, batendo as mãos, na ignorada esperança da irmã prestes a ver a luz . . . A rainha estava em Torres Vedras; toda a corte para lá partiu. A 18 de setembro nasceu a infanta D. Catharina, e da crise do parto nasceu também a condemnação do rei ao sacrifício cruel de Tanger. No aperto das dores, a rainha não esquecia, nem as promessas de D. Henrique, nem o seu ódio pela cunhada, nem o despeito contra o infante D. Pedro pelo poder que lhe via no animo do rei. A mulher é muitas vezes um capricho com forma humana. D. Duarte curvou mais ainda a cabeça e disse a final que sim, com o coração duas vezes despedaçado, pela consciência de com- metter um erro, e pela fraqueza de não poder resistir ás supplicas da esposa, n'esse momento effectivamente sublime em que a mulher^ balouçando-se entre a vida e a morte, apparece victima consagrada ao instincto da conservação da espécie. Disse que sim D. Duarte, sem esperar pelo conselho do papa; e immediatamente se deu ordem aos preparativos da expedição, ficando encarregado dos armamentos no Porto 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xx. 2 Alem do mestrado de Christo, as descobertas tornavam D. Henri- que riquíssimo. No seu testamento diz: «as quaes rendas som as que segue. s. o meu assentamento e as saboarias e as Ilhas da Madeira e porto santo e deserta e Guinea com suas ilhas e toda sua renda e o quinto das exavegas e as corvinas e lagos e alvor». Era seu o quinto das pescarias do Algarve. Tanger 217 o conde de Arrayolos, filho do de Barcellos, e indo el-rei para Lisboa a dirigil-os pessoalmente. A resposta que depois, já tarde, chegou de Roma, foi outra estocada em cheio no espirito atribulado de D. Duarte. Es- crevia-lhe o papa que para illuminar o entendimento tinha o rei os livros dos Santos Cânones da Santa Sé e o con- selho dos letrados. Dar-lhe-ía, porém, a sua opinião: Se a questão era de infiéis que oceupavam antigas terras enris- tas, com abatimento da religião, tornando as igrejas em mesquitas e fazendo outras abominações, não havia duvida de que se lhes podia e devia fazer guerra. Por cautela man- davam, todavia, os theologos que se usasse primeiro de admoestações e pregações, recorrendo-se por fim á guerra, só quando se visse a inutilidade dos meios suasórios. Mas se pelo contrario a questão era de terras nunca antes enris- tas, cumpria distinguir. Ou os infiéis faziam damno, ou não. Se o fazem, licitamente se podem guerrear; do contrario, não, porque a terra e a abundância delia é do Senhor, que faz nascer o sol sobre os bons e os maus e dá de comer ás aves do céu. Salvo, se fossem idolatras ou peccassem contra a natureza, porque então deviam ser punidos, pois a lei da natureza manda adorar a um só Deus. Em todo o caso, a guerra devia fazer-se com piedade e discrição, não expondo o povo christão a manifestos perigos sem necessidade evi- dente, porque se por sobeja audácia ou má previdência se seguissem mortes e damnos, gravemente peccaria o prín- cipe. A guerra justa e necessária podia o principe fazel-a á custa do seu povo; mas não a voluntária, que devia sair da sua própria fazenda; e portanto para esta guerra de Africa não se podiam lançar pedidos "... Adivinha-se que angustia lancinante poria no piedoso co- ração do rei este conselho em que transparecia uma repro- , vação total, inspirada pelo siso que dictára os votos dos ir- mãos no conselho. Os tempos da Cruzada militante e do enthusiasmo pietista via-se que tinham passado em Roma: 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xx. 2i8 Os filhos de D. João I outras idéas que nos peitos hespanhoes não conseguiam vin- gar e contra as quaes a alma peninsular protestaria mais tarde a seu modo: outras idéas dictavam o conselho do papa — um humanismo ecclectico, dizendo que o sol nasce para os bons e para os maus; uma theologia nova', distin- guindo entre mouros e idolatras, allegando a lei da natureza que manda adorar um só Deus, insinuando o parallelo entre Mafoma e Christo; uma doutrina philanthropica pregando a paz, dando á guerra um papel exclusivo de defeza fundado na necessidade evidente. Com todo o respeito devido ao papa, D. Duarte fez de certo reservas sobre estas opiniões, e D. Henrique, sem duvida, ao ler o papel pontifício (por- que o irmão não deixaria de lh'o mostrar) rangeu os dentes, lamentando uma tão grande tibieza de fé. Como quer que fosse, a sorte estava lançada. Ir-se-ía a Tanger! E para dissipar remorsos, para animar esperanças, o rei occupava-se em redigir memorias e consultas, regis- tando diífusamente os motivos que desejava convencer-se de o terem decidido, formulando o programma da aventura com a ingénua crença de que D. Henrique o seguiria. Esses motivos eram vários e enumerava-os methodica- mente, enganando-se a si próprio porque escondia o deci- sivo: as supplicas da rainha e a sua própria fraqueza pe- rante as dores de um parto. Esses motivos eram a neces- sidade de manter o exercício das armas por cuja mingoa muitas gentes e reinos se perderam, «tirando o nosso povo de vida ociosa fora de virtudes»; eram o desejo de bem fazer que via nos principaes do reino, abalançando-se a viagens e aventuras, e o parecer-lhe que, pois haviam de trabalhar e despender, melhor era «em tal coisa por serviço de Deus e meu, que fora». Acresciam as guerras em que andavam os principes christãos, guerras para que podiam pedir-nos auxilio, o qual, a não as fazermos nós por nossa conta, não poderia ser recusado. Finalmente, depois de varias rasoes mais ou menos concludentes, vinha a ultima: «Porque con- siderava como governávamos Ceuta com tão grandes peri- gos de mortes, prisões de homens e assim muitas despezas Tanger 219 e todo com o propósito de proseguir por avançar o serviço de N. S. Deus e reduzir os infiéis d'aquclla terra á obe- diência da Santa Madre Igreja, gançando senhorio e terra por acrescentamento da nossa honra e tal renda, por que a dita despeza fosse relevada no todo ou em boa parte, como entendo, prazendo a N. S. que assim será, por sua grande mesericordia, se aquestos logares de Tanger e de Alcácer forem filhados'». Queria o rei convencer-se para desannuvear o espirito das sombras que n^lle deixavam os conselhos de D. Pedro, as admoestações do papa, as invectivas do conde de Bar- cellos, e também os presentimentos da sua própria alma, contrariados pela imperiosa vontade de D. Henrique e pela terna seducção da rainha. E para se convencer escrevia. . . escrevia, pretendendo que a acção reflexa dos argumentos enumerados lhe introduzisse no espirito uma decisão soce- gadora. No trabalho procurava também o esquecimento. Não lhe dava a alma para querer ir cm pessoa, como fora o pae a Ceuta, como o filho havia de ir a Alcácer; mas dava-lhe para apontar burocraticamente o plano da cam- panha, formulando sabias providencias, recommendando muito a D. Henrique a sua leitura repetida e a sua exe- cução pontual. Logo que chegasse a Ceuta, dividisse a frota em três partes, conservando a bordo o minimo possível de gente. Uma parte, mandasse-a sobre Tanger, outra sobre Arzilla, outra sobre Alcácer, para impedir que o mouro reunisse em Tanger todas as suas forças «por tal que uns, por se segurarem, não hajam razão de soccorrer os outros». Mar- chasse por terra contra Tanger com uma avançada de qui- nhentos ginetes. Pozesse o cerco «com duas pontas que venham beber ao mar» ; e se a gente não for bastante, com uma, pelo menos, para em todo o caso haver constantes relações com a armada. Desse, no máximo, três assaltos; e se ao terceiro Tanger não caísse, retirasse para Ceuta, 1 Pap. de D. Duarte, em Sousa, Hist. geneal., Provas, 1, 538. 22o Os filhos de D. João I a hibernar até março: «Então irei com quantos haja em meus regnos1». De contrario, expor-se-ía a ser esmagado por toda a força de Marrocos, desde Tripoli até Meca, se- gundo dizia o infante D. Pedro que andara por esse vasto e vago Oriente. O temor do rei era tão manifesto, como sabiamente dis- cretos os seus conselhos-, e a insistência com que recom- mendava a D. Henrique o pontual cumprimento d'elles, mostra igualmente a duvida que tinha na prudência do ir- mão. Com effeito D. Henrique fazia pouco dos conselhos da prudência. Estava cego pela fé. Lembrava-se que Ceuta fora cousa nenhuma: assim Tanger seria! Quantos medos, que louca somma de receios! E forte em si, enchia-se de uma compaixão benevolente pelos homens temerosos. Insis- tindo, sem o deixar, perseguindo-o, D. Duarte, todo escrú- pulos, acrescentava: «Vos encommendo que façaes grande guarda na virtude da castidade, porque bem sabeis quanto N. S. Deus delia praz e mormente em taes feitos; e olhae os inglezes que ainda no tempo da paz sejam muito embru- lhados com mulheres, tanto que são em guerra são delias mui guardados, de tal guisa que no arrayal não são consen- tidas2». D. Henrique encolhia os hombros. A 23 de agosto (1437) partiu de Lisboa a armada con- tra Tanger, com as tropas que se poderam recrutar: dois mil cavalleiros, mil besteiros, três mil peões, seis mil ho- mens escassos ao todo, em vez dos quatorze mil reclama- dos. A confiança de D. Henrique cegava-o completamente; a fraqueza do rei matava-o. A gente do reino «houve esta ida por tão pesada que a mais quiz incorrer nas penas de 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xxi. 2 Pap. de D. Duarte, Inslr. de Tanger; em Sousa, Hist. Geneal., Pro- vas, 1, 533. Tanger 221 perda das fazendas, antes de se arriscarem a perder com ellas as vidas'». Debalde o rei adiara para depois da em- preza a resolução das demandas e a execução das senten- ças; debalde concedera seguros aos criminosos, prometten- do-lhes o indulto2. Tudo falhou. Por isso faltaram solda- dos; dinheiro faltou porque, nem a fazenda de el-rei o ti- nha, nem os pedidos bastaram, nem o cofre dos orphãos que para a expedição se tomou. Faltaram os navios con- tratados a frete pelos feitores de el-rei : os de Flandres e da Allemanha não vieram por causa da guerra do império contra a França depois da restauração da monarchia em Paris, e os da Biscaia porque o rei de Castella os não dei- xou vir. Parte da gente teve de ir por terra a Gibraltar para de lá passar a Ceuta. Parecia missa de finados a do embarque, na capella que o infante D. Henrique mandara fazer no Restello a Nossa Senhora de Belém, pondo lá alguns freires de Christo para os navegantes se confessarem e commungarem3. Havia em ' Pina, Chron. de D. Duarte, xxn. 2 Orden. affons., v, 85. O texto da lei prescreve que (i) os queixo- sos, querendo alistar-se, e tendo alguém preso, deixariam seu procura- dor e os juizes e justiças curariam de seus interesses; (2) a execu- ção das sentenças de morte natural ou talhamento de membro seria adiada para dois mezes depois da volta da armada, sendo o malefí- cio anterior a janeiro de 1436; (3) os crimes de pena menor seriam perdoados aos que se alistassem até ao ultimo dia de abril; e os de morte ou talhamento de membro (4) indultados aos que voltarem da expedição, mas (5) os assassinos por aleive ou traição, os que força- ram mulher, os sodomitas, os falsados, hereges, ladrões sacrílegos, sal- teadores de estrada, incendiários, não terão seguro e só poderão entrar na terra onde commetteram o crime se ahi tiverem de embarcar. To- dos os pleitos (7) ficavam prorogados até dois mezes depois da volta da armada; e aos prelados (i3) rogava o rei que absolvessem os ex- commungados «porque seria cousa perigosa irem em tal armada e ape- çonhentarem os outros que em elle ham de ir». 3 Barros, Dec, 1, iv, 12. — «Item: estabeleci e ordenei a igreja de Santa Maria de Bethlem situada em Restello, termo da cidade de Lisboa.» Test. do inf. D. Henrique. 222 Os fi lhos de D. João I todos o presentimento de uma catastrophe; mas o próprio dos génios como o de D. Henrique, feitos de teimosia cega por ser illuminada, é tornarem-se tanto mais hirtos e resis- tentes, quanto maiores são as contrariedades. Tinha a alma temperada como aço; e da côr do bronze era o seu rosto arrugado, quando saltava do batel para bordo, seguido pelo infante D. Fernando a quem os trinta e três annos davam mais esse ar de Christo. O moço infante, passados os dias de esperança e desejo em que insistira com el-rei pela empreza de Tanger, par- tilhava o sentimento de desanimo commum. N'aquelle pró- prio dia, dia de Santiago, a sua ultima despedida fora para a Senhora da Escada, a S. Domingos, onde confessara e commungára com toda a piedade1. ía preparado resignada- mente para a morte. Fizera o seu testamento distribuindo o que tinha, e era bem pouco, pelas igrejas da sua devoção, indicando os desejos piedosamente simples da sua alma de pomba. «Se eu morrer em esta armada onde agora vou . . . façam-me minhas exéquias de offerta e tochas e das ou- tras coisas, assim como fariam a um simples cavalleiro e mais não ... e se porventura o infante D. Henrique, meu irmão, quizer fazer alguma mais honra em minhas exé- quias . . . peço-lhe por mercê que a despeza que em ello or- denar de fazer, que o mande dispender por minha alma em missas cantar, ou remir captivos, ou em outras esmolas feitas a algumas boas pessoas que roguem a Deus por mim2». Não i Fr. Luiz de Sousa, Hist. de S. Domingos, m, iq. 2 V. o testamento do infante D. Fernando, lavrado antes de partir para Africa (1437), em Sousa, Hist. geneal., Provas, 1, 5oi; ahi vem o catalogo dos livros de uso do infante, que é o seguinte : Uma Brivia pequena per latim. Fios Sanctorum. Um livro de pregações de Fr. Vicente per linguagem. Um livro que chamam Crimaco. Uns Evangelios. Um caderno de canto de Santa Maria das Neves. Um caderno do officio da Victoria. Tanger 223 previa o desgraçado que as exéquias lhe seriam feitas pelo rei de Fez, expondo-lhe o cadáver á irrisão da mourama. . . A viagem durou quatro dias apenas. A 27 chegavam a Ceuta, onde o fronteiro D. Pedro de Menezes, conde de Vianna, enfermava da doença que cm breves dias o ma- tou', depois de vinte annos de combates incessantes para conservar esse baluarte da força portugueza, levantado no promontório de Africa. Um terror negro se espalhou nas comarcas ruraes da cidade, e a noticia da vinda dos chris- tãos reboou por todo o Maghreb2. Não era menor, porém, o receio dentro de Ceuta, perante a exiguidade dos meios com que se queria arrostar contra Tanger. A opinião una- nime no conselho reunido foi que se demorasse o feito, in- formando-se el-rei; mas D. Henrique, hirto, esquivo, trá- gico, respondeu: — Bem sei que a gente é pouca, mas Deus ordena! Ainda que fosse menos, iria por diante3. E saiu como um Fado, automaticamente. Sempre que o Inconsciente, apossando-se de um homem, faz d'elle o vehi- l'm caderno do officio do Corpo de Deos. Id. de benzer as uvas. Id. do officio de Santa Elisabeth. O livro de collações dos padres Statuta Monachorum. Os sermões de Santo Agostinho em latim. Um livro de linhagem que chamam Rozal David. Um livro das meditações de S. Bernardo. Um livro de linhagens que chamam Stimulum Amoris. Os solilóquios de Santo Agostinho e suas Meditações, em linguagem. Um livro de papel, per latim de muitas cousas mysticas, que foi do thesoureiro d'Evora. Um livro què chamam Isaac, em linguagem. Um livro da vida de S. Jeronymo, em linguagem. Um livro da vida dos santos, id. 0 livro da rainha D. Elisabeth. Um livro de linhagens chamado Ermo espiritual. 1 Azurara, Chron. do conde D. Pedro, xl. 2 Pina, Chron. de D. Duarte, xxi. 3 Ibid., xxii. 224 Os filhos de D. João I culo da alma de um povo, creando-o heroe, a humanidade que se compõe de intelligencia e amor soffre. D. Henrique era um destino: por isso era cego e desapiedado. A sua des- cuidosa confiança do principio succedia agora a vaga sus- peita da catastrophe que lhe entenebrecia a alma, em vez de lh'a esclarecer, e lhe empedernia a vontade, em vez de lh'a tornar dócil á força das circumstancias. Os do conselho fi- caram mudos, n'aquella apathia submissa de homens pe- rante um Fado. Deus manda! O promontório da Africa avança contra o Estreito n'uma costa em cujo centro está Alcácer1, fronteira a Tarifa. Para a direita, dobrada a ponta do Leão e já nas aguas mediter- râneas, fica Ceuta; para a esquerda, ainda no boqueirão de Gibraltar, limitado pelo cabo de Espartel, fica Tanger. De oeste, a costa atlântica vae descendo por Arzilla2 até Aza- mor; de leste, recurva-se numa volta breve, em cujo seio está Tetuão. A serra Ximeira, ou dos Monos, ossatura do grande promontório da Africa, vem correndo obliquamente de Tanger até Ceuta, acabando aqui de repente sobre o mar, desdobrando-se alem nas encostas doces das campinas de Andjera. Dois caminhos havia para de Ceuta ir contra Tanger: ou galgar logo a serra e seguir ao longo do Es- treito, ou descer pela costa mediterrânea até Tetuão e to- mar ahi a estrada obliqua de Tanger, que vae transpor a serra nas suas quebradas de oeste, entrando em cheio no valle de Andjera. O primeiro era mais rápido, o segundo mais prudente. i «De Ceuta a Caçr Maçmuda (Alcazar), castello considerável sobre a borda do mar, onde se constroem navios e barcas destinados a pas- sar os que se dirigem a Hespanha, ha 12 milhas. Este castello levanta-se no ponto da costa mais próximo da Hespanha.» — Edrisi, Descr., etc, trad. Dozy e Goeje, p. 201. 2 «De Tanger a Azilâ ha um dia curto. Azilâ é uma pequeníssima cidade, de que apenas pouco resta. Chamam-lhe também Acilâ; está cercada de muros e situada na extremidade do estreito de Gibraltar (d'az-Zocâe). Bebe-se agua de poços.» — Ibid., p. 202. Tanger 22b Immediatamente o infante destacou um pelotão de um mi- lhar de homens commandados por João Pereira para irem reconhecer o primeiro dos dois caminhos. Logo no porto da Calçada tiveram uma escaramuça com os mouros, e avan- çando até á ponta do Leão foram repellidos pela agrura da serra. Esta primeira investida, mallograda, fez perder uns dias. Só a 8 de setembro o infante D. Henrique largou de Ceuta, pela costa mediterrânea, direito a Tetuão. D. Fer- nando, que enfermara, foi por mar nos navios. A esquadra, sem se repartir como D. Duarte aconselhara, seguiu com- pleta de Ceuta para Tanger. No dia 10, uma terça feira, entrou D. Henrique em Tetuão que os mouros tinham eva- cuado: entrou, e destruiu-ihe as portas1. Partiram logo. No dia seguinte, transposta a serra, a columna portugueza fa- zia alto na Atalaya do Leão, já no valle de Andjera-, na sexta feira i3, dia e numero nefastos, occupava Tanger- velho2 e assentava o arraial na praia. Chegava o momento desejado. Na própria tarde de sexta feira, o infante, lembrando-se do dia de Ceuta, suppondo que os mouros fugiriam, ordenou o assalto, que foi todavia rechaçado. No desfraldar das ban- deiras, uma rajada de vento levou pelos ares a do infante, • «De Ceuta ao forte de Tetuan (Tettâwin), indo por sudoeste, gas- ta-se um dia curto. Este forte está situado no meio de uma planície, a 5 milhas de distancia do mar Mediterrâneo. É habitado por uma tribu berbere chamada Madjacsa (Medjekeça).» — Edrisi, Descr., etc, trad. Dozy e Goeje, p. 2o3. 2 «De Caçr Macmuda (Alcazar) a Tanger (Tandja) contam-se 20 milhas, caminho de oeste. Esta ultima cidade é muito antiga e denomi- nou toda a região vizinha. Construída sobre um monte elevado que do- mina o mar, as suas casas espalham-se na meia encosta, descendo até á praia. A cidade é formosa: os seus habitantes são commerciantes e industriosos. Constroem-se navios e o porto é muito frequentado. A planície que está junto do território de Tanger é muito fértil e habitada por berberes da tribu de Canhâdja. «A partir de Tanger, o mar Oceano forma um cotovelo, e dirigin- do-se para o meio dia, chega á terra de Tochommoch, cuja capital foi outr'ora considerável.» — Ibid., p. 201. i5 226 Os filhos de D. João I partindo-lhe a haste em pedaços. A soldadesca bisonha fran- zia a testa, murmurando: «Agoiro!» E a noite caiu pesa- damente sobre a imaginação amedrontada. . . Uma longa semana, desde o funesto dia i3 até ao dia 20, entre duas sextas feiras, levou o desembarque de armas e mantimentos e a construcção aturada dos vallos e repairos para o cerco. Já se via que era caso diverso do de Ceuta. Fechado na sua couraça, o mouro não bulia, preparado para uma defeza brava; e entre a nau de pedra erriçada de ameias e a armada balouçando-se no mar, o arraial do infante sobre a praia começava a parecer um naufrágio. Porque não seguia elle as instrucçoes do rei? Não dividira em três a armada, de certo porque mão dava para tanto o numero dos navios. Arriscara o primeiro assalto, e logo vira que seria inútil repetil-o, como D. Duarte mandara, sem se reforçar com medidas defensivas. Mas, por tal forma, dava tempo a que as forças da mourama viessem em soccorro de Tanger, e depois. . . N'este momento já de certo começava a dissipar- se a nuvem espessa da illusao que o cegara. Tanger não era Ceuta. No dia 20, outra vez á sexta feira! repetiram o assalto, e renovou-se o desaire. Tiveram de retirar com quinhentos feridos, deixando vinte mortos. E faltavam mantimentos. Houve que mandar por elles a Ceuta. No sabbado divisa- ram-se pelas cumiadas da serra as primeiras lanças rebri- lhando com o sol; no domingo, os novellos de poeira rola- vam levantados pelos cavalleiros que vinham em phantasias reconhecer o arraial; na segunda, valle e serra, todo o campo apparecia manchado de mouros chegados de Arzilla e de Alcácer, congregados em torno da bandeira verde do Pro- pheta, para soccorrer Tanger. Diz-se que eram quarenta mil homens : dez mil de cavallo, trinta mil de pé. Os sitian- tes principiavam a estar cercados. Realisavam-se as prophe- cias. Vencia o siso. D. Henrique chorava de raiva, pelos annos de longa esperança, dezoito annos levados a condes- cender com a velhice do pae, dezoito annos desfeitos no pó de um dia, sobre a areia ardente da praia africana. Tanger 227 No primeiro de outubro, uma terça feira! investiu como um touro com os esquadrões da mourama branca*, mas os mouros sumiam-se, evitando o choque, e cresciam por vezes como onda, ameaçando varrer para o mar a phalange por- tugueza. Na quinta feira seguinte inverteu-se a scena. Os da cidade fizeram uma sortida, ao mesmo tempo que os da campina assaltavam o arraial. Embora fossem ambos repellidos, a crueza da situação definia-se: não havia mais esperança do que as naus, balouçando-se dolentemente no mar! Fugir. . . Mas o infante, ainda no dia immediato, outra vez á sexta feira! ordenou novo assalto. Tinha mandado construir uma torre alta de madeira d*onde começou por bater os muros todo o dia. No sabbado precipitaram-se contra as escadas numa fúria atroadora. Só D. Henrique andava a cavallo, vestido de cota de malha, negro como um destino, negro como a cor da sua alma envolvida em desespero. As trombetas despedaçavam os ares para tapar os ouvidos dos soldados ás vozes do medo que vinham no vento. Os trons e bombardas estoiravam no alto dos muros envolvendo a cidade em nuvens de fumo branco da pól- vora; e das setteiras, transformadas em fontes, desciam rios de alcatrão incendiado com balas de linho em chammas. As escadas vergavam, ardiam, e vinham a terra com os assaltantes, desfeitas em brazas. O infante, vendo tudo perdido, mandou retirar. Não comprehendia aquella traição da sorte; sentia esvasiar-se-lhe o cérebro. . . Mas ainda não desistia. A teima do seu génio púnico dominava-o. Tinham ardido umas escadas? mandou por outras a bordo; e emquanto insistia na sua temeridade, sem lembrança das instrucçoes do rei, sem attenção pelos conselhos de D. Pedro, realisaram-se as previsões deste. O valle inteiro e toda a encosta da serra até aos cumes appareceu coalhado de mouros. Eram os reis de Fez e de Belez, de La/.araque, de Marrocos e de Talilete, os mouros de todo o Maghreb que vinham em guerra santa, congre- gados sob o estandarte verde do Propheta, defender Tan- ger, vingar Ceuta, exterminar os christãos. Diz-se que con- 228 Os filhos de D. João I tavam setenta mil de cavallo e o decuplo de pé. Eram 9 de outubro, tinha começado o cerco a i3 de setembro: du- rara apenas vinte e seis dias, porque agora podia dizer-se acabado, tristemente findo. Os marinheiros recolheram com pressa ás naus, os soldados encerraram-se como um reba- nho no seu redil, os da cidade vieram assaltar o arraial, emquanto pela campina inteira o mar dos mouros se alas- trava em vagas de gente sobre que fuzilava o aço das lanças como flocos de espuma branca, scintillando nas vo- lutas de ondas. N'esse dia o infante perdeu o cavallo, e a noite caiu sombria sobre a phalange portugueza estrangu- lada no seu palanque. Do mar para a terra, através da praia, ainda em partes livre, houve essa noite corridas simultâneas de medo cobarde e de sacrifício heróico. Uns fugiam assaltando os bateis, remando vigorosamente para os navios; outros largavam-nos para vir formar em terra ao lado dos condemnados. Mantimentos não havia no arraial para mais de dois dias. Se não morressem pelo ferro, morriam pela fome. Por isso muitos clamavam por uma sortida feroz, desesperada, que os libertasse, ou lhes consentisse morrer matando, como cavalleiros. O annel de ferro da mourama soldára-se na praia e, cor- tados do mar, viam perdido o refugio oscillante dos navios que os desesperavam como uma negaça cruel. Apertava-se cada vez mais o circulo do seu destino fatal. Na madru- gada de quinta feira, o dia 10, ouviram missa. O infante de joelhos, com as mãos e os olhos erguidos para o céu, pedia ardentemente um milagre. No seu cérebro estonteado o sentimento da justiça rebellava-se, recordando a piedade dos seus intentos, a firmeza da sua fé, tão cruelmente illudida. Deus esquecia-o? dormia? cegara? Acordasse, e visse que sorte se preparava ao seu povo; que premio lhe era dado pelo heroismo com que arrostava contra o poder de Mafamede. . . O assalto poz ponto á oração. Como ondas do mar em tempestade, as ondas dos mouros espadanavam, partindo-se contra os muros do arraial, firme e forte como uma rocha. Tanger 229 Vencido esse dia, quando veiu a noite resolveram rom- per pela praia direito ao mar para embarcarem ; mas um traidor e, caso mais grave ainda, um padre, denunciou o plano ao inimigo que litteralmente coalhou a praia de gente. No dia seguinte, sexta feira, 1 1, houve tréguas; mas no sab- bado, logo de manhã, ás sete horas, rcpetiu-se o assalto, que felizmente foi rechaçado. De que servia, porém, fugir a uma das mortes, se a outra estava de guela aberta para os tragar? Já não havia lenha, nem carne, senão a do cavallo, que devoravam quasi crua, assada nas palhas das albardas e sellas. Também não havia agua, e enganavam a sede chu- pando o lodo infecto da praia. A noite de sabbado passa- ram-na alongando um palanque para o mar. Os navios eram a sua esperança, e nos estonteamentos da sede viam-nos multiplicados e colossaes ondear como miragens. Ao fragor dos combates succedêra o silencio trágico dos naufrágios; e o ar só se ouvia cortado pelos uivos gutturaes das escul- cas mouras, soando como pios de aves agourentas. O grande espectro da morte enchia o céu inteiro, toldando o sol com as suas azas de vampiro, orladas de garras aduncas. A fome, a sede, a inacção e a desesperança, excitada pela negaça constante das naus balouçando-se no mar, des- moralisavam-nos. Decididos a tudo para salvarem a vida, já sem coragem para morrer, acceitaram as propostas do mouro. Embarcariam a salvamento, mas sem armas; en- tregariam Ceuta com todos os captivos mouros; tratariam pazes por um século, renunciando á conquista da Berbéria. D. Henrique disse que sim; e n^sta resposta se vê o seu génio púnico. Não hesitou perante um engano, porque nunca lhe passou pela idéa entregar Ceuta. Nem hesitou perante o engano, nem perante o sacrifício do irmão, porque o mouro exigiu reféns: o infante D. Fernando seria o penhor da en- trega de Ceuta; e para garantia das mais estipulações ficava comnosco o filho de Çalabençala, antigo senhor de Ceuta, cheik de Tanger, em troca de D. Pedro de Athayde, João Gomes de Avellar, Ayres e Gomes da Cunha que acompa- nhariam o infante D. Fernando. É verdade que, ouvidas as 23o Os filhos de D. João I propostas do mouro e opinando todos, incluindo os infantes, por que Ceuta não devia ser entregue, com a consciência, portanto, de que os reféns seriam sacrificados, D. Henrique pretendeu ficar, elle, em logar do irmão-, mas nem D. Fer- nando, nem o conselho o permittiram, nem D. Henrique protestou '. Não valeria porventura mais terem morrido? A vida consiste no propósito da acção pratica, ou no exercício do exemplo virtuoso. Morrer, para o segundo caso, pôde ser um acto de virtude, quando seja uma lição me- morável; no primeiro caso, morrer é sempre um erro. Dos dois irmãos, o que preferiu viver e o que abraçou quasi alegremente a morte, o que era heroe e o que ficou martyr, o que esperava a desforra e o que se immolou em sacrifício: qual dos dois irmãos nos parece neste momento maior? O nosso coração, o nosso amor, a sympathia irresistível da nossa alma vão para D. Fernando; e, por grande que nos pareça a acção dos heroes, vale mais, porque é superior a tudo, a modéstia sublime dos martyres. Se a vida humana consiste na acção, o heroísmo, porém, não é propriamente um fim: o fim está na bondade augusta que faz dos homens o combustível em que arde a chamma viva d'essa alma ethe- rea do universo. A grandeza do povo aryano e o que lhe deu já, pôde dizer-se, a supremacia em todo o mundo, consiste precisa- mente em conceber a vida como o exercício do exemplo virtuoso, santificando os heroes da bondade, consummando a apotheose d'aquelles que de caridade e de amor fizeram a rosa mystica da existência. De ferro, de bronze, de fogo, de sangue, o semita, ardente e duro, concebeu a vida como uma tortura, e fez do heroísmo a carreira cega para um destino illusorio, esmagando desapiedadamente tudo quanto se oppõe ao seu caminhar, curvando-se para passar quando encontra perante si um obstáculo insuperável. Foi o que fez D. Henrique. Na quinta feira, 17, come- çou o embarque \ mas os mouros não respeitaram as con- 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xxi a xxxm . Tanger 23 1 diçoes do tratado. Houve refregas que os chetks a custo reprimiram. No sabbado, a final, prolongado o palanque até ao mar, precipitaram-se confusamente sobre os bateis, lan- çando-se á agua com desespero, afogando-se no tumulto, perseguidos pelos tiros perdidos da chusma dos mouros que de terra assistiam á scena, acompanhando-a com uma algazarra atroadora. Morreram rTesta catastrophe quinhen- tos portuguezes ao cabo de cinco semanas '.D. Henrique navegou para Ceuta, os restos da expedição fizeram-se de vela para Lisboa, e D. Fernando e os seus companheiros foram para Tanger começar a paixão expiatória da temeri- dade do nosso heroe. Quando a expedição de Tanger largou de Lisboa, D. Duar- te e D. Pedro ficaram na capital, inquietos, esperando no- ticias; e o infante D. João partiu para o Algarve a reunir gente e mantimentos com que soccorresse os irmãos, no caso mais que previsto de um desaire. Em Lisboa, D. Pe- dro aprestava uma esquadra. Mas n:isto accendeu-se a peste, e o rei foi recolher-se em Santarém. Ahi recebeu, a in. no próprio dia em que em Tanger se liquidava a catastrophe, as primeiras noticias do cerco: terríveis noticias que lhe confirmavam as previsões fúnebres. Porque não cumprira o irmão as instrucções que lhe dera? Terrível cegueira! Todos os presagios do seu coração enlutado não attingiam, porém, ainda a enormidade do desastre. Chorava, ateusa- va-se da sua condescendência tibia, cheio de dor por se sentir culpado, elle, que tão claramente pregava, escrevendo, a firmeza recta da vontade2. O remorso pungente enrosca- va-se na agudeza da humilhação, como um cabo repuxado a estrangular-lhe a alma. Via-se peccador e mesquinho : nem o orgulho do erro podia ter, como D. Henrique. Peccára por fraqueza, o desgraçado! Em vão D. Pedro o conso- 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xxxiv. 2 Leal Cons., m. 232 Os Jj lhos de D. João I lava com o seu grande coração e a sua magnânima hu- manidade, desfazendo-lhe os escrúpulos, enxugando-lhe as lagrimas com carinhos, dissipando-lhe os terrores exagera- dos, procurando introduzir-lhe no espirito atribulado alguma alvorada de esperança ténue. A desolação do rei era com- pleta. Chamava para o pé de si toda a gente. Horrorisava-o achar-se a sós. Queria médicos, pois se julgava morto; que- ria bem perto o velho Mem de Seabra, creado antigo de seu pae, que o trouxera ao collo nos dias dourados, dias infelizmente perdidos, da sua infância ditosa! O velho Mem veiu arrastado do seu oratório de Setúbal, onde se enter- rara para morrer na penitencia austera da regra da serra de Ossa1. Tinha o infante D. Pedro regressado a Lisboa, para ulti- mar os aprestos da frota de soccorro a Tanger, quando entraram no Tejo os restos miseráveis da expedição, e se soube a grandiosa extensão da catastrophe. Perdêra-se o in- fante D. Fernando! E perguntava-se pelo infante D. Henri- que. Não vinha? Onde se sumira? O povo oscillava entre a condemnação e o medo de também o ver perdido. A chusma desembarcava esfarrapada, sem armas e espavorida; faziam gala da sua miséria, exagerando instinctivamente, para des- culpa, o poder incommensuravel dos mouros. A desgraça fora tão grande que deprimia, até á abjecção, os infelizes. Entre os náufragos de Tanger, achava-se, porém, um excêntrico, sócio do infante D. Pedro nas suas viagens, ca- valleiro destemido que nas guerras de França ganhara a Jarreteira, capitão-mór do mar, de quem já falíamos no de- curso d^sta historia e que n'ella terá ainda um papel emi- nente. Era Álvaro Vaz de Almada, typo singular que via todas as cousas por um angulo humoristico, misturando a extravagância ao heroísmo, e o grutesco aos lances cruéis, a ponto de produzir effeitos trágicos. Álvaro Vaz, desembarcando, vestiu-se de gala, a si e aos seus, barbeou-se, perfumou-se, e com a cara alegre, o riso i Pina, Chron. de D. Duarte, xxxvi. Taneer 233 "D nos lábios, em ar de festa, foi-se a Carnide', onde estava a corte, comprimentar o rei e o infante D. Pedro. Ao espanto do começo succedeu um riso amargo. Álvaro Vaz queria que os sinos tocassem em som de gloria: Tanger fora uma façanha acabada! E dizia isto com um ar tão grave e tão convicto, que ao riso começou a succeder a confiança quando assegurava a facilidade de pôr termo ao captiveiro do infan- te2. As suas palavras eram um bálsamo para o coração débil do rei, sempre aberto ás illusões consoladoras. Infelizmente, os ditos de Álvaro Vaz não passavam de um generoso embuste suggerido pela sua imaginação extrava- gante. As noticias que chegavam diariamente mostravam, como era obvio, que o mouro não daria o infante se lhe não dessem Ceuta. Do Algarve, D. João partira com os soc- corros, mas os ventos contrários em temporal detiveram-no, pondo-o em risco de naufrágio; e quando foi surgir em Arzilla já lá encontrou captivo o irmão. Entrou em tratos com o cheick de Arzilla e Tanger, expulso de Ceuta, Çalabençala (cujo fi- lho nós retinhamos), mas o rei de Fez, temendo alguma fra- queza, levou o infante comsigo3. Por seu lado, os esforços de D. Henrique em Ceuta, onde o remorso o consumia, prova- vam igualmente inúteis. Não vendo meio de obter o escambo dos reféns, mandou para o Algarve o principe mouro, mas tei- mou em ficar em Ceuta, apesar das instancias de D. Duarte para que voltasse. Não tinha animo de lhe apparecer4. De Arzilla o rei de Fez levou D. Fernando para a sua corte. A estrada de Fez3, descendo de Tanger quasi paral- > Em Carnide, a 9 de novembro, editou el rei o seguro para os criminosos que tinham estado com os infantes em Tanger, acmpanhan- do-os até ao fim da catastrophe. O seguro durava até fevereiro do anno seguinte, 1438; e antes d'isso, a 23 de dezembro, em Torres Novas, pro- mulgou o indulto nos termos da promessa de 1436. — Orden. jff., \. 86. 2 Pina, Chron. de D. Duarte, xwvi. 3 Ibid., xxxvi. Ibid., xxxviii-ix. -s 'De Ceuta, para se ir a Fez, gastam-se oito dias, passando-se por Zaddjan.» — Edrisi, Descr., etc, trad. Dozy e Goeje, p. 204. 234 Os filhos de D. João I leia á costa, encontra o ramo que vem de Arzilla, e dirige- se a Alcacerquibir1 onde cruza o Luccus, que vae cair no mar em El Araich (Larache)2; d'ahi, galgando os montes de El-Charbie, obliqua para o interior por Basra e Vezzan, em direcção de Fez, no alto curso de Uad Sebu. Gaptivo, D. Fer- nando pisou, pois, o chão mais tarde sagrado, em que outro heroe nosso, audaz e temerário como D. Henrique, mas menos afortunado do que elle, viu desmanchada em pó e sangue a chimera que para o infante oscillava agora num re- moinho atroz de remorsos. No dia cruel de Alcacerquibir, naufrágio total da nossa historia, D. Sebastião, perdido, res- pondia «Morrer!» áquelles que lhe perguntavam «Que resta?» É que pelas veias de D. Sebastião corria o sangue gene- roso dos aryanos, e no seu cérebro palpitavam os instinctos da raça eminente, sempre alegre no sacrifício, e crente na verdade moral do mundo pairando sobre a confusão incohe- rente das cousas. D. Fernando, immolado á ambição viva de um povo que encarnara na alma realistamente púnica de D. Henrique, esse precursor dos nossos heroes similhantes aos phenicios, era também o precursor de D. Sebastião, que foi o soluço de agonia heróica abafado pelo mytho em que Portugal talhou o seu lençol mortuário. Queria assim o des- tino que, no prologo e no epilogo da nossa epopeia histórica, dois martyrios encerrassem o circulo das façanhas em que mostrámos um ardor semita, acaso para fazer sobresaír bem claramente o outro ramo da arvore ethnica dos portuguezes, i «De Tochommos vae-se a Caçr Abdi '1-Carim (Caçr el-Kebir, Al- cacerquibir), pequena povoação próxima do mar, a dois dias de Tanger, sobre as margens do rio Loccos (Luccus). Ha bazares cuja importância é proporcional á do logar, e varias condições de bem estar.» — Edrisi, Descr., etc; p. 202. 2 «Entre Azilà" e al-Caçr (Alcacerquibir) está a foz do Safdad (Luc- cus) rio bastante considerável para receber navios; as suas aguas são doces e os habitantes de Tochommoeh usam d'ellas. E formado pela reunião de dois affluentes, de que um nasce na terra dos Danhàdja, nas montanhas d'al-Baçra e o outro na terra dos Kitâma.» — Ibid., p. 202. Tanger 235 verde como o mar, vago como o vento que murmura por entre os carvalhos sagrados da floresta céltica. . . Montado num sendeiro magro e desferrado, com a sella rota e os arções despregados, com o freio atado por tami- ças e na mão uma vara como Christo, quando o expozeram, rei dos judeus por mofa, nas ruas de Jerusalém: assim o infante, resignadamente martyr, ia caminhando no deserto, cercado pelos seus nove companheiros que o seguiam a pé. Eram o confessor e o capellão, o secretario e o camareiro, o physico e o aposentador, um reposteiro, um cozinheiro e um moço de forno. Eram os destroços do grande naufrágio de Tanger, varados na praia ardente de Fez, perdidos no seio da mourama hostil. Ao passarem nos povoados, as gentes vinham recebel-os com gritas alvoroçadas de escar- neo, soltando grandes vitupérios, cobrindo-lhes as faces de escarros, perseguindo-os com pedradas. E assim foram le- vados até chegarem a Fez, onde commoveram singularmente a povoação amontoada para os ver, anciosa por acabar com elles n'uma fúria de cannibaes. Defendiam-nos os guardas que os entregaram aos verdugos, para que tivesse começo o mais cruel e o mais santo dos martyrios de que a nossa historia reza. D. Duarte, esmagado pelo peso cruel da catastrophe con- vocou de Thomar as cortes para janeiro seguinte (1438) em Leiria1. O resultado foi nenhum: dividiram-se as opi- niões attonitas entre a dor da perda de um infante e a ver- gonha de perder Ceuta. Os infantes D. Pedro e D. João, com a maior parte dos procuradores das villas e cidades do reino, votaram pela entrega immediata de Ceuta: hon- rasse-se o tratado feito, que o contrario seria infamante. A nobreza absoluta fallava, como sempre, pela boca de D. Pedro que, alem d'isso, não seguia a politica de expan- são ultramarina. Grande numero, porém, dos nobres, tendo á frente o conde de Arrayolos, allegavam que de modo a]gum Ceuta devia entregar-se, até porque o infante D. Fer- • Pina, Chron. de D. Duarte, xxxvm. 236 Os filhos de D. João I nando não consentia nesse escambo, preferindo morrer. Entre estas duas opiniões definidas, a timidez punha alvi- tres dilatórios. O arcebispo de Braga, D. Fernando, e grande parte do clero allegavam que a entrega de Ceuta não podia fazer-se sem permissão do papa, por virtude das muitas igrejas e altares que ahi havia erguidos. Outros não procu- ravam esconder a timidez com este argumento, e aconse- lhavam que se tentasse primeiro a redempção do infante por dinheiro, ou por escambo de captivos, e só quando tudo fosse provadamente inútil, então se desse Ceuta, ouvidos os theologos e canonistas. Eis o que as cortes disseram ao rei, deixando-o mais perplexo e opprimido ainda. Um só pare- cer acalmaria a sua alma: era o da entrega de Ceuta, porque valiam mais n'elle os sentimentos de caridosa fraternidade do que os motivos de ordem politica. Sacrificar o irmão, era-lhe o mesmo que morrer; mas entregar Ceuta não se atrevia a fazel-o, havendo tantos votos contrários em cortes. N'esta situação cruel, tomou o conselho dos tímidos, dila- tando, consultando por cartas o papa e os reis christãos, que lhe mandaram grande copia de palavras consoladoras, opinando todos pela conservação de Ceuta . E D. Henrique? Não havia arrancal-o de lá. Cartas, rogos, supplicas, eram inúteis. Cinco mezes inteiros, até fevereiro de 1438, se conservou em Africa, na esperança de conseguir a redempção do irmão que victimára. Cosiam-no remorsos como facadas. Desenganado por fim, e vergando ao peso da desgraça, veiu ao Algarve enterrar-se na sua thebaida de Sagres, a engulir as lagrimas de desespero e raiva, sem alma para vir á corte. Considerava-se um homem perdido. Tremia de apparecer diante da face placidamente severa de D. Pedro, e de ouvir as queixas doloridas de D. Duarte. Queria este ouvil-o também, depois de ter ouvido as cor- tes, e insistia por cartas com elle a que viesse a Évora onde estava o paço. Só em junho, porém, D. Henrique se resol- veu a sair de Sagres. Veiu até Portel, seis léguas ao sul de 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xxxix a xli. Tanger 237 Évora, carregado de luto; e de lá escreveu ao rei que por mercê o escusasse de entrar na corte. Não podia com a idéa de ir mais adiante. D. Duarte foi a Portel. Que dis- seram os dois irmãos? Ao depois soube-se que D. Henri- que, resaltando como aço em folha de sob o próprio peso da catastrophe, coberto de luto e de vergonha, não só insis- tia com o rei para que se não entregasse Ceuta, como lhe propunha outra expedição. Bastavam seis mil cavallos, seis mil besteiros, doze mil peões, para vingar o desastre de Tanger e conquistar a Africa inteira. Enlevado na sua am- bição, o infante esquecia o luto e a vergonha pela esperança de prear de novo a caça que voara; e outra vez se deixava prender elle próprio nos laços da chimera, desfazendo os obstáculos, reduzindo a nada as difficuldades, com aquelle poder de illusão commum nos homens vulgarmente chama- dos visionários, gente allucinada por uma idéa que o fu- turo depois diz, ás vezes caprichosamente, se era falsa ou verdadeira. Mas pedia de mais a D. Duarte que se recordava amar- gamente da sua fatal condescendência, e cujo coração vertia sangue. Separaram-se tristemente os dois irmãos : um para Évora, outro para Sagres. E fácil que o rei começasse a duvidar da integridade do juizo do irmão, cuja exaltação desvairada, cujas palavras propheticas, cujos planos intei- ramente falhos de siso, lhe tinham atordoado a cabeça. Uma segunda expedição ! Uma nova catastrophe, depois do dia cruel de Tanger! Quando o infante immolado jazia em ferros! Seria o mesmo que decretar-lhe a morte.. . Um véu roxo de sangue, negro de treva, passava diante dos olhos do rei, que os cerrava para não ver a loucura deshumana de D. Henrique. Esperava achal-o penitente, e vira-o em- pedernido. O pobre rei não podia com tamanhas violên- cias. Quando entrou em Évora, reparou-se que trazia o gesto mais acabrunhado ainda, e um ar de pasmo, de mau agouro ' . 1 Pina, Chron. de D. Duarte, xlh. 2 38 Os filhos de D. João I Pouco tempo se demorou: um mez, se tanto. Em agosto estava em Thomar, no paço da Ribeira, onde ao cabo de muito soffrer, o corpo disse a final que não podia mais. Os médicos faziam a etiologia da febre que o matou em doze dias> attribuindo-a á «desigual tristeza e contínua paixão que pela desventura do succedimento do cerco de Tanger tomou». Morreu a 9 de setembro, quando completava cinco annos e vinte e cinco dias de reinado, ou de tortura, com quarenta e sete de idade. Morreu de remorso, por ter ce- dido, contra o voto quasi unanime, aos impulsos de um terno coração de esposo e pae. Revolta em lagrimas e burel, a rainha que fora a causa inconsciente da catastrophe, pedia ao infante D. Pedro que abrisse o testamento do rei. Abriu- se: leram-no. Ordenava que, por dinheiro, ou por algum outro partido, tirassem aos mouros o infante D. Fernando, e que, sendo impossivel, se desse Ceuta1. Só tivera a co- ragem posthuma. Morreu victima do choque das vontades que se lhe neutralisavam no espirito. Foi enterrado com o Santo Lenho que a mãe lhe dera, ao fallecer, na véspera de Ceuta, e que toda a vida trouxera comsigo; a rainha viuva, porém, quiz para si esse legado piedoso: abriram de novo o tumulo, e até d^sso foi despojado o infeliz rei2, primeira victima da tragedia de Tanger. Cinco annos sobreviveu ainda a segunda: cinco annos de paixão nas masmorras do paço de Fez. Como Jesus na véspera do supplicio, pedindo ao Padre Eterno que lhe afastasse dos lábios, se era possível, o cálix da amar- gura: assim o desgraçado infante D. Fernando, ainda em Arzilla, escrevia aos irmãos que o remissem3. Levado para Fez, conforme dissemos, o infante e os seus companheiros de captiveiro foram tratados desapiedadamente. D. Duarte morreu; succederam os casos complicados da regência que depois contaremos; mas entretanto D. Pedro empregou os ' Pina, Chron. de D. Duarte, xliii-iv. 2 Azurara, Chron. de D. João I, 111, 40. 3 Pina, ibid., xlii. Tanger 23g meios possíveis para cumprir o testamento do rei. Depois de esgotadas as diligencias previas, em 1441, partiu de Lis- boa D. Fernando de Castro com uma armada para ettectuar a entrega de Ceuta e trazer ao reino os captivos; mas essa armada foi assaltada pelos piratas genovezes, o almirante morreu no mar, a sua nau sossobrou, tendo a armada que regressar desfeita a Tavira. Parecia que tudo se conjurava contra os desgraçados. D. Álvaro, porém, filho do almirante, tomou o cominando dos navios, que foram com effeito a Ceuta; mas o mouro de Fez, ou desconfiado, ou preferindo já conservar os reféns, disse que entregassem primeiro a cidade: jurava por Mafamede que logo entregaria o infante. D. Álvaro voltou a Lisboa convencido, ou affectando a con- vicção, de que o mouro de Fez já não queria Ceuta, pois a irritação dessa guerra chronica na fronteira convinha á saúde quebrantada do seu império ' . Fosse verdade, ou fosse apenas a satisfação platónica dada pela politica ao remorso nacional, Ceuta não se entregou. E desde que em Fez se começou a dissipar a esperança do resgate do infante, a sua sorte foi dia a dia tornando-se mais cruel. Durante os primeiros mezes de prisão, em- bora carregados de ferros, a vida em commum era, todavia, um lenitivo suave para o sotfrimento dos captivos; mas ao cabo d'este primeiro período separaram-nos, e o infante martyr foi mandado para as estrebarias do paço, limpar os cavallos do sultão, ou para as suas hortas cavar como um servo. Tinha as mãos chagadas e as pernas em sangue dos ferros que arrastava. Para o despojarem, tinham-no despido; pondo-o em camisa, roubaram-lhe as duzentas moedas de oiro que levava cosidas no gibão. Escravisado, só, açoitado a cada momento, com látegos e com injurias, ainda assim, a medida do seu martyrio não estava cogulada: faltava só roubarem-lhe a luz e o ar, o sol, e de noite o luzir das estrellas palpitantes na abobada negra — as mesmas es- trellas que também se viam de Portugal, as próprias estrel- Pina, Chron. de Affonso V, liv. 240 Os filhos de D. João I las que eram luzeiros rfessas campinas do céu infinito, única pátria por que suspirava já... Isto mesmo, a suave esperança da morte redemptora, lhe roubaram, encerrando-o num cubiculo immundo, cloaca in- fecta, onde apenas podia mover-se ; e mais desgraçado ainda do que Job no seu esterquilinio, viveu quinze mezes, de joe- lhos, n'uma oração permanente. Que extraordinária prece devia ter sido essa!!.. Os joelhos tinham ganho calos. A pelle, assentando sobre os ossos, mostrava o esqueleto de- formado pelas demoradas attitudes contrafeitas. Era horrí- vel e pungente ao mesmo tempo o seu aspecto; mas quanto mais triste e miserável se lhe tornava o corpo, mais se lhe espiritualisava a alma, voando solta na liberdade absoluta do heroismo santo. Um dia, ao cabo de mais de cinco annos de captiveiro, sentiu-se 'desprender de todo do mundo; e os verdugos, ao vel-o agonisante, apiedaram-se. Na presença do physico e do confessor expirou a 5 de julho de 1443. Já na véspera acreditara morrer; mas a tarde caiu, veiu a noite, e dei- tado de costas, com a face luminosamente serena, como de um anjo, com os olhos abertos e arrazados de lagrimas, com as mãos postas para o céu, ficou estático. Ás perguntas que lhe faziam se dormia, ficava indifferente ; e os compa- nheiros trocavam olhares, inquirindo se teria morrido. Com- prehendendo-os, disse tenuemente: — Bem vos ouço. . . Ouvia-os sim, mas pairava já entre a terra e o céu que via abrir-se-lhe, com os coros de anjos descendo em turbi- lhões de luz a trazer-lhe a palma verde do martyrio, verda- deiro sceptro de um império deslumbrante. De manhã expirou, depois de se confessar. Os próprios mouros o tinham por santo, ou antes, diziam que o seria, se não fosse christão. A santidade inferiam-na elles de três signaes positivos que observavam no infante: a sua virgin- dade, o não ter mentido nunca, e o viver mezes na prisão ajoelhado sempre. E condemnavam os portuguezes por te- rem deixado assim morrer ao abandono o infante martyr. Tanger 24 1 Removeu-se o cadáver para outro logar e, chamados os companheiros do captiveiro, quando o viram, chagado, sujo, frio, mas com uma face de cherubim, cuja illuminaçao escon- dia todas as misérias, caíram de bruços no chão, em altos prantos, esbofeteando-se, arrancando as barbas, numa crise suprema de desespero. Tiraram-lhe os ferros, lavaram-no, e iam dar-lhe sepultura, quando o mouro o mandou abrir e extrahir-lhe as vísceras. Depois, na mudez da impotência desesperada, viram-no partir. O mouro mandára-o pendurar pelos pés, de cabeça para baixo, nas ameias dos muros, expondo-o á irrisão da plebe. Era o rei de Portugal! Em sua honra houve festas e cannas no próprio logar, durando a atíronta sacrilega quatro dias funestos. Ao cabo d'elles foi o cadáver mettido num ataúde, chumbado contra as muralhas no sitio onde estivera exposto. Lúgubres trophéus de victoria eram esses, porque fazia milagres o ataúde do infante, a que até os verdugos cha- mavam santo em vista de tão crú soffrimento ' . A sua pai- xão dolorosa enternecia os próprios inimigos. Cinco dos companheiros de captiveiro morreram com elle, e entre os resgatados voltou fr. João Alvares para escrever a chronica do martyrio2. A fama d'esta fúnebre tragedia correu pela Europa, e Calderon (1601-1681) no seu drama do Prín- cipe Constante, celebrava-a ainda após mais de dois séculos decorridos. A impossibilidade de cumprir o testamento de D. Duarte entregando Ceuta, a resignação de D. Fernan- do3, a heroicidade de D. Henrique, constituem o fundo do 1 Pina, Chron. de D. Affonso V, lxxxiii. 2 Crónica do saneio e virtuoso iffante dom Fernando, filho dei Rey Dõ Johá primeyro deste nome, que se finou em terra de mouros. Por fr. João Alvarez, corrigida por Jeronymo Lopes. Lisboa, 1527. 3 Chron. de Zantjliet: «Porro ad suos: quidquid, inquit, promisertis paganis, nunquam illam nobilem Septam ad manus iníidelium, colentium legem Mahometi, reverti permittatis. Ego pro vobis obses manebo in vinculis paganorum paratus potius sustinere mille mortis genera, quam effestucationi Septae consentire.» — Ap. Cardeal Saraiva, Obr. comp., m, 332. 16 242 Os filhos de D. João I drama. «Porque me não dás Ceuta ?» pergunta o mouro a D. Henrique. «Porque é de Deus e não minha!» ^Como fuera, como fuera Posible entregar a un moro Una ciudad que le cuesta Su sangre, pues fue el primero Que con sola su rodela Y una espada enarboló Las quinas en sus almenas ? • Trinta annos depois, com as voltas que o mundo dá, conquistada Arzilla por Affonso V, os ossos de D. Fer- nando vieram dormir para Portugal. OS TRATOS DA GUINE smagado pela catastrophe de Tanger, perseguido pelas sombras do rei que matara e do moço irmão que morria torturado nas masmorras do mouro de Fez, vergando ao peso da animadversao do reino inteiro, D. Henrique, só dentro em si, no calor da fé em que ardia, encontrava força para reagir contra a enormidade da sua desgraça. Outro homem, por tal forma victima da fatalidade, bateria contricto nos peitos, e, como disse mais tarde Ma- galhães, esconder-se-ía para morrer «com sete varas de panno e umas contas de bugalhos» na serra de Ossa, que era já no século xv uma thebaida. Elle, não. Tinha o génio que, por successão collateral, renasceu em Carlos-o-Teme- rario, seu sobrinho, e mais afortunado do que este, esma- gou a adversidade hostil. Tinha a energia animal prepon- derante, e oração, penitencia, contemplação e piedade, tudo isso transformava em trabalho ardente. Não se escondera em Sagres para gemer, passivo, a in- clemência da sorte: fugira para lá, porque a desforra do mundo inimigo havia de tiral-a persistindo no seu plano. Contra elle não valiam, nem o sizo da gente sabia e pru- 244 Os filhos de D. João I dente, nem as queixas da gente sentimental, nem os escar- neos da gente vulgar1. A sua idéa tinha duas faces como Jano: uma, a conquista de Marrocos, estava por agora pre- judicada; mas não assim a outra, a descoberta marítima da costa de Africa para o sul. Dando, pois, tempo ao tempo, fechou-se ainda mais em si, fechou-se de todo em Sagres, e formando o balanço do que havia feito, deitou-se a urdir as traças de novas aventuras. Cinco rasões o impelliam, diz o chronista: saber o que havia, destruir na origem o poder dos mouros, propagar a fé, communicar com os christãos da Ethiopia, achar n1elles alliados; e sobre estes cinco mo- tivos arrastava-o um sexto que parece que he rai\ donde todollos outros procedem, quer dizer, a sua sina, a sua es- trella, a inclinaçom das rodas cellesíriaães2. A astrologia preoccupava ainda os melhores espiritos. A villa do Infante ia, pedra a pedra, levantando-se do chão3; os seus projectos tomavam gradualmente corpo. Sentia renascer-lhe uma vida nova, e desfazerem-se pouco a pouco as sombras da sua 1 «Logo nos primeiros annos, vendo as grandes armações que o in- fante fazia com tamanhas despezas, deixavam o cuidado de suas próprias fazendas e occupavam-se em departir, o que pouco conheciam ; e quanto a cousa tardava mais de vir a fim, tanto suas representações eram maio- res. E o que peor era, que além dos vulgares do povo os outros maio- res fallavam em ello casi por maneira de escarneo, tendo que eram despezas e trabalhos de que não podia vir proveito algum.» — Azurara, Conq. de Guiné, xvm. 2 «Porque o seo acendente foe Aryes que he casa de Mars e he eixaltaçom do sol, e seu senhor está em a xj, casa, acompanhado do sol. E porquanto o dicto Mars foe em Aquário, que he casa de Satur- no, e em casa desperança senificou que este senhor se trabalhasse de conquistas altas e fortes, especyalmente de buscar as cousas que eram cubertas aos outros homêes, e secretas, segundo a callydade de Saturno em cuja casa elle he. E por seer acompanhado do sol, como disse, e o sol seer em casa de Júpiter, senificou todos seus trautos e conquistas seerem lealmente feitas e a prazer de seu rey e senhor.» — Ibid., vn. 3 Depois de Tanger «o infante communalmente sempre estava no reino do Algarve por razão da sua villa, que então mandava fazer, e as prezas que aquelles traziam descarregavam em Lagos». — Ibid., xvm. Os tratos da Guiné 245 alma, como os nevoeiros da manha quando sobem e se dis- sipam ao aquecer dos raios do sol. O passado era este: depois de doze annos de viagens suecessivas, em 1433, partira de Lagos Gil Eannes, escu- deiro do infante, e voltara das Canárias sem ter dobrado o cabo Bojador; mas no anno seguinte, reprchendendo-o D. Henrique por hesitar diante de «umas lendas boas para creanças», Gil Eannes foi de novo, passou o cabo, saltou em terra que achou deserta, e trouxe em signal d'ella «estas hervas, as quaes nós em este regno chamamos rosas de sancta Marya». Largou de novo Gil Eannes na sua barca, mais Affonso Baldava n'um varinel, e, alem do cabo, foram até á angra dos Ruivos. Em terra encontraram rasto de homens e camellos'. Em 1436 voltou Baldava, e desceu até á angra dos Cavallos, onde desembarcou, batendo n'um encontro os indígenas, e regressando ao Algarve com redes de casca, dos gentios, por trophéus2. Eis ahi o que se conseguira até á data funesta de Tanger. Comprehende-se, pois, que houvesse descrenças e murmú- rios. Os resultados não compensavam. Esporeado pela des- graça, obrigado a protrahir a idéa da conquista de Marro- cos, o infante applicou todos os seus cuidados ás navegações. Alguns dizem ser d'esta epocha a vinda de Javme de Mayorca para a escola ou academia de Sagres, datando-a, porém, ou- tros da sua instituição, depois de Ceuta. E Cadamosto põe logo em 1439, ou 1440, a viagem de Diniz Fernandes, escu- deiro do infante D. João, que teria descido na costa até á foz do Quedec ou Ouedec, Sanagá ou Senegal3. No anno seguinte partiram Antão Gonçalves e Nuno Tristão que, tendo ido até ao porto do Cavalleiro, voltaram com os pri- meiros captivos4. » Azurara, Conq. de Guiné, vm e ix. 2 Ibid., x; Barros, Década, 1, 1, 5. 3 Naveg. de Cadamosto, na Coll. de not. da Academia, 11. — Cf. Góes, Chron. do Pr. D. João; e Barros, Dec., 1, 1, 3. 4 Azurara, Conq. de Guiné, xiv. 246 Os filhos de D. João Esta viagem trazia um resultado positivo da exploração da costa africana. Sabia-se claramente já que, nem o mundo acabava n'um mar tenebroso, nem as terras eram deshabi- tadas. Havia gente, portanto havia riquezas, sobre esses territórios vagos para que no direito do tempo se não en- contrava dono, a não ser o papa, chefe de toda a christan- dade, suzerano de todos os príncipes, representante de Deus na terra> que de Deus era. Ao papa l mandou, pois, o in- fante D. Henrique uma embaixada, como mestre da ordem de Christo, encarregando da missão o cavalleiro da mesma ordem Fernão Lopes de Azevedo. Pedia o infante ao papa que as terras descobertas fossem doadas á coroa portugueza, e que os rendimentos ecclesiasticos d'ellas se repartissem com a ordem de Christo2. As descobertas eram, com effeito, uma forma nova de conquista, e as conquistas e descober- tas, intimamente ligadas nas emprezas de Africa, a continua- ção das Cruzadas, nas quaes o papado exercera uma espé- cie de hegemonia sobre os principes christãos, para fora dos domínios dos estados herdeiros do velho império romano. Já para Ceuta, já para Tanger, o papa tinha emittido bulias de Cruzada,- e, portanto, as pretensões do infante, embora novas, por se referirem a um caso também novo, filiavam- se naturalmente na tradição. Annuindo Eugénio IV ás pro- 1 Barros, Dec, 1, 1,4, diz Martinho V, erradamente. Martinho V go- vernou a Igreja de 1417 a 143 1. Em 1440 ou 1441, o papa era Eugé- nio IV (1431 a 1449). V. em Sousa, Hist. Gen., Provas, 1.442, a bulia de Eugénio IV, 1445, confirmando as doações de D. Duarte e D. Affonso V ao infante D. Henrique e á ordem de Christo, da jurisdicção espiritual das conquistas. No mesmo tomo 1 (p. 444-5) podem ver-se também as doações do espiritual das ilhas e do ultramar, em 1449 e 1454, por D. Affonso V a D. Henrique, grão-mestre de Christo; bem como a pag. 446 a bulia de Nicolau V (1449-55), confirmando a doação de 1454, e a de Callisto III ( 1455-58) ratificando a precedente. E de 8 de janeiro de 1450 a bulia de Nicolau V, concedendo a D. Affonso V a sobera- nia em todos os territórios descobertos por D. Henrique; e de 1454 outra bulia do mesmo papa ratificando as descobertas á coroa portu- gueza. 2 Azurara, Conq. de Guiné, xv; Barros, Dec, 1, 1,7. Os tratos da Guiné 247 postas de D. Henrique, e confirmadas ao depois as primei- ras bulias pelas de Nicolau V (1471-84), impetradas por Affonso V c João II, chegou-se á famosa sentença de Ale- xandre VI, em 1493, que dividiu entre Castella e Portugal todo o mundo desconhecido por um meridiano traçado 370 léguas a O. de Cabo Verde : sentença, todavia, não reco- nhecida, nem pela França, nem pela Hollanda, nem pela Inglaterra, os paizes que nos disputaram, á Hespanha e a nós, o império marítimo. Antão Gonçalves tornou a Africa, visitando esse golpho que lhe pareceu um rio e a que chamou, ou que já se cha- mava1, do Oiro, porque de lá trouxe oiro em pó, mais es- cravos, e ovos de emma «que vieram um dia á meza do infante três iguarias d'elles, tão frescos e tão bons como se foram de algumas outras aves domesticas»2. Já os maldi- zentes não escarneciam nem desdenhavam das emprezas de D. Henrique. «Constrangidos pela necessidade, confessa- vam sua mingua, havendo-se por néscios pelo que antes não conheceram, pois manifestamente diziam que o infante não podia ser senão que era outro Alexandre, e d'ahi a cobiça começava-lhes a crescer, vendo as casas dos outros cheias de servos e servas e suas fazendas acrescentadas»3. Deve reconhecer-se que é este o momento em que a vida nacio- nal muda de rumo. O oiro e os negros arrebatam-na. De- nuncia-se a febre da cobiça; e todos os motivos antigos de acção collectiva ficam obliterados, ou pelo menos subalter- nisados, por este outro motivo — norte que o infante D. Hen- rique, dobrado sobre os seus mappas, esquecido das tor- turas de Tanger, aponta fatidicamenie ao povo portuguez, indica propheticamente ás nações modernas: o norte da con- 1 Cf. supra, a pag. 68, a nota acerca da viagem de Jacques Ferrer. 2 Azurara, Conq. de Guiné, xvi 3 Ibid., xviii. — Barros, Dec. 1, 1, 8, diz assim: «Porque das guerras passadas entre este reino e o de Castella e assim das idas de Ceuta e Tanger e outras despezas e lançamentos de fintas, estava a gente tão necessitada, que com grande trabalho se podia manter». 248 Os filhos de D. João I quista nova, utilitária e chrematistica da terra, convertida em concessão a explorar pelos homens1. Desde a tomada de Ceuta, havia já então mais de um quarto de século, que Lagos se tornara o centro de uma navegação activa para a costa fronteira. Os algarvios servi- ram sempre com seus corpos e navios na guerra dos mou- ros2; e em parte alguma do reino soavam mais alto os traba- lhos do infante. Agora que se viam os resultados positivos da navegação e do resgate do rio do Oiro, cumpria dar um novo impulso ás expedições e ampliar-lhes os recursos para assegurar o êxito. A novas emprezas tinham de correspon- der instituições novas. Emquanto o empenho era conquistar terras á moda antiga, as formulas das velhas doações, ainda usadas nas ilhas atlânticas, serviam para consolidar os feitos da cavallaria e da fé; porém agora não se procurava assentar o domínio em terra, mas sim desfloral-a apenas, saqueando as costas, fazendo escravos, resgatando nos productos do sertão, sobretudo em oiro! Espontaneamente se repetia a historia; e as barcas e varineis de Lagos iam como tinham ido, em remotas idades, as gaulos do carthaginez pelas costas atlânticas da Hespanha caçar escravos, e até ao mar do norte, ás Cassiteridas, buscar estanho. E se d'estas excursões marítimas veiu a extensão do império á cidade em que os Barcas reinavam, como depois reinou D. Manuel em Portugal, primeiro negociante n'uma republica de mer- 1 Gaspar Fructuoso, nas suas Saudades da terra, diz do tumulo do infante D. Henrique, na Batalha, o seguinte : «Tem por divisa este Infante D. Henrique huma sepultura dourada e humas bolças e lettras douradas, tudo já gastado; e dizem ter isto assi por ser elle o per cuja industria se descobrio a mina da qual veio e vem a Portugal muito ouro.» (Pag. 9 da ed. Azevedo.) A descoberta da Mina foi posterior á morte do infante, mas não assim o resgate do oiro que já se fazia na costa de Arguim. 2 Azurara, Conq. de Guiné, xlix. Os tratos da Guiné 249 cadores, também nos veiu a nós, das excursões ao. longo da Africa, o domínio sobre essa parte enygmatica do mundo, Africa portentosa, segundo a tinham denominado os roma- nos. Espontaneamente, creava-se também, para uma acção determinada por motivos novos, a forma nova das compa- nhias. Imitadas, sem duvida alguma, das companhas dos pesca- dores, as sociedades de navegação e commercio, que tive- ram na companhia de Lagos o seu primeiro typo, provaram ser instituições tão adequadas á exploração precária e arris- cada das regiões ignotas, que todas as nações coloniaes fize- ram como nós, ampliando e desenvolvendo o typo a ponto de o transformarem em molécula politica de uma nação, qual foi a Hollanda, federação de companhias ultramarinas, ou em alicerce da riqueza publica, fundamento de um im- pério, como succedeu na Inglaterra com a companhia das índias orientaes. Taes consequências estavam implícitas na primeira com- panhia fundada em Lagos pelo infante, para o resgate do rio do Oiro. Conferida a soberania á coroa portugueza pelo papa. o rei doara a D. Henrique o quinto de todas as producçÕes trazidas ao reino pelos exploradores das regiões novas, onde ninguém podia ir com navio armado sem espe- cial permissão do infante concessionário1. O mar era o seu domínio, exclusivo como um couto, maré clausnm. Os ini- ciadores da companhia de Lagos para a Africa foram Lan- çarote, almoxarife do rei e antigo escudeiro do infante; Gil Eannes, o velho marinheiro que dobrara o cabo Bojador; Estevam Aífonso, homem nobre, que depois veiu a mor- rer nas Canárias; Rodrigo Alvares, João Bernaldes e João Dias, armador de navios. Cada um dos seis commandava a sua caravella bem armada em guerra. Pela primeira vez partia uma esquadra: até ahi tinham ido apenas barcos de pesca2. ' Azurara, Conq. de Guine, xvm. 2 Ibid., \\\. 25o Os filhos de D. João I Pela primeira vez, também, nos tempos modernos, os exploradores de Lagos praticaram em regra a caça de es- cravos. Descendo a costa até ao cabo Branco, o theatro das suas façanhas foi aquella depressão da terra, limitada ao sul pelo cabo do Resgate e pela bahia de S. João. Ao norte, junto de Arguim, fica a ilha de Naar, ao sul a ilha de Tider ou Tidra: em ambos estes pontos caíram sobre as populações miseráveis. Saltando em terra, e vendo que os mouros fugiam com as mulheres e os filhos, «chamando por Santiago, San Jorge e Portugal, davam sobre elles, matando e prendendo quanto podiam». Viam-se as pobres mães desamparar os filhos e os maridos as mulheres, tra- balhando cada qual de se salvar. Uns afogavam-se no mar, outros, com uma simplicidade de rezes, escondiam-se nas suas cabanas, outros mettiam os filhos debaixo dos limos e algas. «E emfim Nosso Senhor Deus, que a todo o bem dá remuneração, quiz que pelo trabalho que tinham tomado por seu serviço aquelle dia cobrassem victoria de seus ini- migos e galardão e paga de seus trabalhos e despezas, ca- ptivando d'elles, entre homens, mulheres e moços, cento sessenta e cinco, afora os que morreram e mataram» '. Isto foi na ilha de Naar: na de Tider repetiu-se o feito, vindo para Lagos ao todo duzentos e trinta e cinco captivos, dos quaes o quinto pertencia ao infante D. Henrique2. O desembarque dos carregamentos de escravos em La- gos é um quadro eífectivamente novo, que nos transporta em imaginação aos tempos remotos. A escravidão histórica, filha principalmente da guerra, porque as suas outras ori- gens tinham caído condemnadas pela philosophia na Anti- guidade e pela caridade christã nos tempos modernos, não tinha já na população portugueza do século xv mais do que um papel subalternissimo. Reconhecido, porém, ainda na lei esse facto que reduz o homem á condição miserável de cousa, a exploração da Africa ia dar-lhe rapidamente um • Azurara, Conq. de Guiné, xix. 2 Ibid., xx, xxi. Os tratos da Guiné 25 1 papel decisivo, não só para a população do reino, como para a economia das suas colónias. Ás companhias de na- vegação junta-se, pois, o trafico dos escravos, na serie dos phenomenos sociaes novos que espontaneamente sácm da iniciativa enérgica d'esse homem, em cujo cérebro renas- cia o génio mercantil de Hannon e o génio militar de An- nibal. Na praia de Lagos, o infante a cavallo presidia ao desem- barque e á partilha. O campo em volta escurecia com a gente apinhada para assistir ao estranho espectáculo; c o ar cortado pelos gemidos dos miseráveis corria, levando a noticia do grande facto que se consummava. Os captivos desciam dos bateis sobre a praia, onde ficavam como ma- nadas de gado. «Entre elles havia alguns de razoada bran- cura, formosos e apostos; outros menos brancos, querendo similhar pardos; outros tão negros como ethiopes e tão des- affeiçoados, assim na cara como nos corpos, que quasi pa- recia aos homens que os guardavam que viam as imagens do hemispherio mais baixo»1. Eram azenegues: não se che- gara ainda á região do jolofos e mandingas do Senegal; explorara-se a zona extrema das raças brancas da Africa do norte, em que ellas começam a apparecer cruzadas, sem, todavia, produzirem ainda o typo negroide da Sene- gambia, transição para a nigricia plenamente caracterisada na Guiné. «Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em la- grimas, olhando uns contra os outros; outros estavam ge- mendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em elles, bradando altamente como se pedissem soccorro ao padre da natureza; outros feriam seu rosto com suas palmas lançando-se tendidos em meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto»2. Arregimentados na praia, o infante a cavallo pas- sava-lhes revista: aquelle dia desforrava-o de Tanger! Se 1 Azurara, Conq. de Guiné, xxv. 2 Ibid. 252 Os filhos de D. João I fora vencido pelos homens, vencia a natureza: porque esse rebanho de bipedes, com aspecto humano, não lhe fazia bem o eífeito de gente. Alem da cor, não conheciam Deus. Ti- nham na alma a mesma escuridão da pelle. Também as ovelhas baliam e os bois mugiam, com vozes de enternecer as pedras. . . Mas, como tinha o coração de bronze, o in- fante seguia adiante, mandando proceder á repartição do gado humano. «Começaram de os apartar uns dos outros a fim de porem seus quinhões em igualeza, onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos padres, as mulheres dos maridos e uns irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei: somente cada um caía onde a sorte o levava»1. Tiravam-nos a dados, para não haver queixa na partilha, e a crueldade do acaso victimava os infelizes, cujo murmúrio de lamentações se tornava de repente numa explosão de choro desesperado, ao verem que «o padre ficava em Lagos, a madre traziam para Lisboa, e os filhos para outra parte»2. Dos quarenta e seis captivos que á sorte couberam ao infante, pelo seu quinto, «muy breve fez d'elles sua par- tilha» pois na satisfação da vontade punha a mira da ri- queza; e o chronista acrescenta piedosamente: «Ora vede que galardão deve ser o do infante ante a presença do Se- nhor Deus, por trazer assim á verdadeira salvação, não so- mente estes, mas outros muitos que ao diante n'esta histo- ria podeis achar!3» Com eífeito, no espirito do tempo, ainda o motivo proselytico da tradição, predominava sobre o mo- tivo nascente da cobiça que veiu a tornar-se exclusivo, como era de sua natureza, no trafico dos escravos e na escravi- dão colonial; e a consciência religiosa, achando na salvação eterna a sancção da deshumanidade, instinctivamente con- demnada, influía para moderar a crueza. O chronista af- firma que, baptisados todos, nunca a nenhum d'elles se 1 Azurara, Conq. de Guiné, xxv. 2 Ibid., xxvi. 3 Ibid., xxvi Os tratos da Guiné 2 53 pozeram ferros. Mas depois chegou-se a marcal-os a fogo, como bestas. Sobre a praia, o infante armou cavalleiro a Lançarote. Esta caça de espécie nova, incomparavelmente mais pro- duetiva, desvairou o juizo á gente algarvia. Gonçalo de Cin- tra partiu logo (1445), mas, dando o nome á sua angra, morreu assassinado pelos azenegues da ilha de Arguim: a maré vasava, o batel ficou em secco, os bárbaros trucida- ram-no1. No mesmo anno vão a salvamento ao rio do Oiro, Antão Gonçalves, Gomes Pires e Diogo Aífonso; depois Nuno Tristão, e a final Diniz Dias, que prosegue avante, até Cabo Verde, em cheio na terra dos jolofos2. Como se vê o movimento accelerava-se, desde 1409 ou 1440, data da pri- meira viagem de Antão Gonçalves. Com este periodo em que a exploração africana tomava calor, realisando as pre- visões do infante, coincidia a crise da regência pela morte de D. Duarte, conforme contaremos depois; e comprehen- de-se como por incúria D. Henrique deixou que a lueta entre D. Pedro e o conde de Barcellos chegasse ao ponto de ter de liquidar-se em Alfarrobeira, n'uma tragedia. A cobiça e a ambição do conde de Barcellos, o génio ordenado e justo do infante D. Pedro, haviam de parecer-lhe cousas mesquinhas para a sua allucinação, como lhe parecia de certo mesquinho o reino perante a vastidão do mundo que via abrir-se-lhe. De Portugal só queria barcos, mareantes e dinheiro para expedições', e tudo isso obter-se-ía melhor de um rei creança e assomado, regido por fidalgos ávidos, cuja avidez tinha a certeza de saciar, do que de um regente discreto e sábio. Comprehende-se pois, também, como deixou que o victimassem. ' Azurara, Conq. de Guiné, xxvn. 2 Ibid., XXIX, xxx, XXXI. 254 Os filhos de D. João I Lançarote, cavalleiro, engrandecido com o êxito da via- gem de 1445, desde logo planeou outra empreza maior. Casara com a filha de Soeiro da Costa, alcaide de Lagos, homem nobre, creado de moço na camará de el-rei D. Duar- te, que estivera na batalha de Monvedro (141 2) com el-rei D. Fernando de Aragão (pae da rainha D. Leonor) contra os de Valença; depois no cerco de Balaguer (1413), onde ficou prisioneiro o conde de Urgel (pae da infanta D. Iza- bel, mulher de D. Pedro); que antes fora com Ladislau de Nápoles na entrada de Roma (1404) para suffocar a insur- reição contra Innocencio VII; e com o conde de Proven- ça, Luiz II (1409-12) alliado ao Malatesta e ao legado de Bolonha, Balthazar Cossa; que combatera em Azincourt (141 5), emValmont, achando-se com o conde de Foix na batalha de Monseguro, na tomada de Soissons (1410-11), no cerco de Arras (14 14), e finalmente com D. João I em Ceuta. Era o personagem mais importante do Algarve, car- regado de annos e de batalhas, arvore da gente guerreira antiga, na qual, pelo casamento da filha, se enxertava a no- breza nova da navegação e do commercio, iniciada por Lançarote, o inquieto aventureiro. Em 1447, D. Henrique tivera de deixar o Algarve para ir de fugida a Coimbra acudir ao chamamento de D. Pedro que, banido da corte, entrevia já o fim desgraçado que lhe preparavam. Lançarote ficou organisando a companhia e a expedição. No syndicato entrava toda a gente do Algarve: Soeiro da Costa, Álvaro de Freitas, commendador de Al- jezur, da ordem de Santiago; Gomes Pires, patrão de el-rei; Rodrigueannes de Travassos, creado do infante D. Pedro, es- cudeiro mui ardido, e outros mais. O requerimento da con- cessão a D. Henrique fora feito por Lançarote, almoxarife de Lagos, juntamente com os juizes, alcaides e oíficiaes da vereação da villa1. Lagos, segundo se vê, precedia o que de- pois fizeram os senados de Londres e Amsterdam, quando se constituíam em emprezas armadoras de exploração colonial. ' Azurara, Conq. de Guiné, xlix, li. Os tratos da Guiné 255 A frota de Lagos, saída a 10 de agosto, era a maior que até então se armara: iam quatorze caravellas-, e a estas se haviam de juntar na ilha de Tider, em Arguim, mais doze equipadas em Lisboa e na Madeira. Diniz Dias e Nuno Tristão, o que em 144J fora pela primeira vez ao cabo Branco e á ilha de Arguim, centro do resgate do Senegal e do Gambia1, levavam uma caravella; Álvaro Gonçalves de Athayde, aio de el-rei, e que depois foi conde de Athou- guia, levava outra \ outra, João Gonçalves Zarco, o desco- bridor da Madeira; e assim por diante até vinte e seis, fora a fusta de Pallenco. O infante dera a Lançarote a bandeira da Cruzada, a cuja sombra todos os que morressem o eram absoltos de culpa e pena, segundo o outorgamento do Santo Padre2». A piedade christã conspurcava-se de tal modo, a ponto de copiar o islamismo grosseiro. Defendida pelo cabo Branco, Arguim apresentava na costa o remanso de extensas bahias, a estação adequada ao esta- belecimento de uma feitoria como as que os genovezes e venezianos, continuando tempos antigos, tinham fundado pelos confins remotos do Mediterrâneo oriental, na terra dos turcos. O dominio portuguez na Africa descoberta dei- tava ferro, tornando-se amphibio, desde que o infante man- dava, em 1448, construir um forte em Arguim3; e aos ca- racteres anteriores da empreza, o commercio marítimo por companhias e o trafico dos escravos, juntava-se mais um traço novo — a feitoria litoral, guardada por uma fortaleza. Passo a passo, o systema se ia completando. 0 traço que immediatamente apparece como remate dos precedentes e complemento da instituição das companhias de navegação, é o do monopólio do commercio maritimo colonial. Assente em Arguim a primeira feitoria, o infante contrata logo o resgate n'esse ponto, pelo praso de dez annos. Ninguém, salvo os contratadores, poderia entrar no 1 Azurara, Conq. de Guiné, xvn. 2 lbid. lv. 3 Naveg. de Cadamosto, na Coll. de not. da Academia, x. 256 Os filhos de D. João I golpho de Arguim para traficar com os indígenas ; e os con- tratadores, ao abrigo da fortaleza, teriam a sua feitoria e feitores, com as mercadorias do trato sertanejo: pannos, tecidos, prata, alquizeis (túnicas), tapetes e sobretudo trigo, para a compra de negros e oiro1. O primeiro contrato de Arguim foi dado necessariamente a Lançarote, organisador da companhia de Lagos, representante d'essa cavallaria nova do commercio ultramarino que ia transformar por completo o organismo e com elle o temperamento da sociedade por- tugueza. Em 1469, já depois da morte do infante, e tendo regres- sado á coroa a doação ou concessão que ella lhe fizera das rendas da Guiné, D. Affonso V deu o contrato d'esse com- mercio por cinco annos a Fernão Gomes, com a obrigação de descobrir quinhentas léguas de costa para o sul, a contar da serra Leoa. A renda era de duzentos mil réis em cada anno. Todo o marfim seria comprado ao preço de mil e qui- nhentos reaes o quintal, por el-rei que tinha contratada a venda d'elle com lucro a Martim Annes Boaviagem. Cada anno podia resgatar um gato de algalia2. O contrato de 1469 1 «As cousas seguintes não foram tratadas com tanto trabalho e for- taleza como as passadas, ca depois d'este anno avante sempre se os feitos d'aquellas partes tratavam mais por tratos e avenças de merca- doria que por fortaleza nem trabalho d'armas.» — Azurara, Conq. de Guiné, lxv. 2 O almíscar do gato d'algalia (viverra), a que os árabes chamam qabad, e na índia jibeth, d'onde os francezes fizeram civette, era um dos perfumes mais estimados. O animal tem abaixo do cocix uma ca- vidade maior ou menor contendo uma matéria gordurosa, similhante ao almíscar, a principio branca, mas que escurece com o tempo. Pietro Delia Valle, nas suas viagens, conta como viu, no Mar Vermelho, fazer- se a cria do gato d'algalia, ordenhando-o regularmente como se faz para a extracção do leite : «Quei che chiamano Gatti dal zibetto; animali fieri, delia grandezza quasi di un bracco da quaglie, ma piú grossolani e di forma in vero si- mili a gatti; de' quali vidi un gíorno molti en casa de um venetiano, che li tenea nelle gabie; e vidi cavarne in mia presenza il zibetto, che non è altro, che il sudore, che dopo havergli alquanto affaticati, raccolgono Os tratos da Guine ib'] cxcluia a terra firme fronteira ás ilhas do Cabo Verde por ser do infante D. Fernando (a quem D. Henrique deixara em testamento esse legado) e o resgate da feitoria de Arguim por ser do príncipe D. João, filho do rei. Mas Fernão Gomes conseguiu haver da casa do principe o direito do resgate mediante o preço de cem mil reaes cada anno1. Felicíssimo, Fernão Gomes descobriu o resgate do oiro «onde ora chamamos a Mina» reconhecendo a costa até ao cabo de Santa Gatharina2. Estava torneada a grande pro- tuberância que a Africa faz no Atlântico*, e encerrada a primeira epocha das navegações, ficava-nos patente o grande golpho da Guiné com as suas ilhas e a costa para o sul até ao extremo do continente. Estavam consolidados os títulos da nobreza nova que appareceu triumphante em Fernão Gomes. Militara com Alfonso V em Alcácer e em Tanger, fora armado cavalleiro, e teve nobreza com novas armas: «um escudo timbrado com o campo de prata e três cabe- loro con un cuechiaio fra le gambe sotto ai coscie. E per poter ciò fare, che non mordano, tengono ciascuno animale dentro una gabbia forte di legno, ma tanto angusta e stretta, che 1'animale non vi si può voltare, e quando voglione il zibetto, dopo haverlo fatto sudare, agitandolo qual- che poço dentro alia stessa gabbia con una brachetta, aprono un poço la gabbia per de dietro, quanto ne possono tirar fuori le gambe poste- riori, senza che l'animale si possa voltare ad ofiender chi lo tira : e tratto el zibetto nel modo che ho detto di sopra, le rimettono poi dentro, te- nendo sempre l'animale bem serrato.» — Delia Valle, Viaggi, i, 3y5. * Barros, Dec. i, 2, 2. A renda do monopólio do commercio africano na segunda metade do século xv attinge uma somma considerável. Tre- zentos mil reaes, a 114 réis, valor intrínseco d'essa moeda no tempo de AffonsoV (Aragão, Descripção geral, etc, 11, 240 e 241) represen- tam 34:200^000 réis da nossa moeda, que segundo Leber (Essai sur l'appr. de la fortune privée, etc, io3) é seis vezes mais fraca do que a da epocha a que nos referimos. A receita colonial equivaleria, pois, a 20o:oooCooo reis. Do mesmo modo, o preço do quintal de marfim or- çaria por 1:000^000 réis. No começo do século xvn Cabo Verde e a Mina, que veiu substituir o velho trafego de Arguim, rendiam para o thesouro o equivalente de 3oo;oooC^ooo ou 35o:ooo^oooréis. — Cf. Por- tugal nos mares, do auetor, 126. 2 Barros, ibid. 258 Os filhos de D. João I ças de negros cada um com três anneis de oiro nas orelhas e no nariz e um collar de oiro ao collo». O appellido ficou sendo Mina1. Havia ainda a confiança espontânea: glorifi- cava-se o acto, sem remorsos, nem equívocos inherentes. A nobreza nova não era uma parodia. Esses traficantes de escravos julgavam-se ainda tão dignos de ennobrecimento, como os seus antepassados, que tinham conquistado Por- tugal lanceando mouros. Todavia a inveja, accesa em todo o reino com a riqueza súbita dos contratadores de Africa, expandia-se em queixas contra os afortunados caçadores de negros. Nas cortes de 1473, em Coimbra, um anno antes de expirar o contrato de Fernão Gomes, os povos reclamam, sem ser attendidos, que os tratos da Guiné se arrematem em praça, a lanços, para que os benefícios possam servir a todos; que findo o contrato do melaço da ilha da Madeira, seja livre a compra e venda do assucar da mesma ilha2; que se não levem para 1 Barros, Dec. 1, 2, 2. 2 O contrato do assucar da Madeira tem uma accidentada historia, fácil de extrahir dos diplomas publicados nas notas á ed. das Saudades da Terra, do sr. Azevedo. Começa pelo contrato de dezembro de 1452, feito em Albufeira en- tre o infante D. Henrique e Diogo de Teive, seu escudeiro, para a con- strucção de um emgenho daugua que desse despacho a todos hos ca- naueaees, mediante o pagamento da terça parte do producto do infante sem lhe eu dar ninhiia coisa (pag. 665). Ao mesmo tempo o foral pri- mitivo da ilha mandava pagar metade, de todas as canas que não fossem reduzidas a assucar. De tudo isto veiu a generalisação das prensas ou alçapremas em que, mediante o imposto de arroba e meia por mez, os lavradores faziam o assucar em casa. E da generalisação seguiu-se o infante D. Fernando (herdeiro da ilha por morte de D. Henrique) mandar cobrar em 1461 o terço nas alçapremas como no emgenho daugua. Os cultivadores resistiram, deixando de fabricar assucar. É o que se vê da carta do infante (a pag. 66fi e 667) de 21 de janeiro de 1462, em que elle transige e cede. Já, porém, o assucar da Madeira era batido na concorrência pelo das Canárias. Nova carta do infante (14 de julho de 1469, a pag. 668 e 669) propõe a instituição de um monopólio bindo todo o acuquar assy o meu como bosso a huna maão para ser vendido Os tratos da Guiné 25g fora do reino escravos da Guiné sem licença'. Portugal estava francamente transformado numa Carthago, e no seu tumulo o infante D. Henrique devia nadar em satisfação, se os cadáveres podessem sentir. Já nenhum poder seria capaz de desviar Portugal do seu destino épico. No declinar da vida, o infante gosou a velhice feliz. Foi com o sobrinho a Alcácer, conforme diremos já; viu a des- forra de Tanger, embora os vinte annos decorridos tives- sem mudado completamente a face das cousas, desligando de todo o que a principio parecia inseparável: a conquista de Marrocos e as descobertas africanas. Tinha-se andado muito, depois da installação da feitoria de Arguim e da in- stituição das primeiras companhias marítimas. Aventureiros vinham de fora offerecer ao infante os seus serviços, que não eram desdenhados. Nacionaes ou estranhos, serviam todos a D. Henrique para levar por diante a empreza da sua vida. Tinha já sessenta annos, sentia-se extinguir, quando em agosto (8) de 1464 veiu parar ao cabo de S. Vicente uma galé de Marco Zeno, de Veneza, trazendo a bordo Alvisi Gadamosto, ou Luiz da casa de Mosto, gentil-homem tam- bém veneziano. D. Henrique enviou-lhe o seu secretario a estes mercadores da cidade de lixboa que sam para ello bem abastan- tes e decididos a tomarem todo ho acuquar que se em essa ylha fejer. A resposta dos madeirenses (pag. 669 e 670) foi contraria aos dese- jos do infante, e a idéa não proseguiu. O assucar baixara, de cinco cruzados a arroba, ao máximo de 800 e minimo de 65o réis, que eram os preços de 1469. No fim do século (1489 ou 1490) o imposto achava-se reduzido ao quarto e organisada a fiscalisação da cultura e fabrico; e pelo mesmo tempo prohibia-se a refinação dos melaços que haviam de ser transfe- ridos para Lisboa. Em 1493, a Madeira produzia 80:000 arrobas de as- sucar, isto é, quarenta vezes a producção de 1455 (pag. 670 a 672). 1 Santarém, Mem. para a hist. das Cortes, 11, 2, 39. 2Óo Os filhos de D. João I António Gonçalves e o cônsul de Veneza, Patrício de Gonti, com amostras dos productos de Africa, convidando-o a par- tir para lá. Cadamosto indagou as condições. Eram que, sendo a caravella armada á custa do explorador, na volta pagaria ao infante o quarto de toda a carga*, e se o in- fante a armasse, metade seria sua. O veneziano acceitou, e D. Henrique mandou-lhe armar uma caravella de noventa toneis, dando-lhe por capitão a Vicente Dias. Largaram a 22 de março de 1455, e três dias depois chegavam a Porto Santo1. N'essa primeira navegação os genovezes foram até ao Senegal e a Gambia, descobrindo na segunda o archi- pelago de Gabo Verde. No Senegal já Lançarote tinha en- trado oito annos antes, com a expedição da sua segunda companhia, julgando que entrava nas aguas do Nilo dos ne- gros, o Niger, supposto braço destacado do verdadeiro Nilo que os geographos do tempo acreditavam ligar no seu re- gime a hydrographia de toda a Africa. Do Senegal .descera Lançarote pela costa até ao Cabo Verde, emquanto João Gonçalves Zarco desgarrado ia parar á Gorea2. Finalmente dez ou doze annos depois da viagem de Cadamosto, e nove depois da morte do infante, Pêro de Cintra e Soeiro da Gosta, partícipes do syndicato de Lançarote, e últimos con- tratadores do commercio e descoberta, antes de Fernão Go- mes, tinham levado o reconhecimento da costa até á serra Leoa. D'esse ponto começavam as quinhentas léguas do novo contrato. Foi, porém, o mesmo Soeiro da Costa que, depois ainda, galgando o cabo das Palmas, torneou o grande cotovello da Africa, indo dar o seu nome ao rio que fica junto ao cabo das Tres-pontas, e iniciar a descoberta da Mina, origem da riqueza e fidalguia nova de Fernão Go- mes3. 1 Naveg. de Cadamosto, na Coll. de not. da Academia, 11 ; Major, Vi- da do Inf. 304 a 3o6 da trad. port., põe também a partida em 1455; Góes, Chron. do Pr. D. João, vm, dá o anno de 1445. 2 Azurara, Conq. de Guiné, lvi, lviii, i.xxy. 3 Barros, Dec. 1, 2, 2. Os tratos da Guiné 261 Taes foram os momentos successivos da expansão portu- gueza em Africa, já como progresso geographico1, já como desenvolvimento parallelo de instituições novas, adequadas á forma também nova de exploração chrematistica. E em- quanto na Africa succedia isto, surgia do mar o archipelago dos Açores, depois de descoberto e povoado o da Madeira. Em 1435 mandara D. Henrique a Gonçalo Velho á desco- berta: essa viagem só desencantou as Formigas; mas no > Eis-aqui, não um indice de todas as viagens d'este período, mas um schema da marcha progressiva dos exploradores: I. Região deshabitada : 26°6' Cabo Bojador H-H) Gil Eannes. 24o 5o' Angra dos Ruivos 1435, Id. e Baldaya. 24°3o' Angra dos Cavallos !436, Baldaya. 23°45' Rio do Ouro 1436, Antão Gonsalves. 23° Porto do Gavalleiro '440, Id. e Nuno Tristão. II. Região dos mouros a^enegues: 2o°48' Cabo Branco .... \ _, , . , „ „ . „ T„ , . . I Bahia ) 1442, Nuno Tristão. Ilha de Arguim. . . , f r T • th j t-j ) de ) 1445, Lançarote, com a pnmei- Ilha de Tider. .... - í s , • , , , ^ . . „ Arçuim ) ra companhia de Laços. i0°24 Cabo do Resgate] ° ' r ° III. Região dos negroides, jolofos e ynandingas: i&io1 Foz do Senegal 1447» Lançarote, com a segun- da companhia. i4°48' Cabo Verde H-4> Diniz Dias. Archipelago de CaboVerde 1456, Cadamosto (2.a viagem). i3"3o' Foz do Gambia 1455, Id. (i.a viagem). i2°3o' Foz do Casamansa 1455, Id. u°5o' Foz do rio Grande '461, Pedro de Cintra. S°3o' Serra Leoa 146^ Id. e Soeiro da Costa. IV. Região dos negros: 4o S Cabo das Palmas ) Rio de Soeiro da Costa.. . > 1469, Soeiro da Costa. Cabo das Tres-pontas . . . . ) S. Jorge da Mina 1469, Fernão Gomes. 262 Os filhos de D. João I anno seguinte, voltando, o navegante achava Santa Maria1. De Santa Maria via-se outra ilha, cuja povoação o regente D. Pedro tomava a seu cargo, pondo-lhe o nome de S. Mi- guel «pela singular devoção que elle sempre houvera n'a- quelle santo2.» Pelo mesmo tempo, em 1446, o infante vol- tava a insistir no plano das Canárias que o regente lhe deu «outorgando-lhe o quinto de tudo o que de lá viesse3»; as circumstancias não permittiram, comtudo, que este segundo projecto fosse mais bem succedido que o anterior. As Ca- nárias também nos não vieram com a doação do regente. Pobre regente, porém, cujo governo (1439- 1446), coinci- dindo com o período em que a fundação das companhias de Lagos para o resgate de Arguim, trazia absorvido o in- fante D. Henrique, se achou abandonado por elle á fúria intrigante dos seus inimigos! Entre salvar outro irmão — elle que já sacrificara dois! — collaborando na empreza dura de 1 V. o Arch. dos Açores (riquíssima publicação em que o sr. E. do Canto collige tudo quanto respeita á primeira historia do archipelago) 1, 444, onde cita Gaspar Fructuoso, no seu inédito das Saudades da Terra. 2 Azurara, Conq. de Guiné, lxxxiii. — Em i5oj, S. Miguel andava arrendada por 5 :00o arrobas de assucar. — Arch. nac, Liv. das ilhas, 126 v. Carta de quit. transcr. no Arch. dos Açores, 1. 5i. — O mesmo periódico reproduz vários doce. relativos ao regimen da soberania e propriedade n'essas ilhas: Carta regia de 2 de julho de 1439 para a povoação dos Açores (1, 3). Id. de 5 de abril de 1448 isentando os co- lonos do dizimo e portagem (5). Id. de 20 de abril de 1447 estabele- cendo a mesma isenção para S. Miguel, doada ao infante D. Pedro (6). Id. de 10 de março de 1449 para o infante D. Henrique povoar as sete ilhas dos Açores (7). Id. de 20 de janeiro de 1453 doando o Corvo ao duque de Bragança (9). Doação de 2 setembro de 1460 pelo infante D. Henrique a seu filho adoptivo, o infante D. Fernando, das ilhas de Jesus Christo e Graciosa (11). Carta regia de 3 de dezembro de 1460, transferindo para o infante D. Fernando, duque de Vizeu, a doação dos archipelagos da Madeira e Açores, vaga por morte de D. Henrique. 3 Azurara, Conq. de Guiné, lxxxiv. Os tratos da Guiné 263 resgatar o reino das garras da fidalguia ávida, e evitando o desenlace trágico de mais tarde, com o punhal e o cutello, ás mãos do Príncipe Perfeito: entre esta empreza, e a de extrahir do mar um mundo, o infante D. Henrique não po- dia com effeito hesitar, dominado como trazia desde todo o sempre o espirito pela allucinação dos descobrimentos. Exactamente quando a sua abstenção condemnavel tinha levado as cousas, conforme veremos, ao ponto critico, des- trinçado pela morte na catastrophe de Alfarrobeira (1449), andavam Soeiro da Costa e o seu genro Lançarote, com a frota de vinte e seis caravellas, caçando negros em Arguim, resgatando oiro pelas praias da Guiné! E assim que o re- gente morreu; assim que o duque de Bragança se sentou no throno, reinando com o pseudonymo de Aífonso V; as- sim que o infante viu surgir uma era nova, depois da ve- lhice de D. João I, da timidez de D. Duarte e da prudência de D. Pedro: outra vez largou o seu voo de Sagres, como um condor, para vir reclamar a conquista de Marrocos. Ninguém se lhe oppunha agora: nem o rei, uma creança adoidada; nem a corte, matilha de lebreus açulada no re- gabofe. Pelo contrario: guerras, aventuras, saques, era o que lhes estava pedindo a gula accesa pelo banquete. Soou então pelo mundo, até estes remotos confins do Occidente, a noticia aterradora da queda de Constantinopla ás mãos de Mahomet II (i453); e os gritos da Itália em que o papa se via ameaçado, com todo o mundo christão, de morrer afogado na onda dos turcos, incitavam á Cruzada os ânimos ingenuamente piedosos ' . Era uma resurreiçao de tempos antigos. D. Henrique, tremendo por Ceuta que lhe custara a mais negra amargura da sua vida, apesar dos sessenta annos feitos, branco mas tão rijo no corpo como foi sempre na alma, queria ir para Africa defender o baluarte ameaçado do im- pério portuguez. Não lh'o consentiu o sobrinho 2; mas talvez, > Pina, Chron. de Affonso V, cxxxviu. 2 Azurara, Conq. de Guiné, v. 264 Os filhos de D. João I de certo, veiu d'aqui a decisão de terminar a empreza ence- tada com tamanha fortuna em 141 5, e tão lastimosamente proseguida em 1439. Aos nove annos depois de Tanger, cinco passados sobre a queda de Byzancio, D. Henrique levava o sobrinho a Al- cacerceguer (1458). Perante a assustadora catastrophe do Oriente, quando o turco, devorada a Grécia, ameaçava a Hungria, o papa convocara todos os principes christãos, e em 1457 mandou-nos por embaixador o bispo de Silves com a bulia da Cruzada. Accendeu-se o animo do rei que entrou na colligação, offerecendo ir com doze mil homens, e man- dando cunhar a nova moeda do cruzado1; mas a liga dos principes christãos não proseguiu, e os planos voltaram-se decididamente contra a Africa. A mocidade do rei, a sua valentia e ardimento, educado como fora na longa crise da regência, e a geração nova que o cercava e applaudia, fize- ram o milagre de improvisar a expedição e cair de repente sobre os mouros. No outono de 1468, a 3 de outubro, de manhãsinha, surgiu em frente de Sagres a armada em que o rei saíra de Lisboa três dias antes-, e D. Henrique, hirto sobre sessenta e cinco annos de um pensamento fixo, embarcou, tomando a direcção da empreza, e conquistando Alcácer2, prologo das conquistas successivas de Tanger e Arzilla ( 1 47 1 ) que deram o cognome ao Africano. Na véspera de morrer, o infante D. Henrique via realisa- rem-se ambas as faces do plano que lhe enchera a vida, Devia acabar feliz, e com a consciência tranquilla pelos males que causara. Extrahíra a ferros o continente africano do ventre do mar, e era certo que os passos andados seriam proseguidos: havia de chegar-se ás índias! Por outro lado, reparára-se o desastre de Tanger, e também era seguro que Marrocos seria em breve um Portugal d'alem-mar. Enganou-se, porém, n^esta idéa, que de certo lhe adoçou a morte. Nem a descoberta da índia e o império nos mares 1 Aragão, Descr. geral, etc, 1, 23o, onde cita Pina. 2 Pina, Chron. de D. Affónso V, cxxxvm. 16 de outubro. Os tratos da Guiné 265 do Oriente se prendiam com a posse da Africa de noroeste, como a nebulosa geographia do tempo imaginava, relacio- nando as duas emprezas; nem Portugal, podendo, como pôde, realisar a primeira com o génio audaz dos seus ca- pitães, tinha forças, nem recursos para levar a cabo a se- gunda. A lucidez das vistas do infante D. Pedro foi confir- mada pela historia, nossa e alheia. Uma cousa era avassallar os mares, plantando feitorias ao longo de costas habitadas por populações mais ou menos caducas, e isso foi o que um punhado de portuguezes fez no Oriente; outra cousa era estabelecer firme o império sobre uma região povoada por gentes espessas e vigorosas, accesas numa fé tão pro- selytica e viva como a nossa, e alem d'isso confiadas na victoria final do Islam que a tomada de Constantinopla e a expansão dos turcos em toda a Europa oriental pareciam assegurar. Para supprimir os mouros, substituindo-nos a elles, faltava-nos gente num reino pequeno e sempre mal povoado. Dominar ou exterminar essas populações, era im- possível. Ficávamos nas praças de Marrocos, como a bordo das nossas naus; porém as naus iam, vinham, livremente pelos mares, multiplicando a força, distribuindo o castigo; ao passo que as praças da Africa eram pontões immoveis, ancorados, constantemente batidos pelas vagas da mourama tempestuosa. A situação cruel em que primeiro Ceuta esteve sósinha, foi a que depois tiveram, alem de Ceuta, Alcácer, Tanger, Ar- zilla, Azamor, até que por fim a politica sabia de D. João III resolveu abandonal-as, seguindo os conselhos relembrados do infante D. Pedro. A experiência cruel ratificára-os. Dis- sera elle que nem o poder de todos os reis da Hespanha seria de mais para a conquista da Africa musulmana ; c via-se com eífeito que, se nós tínhamos de a abandonar, o poder reunido da Hespanha já unificada faria ainda menos do que nós, pois as duas investidas do cardeal Jimenes 1 1 5oq-io) contra Oran ficaram inúteis, e mallogrado o cerco de Carlos V a Argel (1341}. Só nos nossos tempos, depois de três séculos de progressivo decair do mundo musulmano, 266 Os filhos de D. João I a França com todo o seu poder conseguiu, á custa de rios de sangue e despezas incontáveis, firmar em Argel um im- pério, que, todavia, se debate ainda indecisamente com a força, embora já passiva, da densidade da população arabi- sada. Marrocos mantem-se, e se é certo que succederá ahi o mesmo que succedeu em Argel, não é menos verdade que para tanto se necessita de meios incomparavelmente superiores áquelles de que nós podíamos dispor nos séculos áureos da nossa historia. Bom foi, porém, que D. Henrique morresse (1460, em Sagres1) com a crença de que Marrocos ia ser nosso, com a consolação de ver tirada a desforra de Tanger. D'esse modo a sua existência fecha um cyclo, tem uma unidade e uma apotheose, e serve para mostrar como, por illusorias que as cousas sejam em si, nem sempre o é o esforço dos heroes. Consola, quando vemos alguém sair vencedor do combate da vida, ou pelo menos julgar que o sáe, porque assim temos a prova de que a felicidade não é uma expres- são inteiramente vã. Se é subjectiva, porque está exclusiva- mente em nós, subjectivo é também tudo, pois o mundo só consiste realmente n'aquillo que imaginamos conter. Aci- ma do grande nevoeiro de supposiçoes em que nos agitamos, paira apenas, como um sol, a verdade absoluta da rasão, e como nebulose, o instincto do bem que ora nos apparece feito justiça, ora transformado em belleza, ora docemente expresso como caridade e amor. Victimas de amor e caridade acabaram D. Fernando e D. Duarte; e vamos ver acabar D. Pedro victima da rasão, a ponto de a perder. D. Henrique morre victorioso, e victo- rioso veremos também finar-se o bastardo de Barcellos. As- sim variamente assistimos ao cair dos ramos da arvore de Aviz, tombando para a terra que tudo confunde, menos a memoria, alma alada inextinguível! A memoria de D. Henrique não é feita de humanidade, mas de génio. Teve o instincto creador e socialmente ge- 1 Pina, Chron. de D. Affonso V, cxliv. Os tratos da Guiné 267 ncsiaco, esse homem a quem os votos impediram a geração. Iniciando uma forma ignota de expansão territorial, repel- lido pela forma clássica da conquista, Alexandre de uma espécie nova, deu a Portugal, com as descobertas, a exten- são dos mais vastos impérios, abrindo-nos um logar emi- nente no épico pantheon da historia. Como tudo era mister crear para dar consistência e realidade social á sua inven- ção, transformou as instituições, indo ao arsenal do velho direito buscar as formulas em que podia introduzir um ou- tro espirito. Attribuindo ao papado uma soberania mystica sobre o mundo, foi pedir-lhe titulos de propriedade politica para os territórios descobertos, utilisando nas aventuras no- vas a bulia da Cruzada, escripta para as aventuras religio- sas e cavalheirescas de outros tempos. Sanccionadas por tal forma as acquisiçoes, com um direito parallelo ao direito clássico da conquista, fez da sua ordem de Christo, insti- tuída para a Cruzada, um instrumento de commercio, ap- plicando-lhe os redditos ao armamento de navios. Transfor- mou a Cruzada n'um negocio, tornando a ordem de Christo commanditaria das companhias de navegação. As velhas in- stituições militares e monásticas, as velhas idéas guerreiras e religiosas, viram-se transformadas na sua essência, sem se alterarem no seu aspecto1. O freire achou-se um piloto, o cavalleiro um mercador, e Portugal foi como a Carthago de outras idades. Ate, nas mãos dos inquisidores, o Deus de Ourique parece Moloch, ardendo em chammas consumido- ras de carne humana! Uma nação rural, guerreira e piedosa, 1 As doações recebidas dos papas, quanto ao espiritual das desco- bertas, transferia-as o infante á ordem de Christo. — V. a de 7 de junho de 1454 em que Affonso V lhe transfere a jurisdicção espiritual de Ga- zulla, Guiné, Núbia e Ethiopia; e o decreto de 26 de dezembro de 1458, datado pelo infante da sua villa, determinando que a ordem de Christo receba o tributo de vintena, em vez do dizimo, de todas as mercado- rias da Guiné, ou fossem escravos, oiro ou qualquer outra cousa, e o mais pertença a quem houver senhorio, como o infante então o havia por concessão real. V. também em 1460 (18 de setembro) a transferen- cia para a mesma ordem do espiritual da Madeira. — Sousa, Hist. Gen., 2 68 Os filhos de D. João I transformou-se n'uma grande companhia de commercio acce- sa em fanatismo cruel. Indubitavelmente o nivel moral baixou, porque o movei da ganância, embora poetisado pelo espirito de aventura e obscuramente arrebatado pela religião, dá menos nobreza aos homens do que os motivos guerreiros ou proselyticos, feitos de ingenuidade corajosa e de abnegação pura. Sem refolhos, o chronista confessa que «as cousas seguintes não foram tratadas com tanto trabalho e fortaleza, porque os feitos se tratavam mais por tratos e avenças de mercadoria, que por fortaleza nem trabalho d'armas». Mas desde que os povos modernos entravam com a Renascença no natu- ralismo novo, força era que o commercio, e em geral os motivos chrematisticos, se substituissem aos antigos moti- vos transcendentes. O que caracterisa, não só o nosso in- fante como homem, mas Portugal como povo, é a alliança hybrida e estreme, do máximo vigor da fé com o espirito mais tenaz do lucro. É isto o que dá aos portuguezes da nossa grande epocha um ar quasi púnico de apóstolos de uma religião tão sanguinária e devastadora como as velhas religiões phenicias, embora mystica e piedosa como a fa- ziam um Xavier ou um Anchietta. Foi isto o que não con- correu pouco para a ruina do nosso império oriental, desde que nos achámos em competência com povos unicamente inspirados pelos motivos chrematisticos. Esse caracter púnico, adquirido pelo movimento das des- cobertas, accentuou as invenções do génio do infante, in- Provas, i, 454. — É de 1485, depois da morte do infante, a sentença de Estevam Gomes, vigário geral, servindo de arcebispo de Lisboa, confir- mando as doações á ordem de Christo, conforme as bulias de Sixto IV, ratificação das de Nicolau Ve Calisto m, atrás citadas. — Ibid., 55. Pelo que respeita ao temporal, D. Henrique, em 1451, perfilhou o sobrinho D. Fernando, cumprindo assim a promessa feita á cunhada, deixando-o seu herdeiro (V. a carta, em Sousa, Ibid., 562), e, como na doação de 1460, o infante transferia também o temporal da Madeira para a coroa, D. Affonso V, em carta do mesmo anno, dôa esse senho- rio ao mesmo D. Fernando, filho adoptivo do infante. — Ibid., 562. Os tralos da Guuic 2Ò9 venções que a todos serviram, porém, ao depois, para a exploração das colónias, e sobre as quaes se pôde dizer que assentou a edificação da riqueza europea nos nossos tempos: as companhias de navegação e commercio; o tra- fico dos negros escravisados; o systema phenicio e grego das feitorias litoraes; e os estancos ou monopólios régios, forma de imposto ou co-participação dos estados metropo- litanos na exploração das regiões ultramarinas. Mas se to- dos estes typos chrematisticos, consciente ou inconsciente- mente, eram reproduzidos da historia, porque já em volta do Mediterrâneo e na Hespanha, em remotos séculos, hou- vera trafico de escravos, fazendas e minas trabalhadas por elles, companhias de navegação e commercio, e feitorias protegidas por fortalezas, embora taes formas primordiaes da exploração de terras novas se tivessem obliterado com a civilisação na Europa, não é menos verdade que em mais de um ponto, mas particularmente nas ilhas desertas do Atlântico, se propunha á imaginação creadora do infante um problema inteiramente novo. Esse problema era o da povoação. E a iniciativa que tivemos nesta forma de exploração, serviu também de typo a todos os povos que depois de nós entraram na lavra de colónias. Assim como repetiram o typo das nossas feitorias, e o das nossas fazendas de escravos, assim também proce- deram nas colónias de povoação, creadas, ou por pensa- mento politico, ou por exiguidade de território na metró- pole. Também n esta espécie o infante foi ao arsenal das insti- tuições tradicionaes, e, transplantando para as ilhas atlân- ticas o regimen quasi feudal das doações, repetindo o que na metrópole tinham feito para a povoar os reis da primeira dynastia, levou para lá sementes ou colónias de gente do reino. Procedeu como Roma fazia, transportando as leis e os penates, estendendo o seu foro próprio aonde quer que se installava; e do êxito d'esse processo dão um testemunho vivo, embora modesto, as nossas ilhas, precursoras das vas- tíssimas colónias saxonias da America e da Austrália. Os •i-o Os filhos de D. João I Açores e a Madeira eram pedaços de Portugal fundeados no Oceano, e não havia ahi as complicações inherentes á existência previa de populações indígenas: não houve por isso nenhum dos traços púnicos do avassallamento das re- giões mais ou menos habitadas. Assim, do cérebro poderoso do infante D. Henrique, duro para as affeiçÕes, desapiedado e esquivo, saiu todo o systema colonial moderno, de pé e armado, qual Minerva da cabeça de Júpiter. E se para Portugal o titulo de no- breza no concurso épico das nações são os seus dois séculos de expansão maritima, e são-no, é incontestável que o in- fante D. Henrique foi o nosso Hercules. Encarnou o génio latente de um povo inteiro, tornou-se o interprete do des- tino de uma nação filha da vontade civica, e á força de he- roísmo tenaz conseguiu vencer. Para vencer, porém, teve de despedaçar, não talvez o coração próprio, porque a sua natureza genial era rebelde ao sentimento, mas a felicidade, a paz e até a própria vida de três irmãos, que acabaram, mais ou menos por culpa d'elle, um desfeito em dor, outro immolado no captiveiro, outro varado por uma seta no tu- multo da guerra civil. O génio é descaroavel. Se no mundo a acção e a bondade podessem andar juntas, o mundo seria um paraizo. O REGENTE ra voltemos atrás, acercando-nos do termo da his- toria d'estas vidas, para contar como as cousas se passaram logo que D. Duarte morreu. Taes casos, monotonamente tristes, ensinar-nos-hão muito acerca dos motivos que em geral inspiram os homens, permittindo-nos ver até ao fundo o caracter pessoal dos infantes que restam. O rei tinha seis annos apenas quando o pae lhe morreu; e a mãe, sempre inimiga do cunhado D. Pedro, teimava agora em imaginar que era seu propósito substituir o so- brinho no throno1. A rivalidade antiga, originada no ca- samento com a filha do conde de Urgel, azedára-se nas di- vergências de opinião acerca de Tanger, exacerbando-a a popularidade do infante e as queixas contra ella, rainha, provenientes do próprio resultado da funesta expedição. Não parece que D. Leonor fosse mais do que uma d'estas « Pina, Chron. de Afonso V, n; Azurara, Conq. de Guiné, U. 272 Os filhos de D. João I mulheres pequeninas de alma, em quem o despeito impera, e o mau génio leva a fazer tolices. D. Henrique estava ausente em Sagres; D. João doente de febres em Alcácer do Sal, que lhe pertencia pelo mes- trado de Santiago; o conde de Barcellos pelo norte, em suas terras: só D. Pedro se achava ao lado da rainha, quando ella enviuvou. Aberto o testamento que a nomeava regente do reino, reuniu-se o conselho, e votou em sentido con- trario pela entrega do poder aos três infantes, D. Pedro, D. Henrique e D. João, «para a rainha se não ver forçada a deixar-lhes o governo movida por forças maiores». Esta decisão brutal maguou, como é de ver, a viuva; mas often- deu mais ainda o conde de Barcellos, que vinha correndo para o sul, a disputar um quinhão de influencia e poder. Com os seus sessenta annos, riquissimo, levara a vida ru- minando o despeito a que o impellia a posição subalterna de bastardo. Via agora, na velhice, chegado o momento de obter a desforra de uma existência tanto mais amarga, quanto era maior o seu effectivo poder. Em Ceuta, os irmãos tinham sido armados cavalleiros: e elle? Em Tavira tinham sido elevados a duques: e elle? Com D. Duarte, eram quasi reis: e elle? Terras, dinheiro, vassallos, nada lhe faltava, pois juntara aos haveres próprios a herança do condestavel, seu sogro; mas essa posição eminente na corte, primacial na nobreza, não lhe satisfazia o orgulho obscuro. Queria também ser principe, estar nos degraus do throno. E por isso vinha do norte, esbaforido, a jornadas forçadas; em- quanto do sul vinha também, com ambições de outra ordem, o infante D. Henrique. A morte do rei D. Duarte congre- gava os actores do drama que ia representar-se. D. Pedro, no vigor da vida1, na plenitude da sua intelli- gencia lúcida, com aquella serenidade de um animo superior ás cousas, porque as raciocina, aconselhava lealmente a rai- nha, sabendo bem que os seus conselhos não seriam segui- dos. Começa então o equivoco inherente á disparidade do 1 Quarenta e seis annos. O regente i-j'h espirito de ambos: cTelle que percebia os limites da capa- cidade da cunhada; delia, por não poder comprehender o alcance do pensamento de um homem que a irritava, ferin- do-lhe inevitavelmente o amor próprio com o simples facto da sua superioridade. Nos primeiros momentos de confu- são, a rainha, dolorida com a sua viuvez, entregou-se aos dois cunhados, D. Pedro e D. Henrique, pedindo-lhes que estudassem o que se devia fazer já, deixando a solução do resto ás cortes convocadas para Torres Novas. Acclamar D. Affonso V era urgente; e D. Pedro fel-o, não sem re- commendar a mestre Guedelha, o physico e astrólogo da corte, que regulasse a ceremonia segundo as influencias e cursos dos planetas, fixando a melhor hora, para não suc- ceder outra vez o que suecedêra em 1433 e tanto impres- sionara o povo. D. Pedro entendia que este preito á crença popular era necessário, e dava-o por lealdade, embora um tanto factícia, pois, de si para si, não acreditava na in- fluencia dos astros. Este pequenino caso revela outra vez o equivoco a que a sua própria superioridade o condemnava, e que tão funesto lhe seria. Como philosopho, propunha-se guiar o barco do estado lealmente: não segundo as inclina- ções espontâneas do seu génio, pessimistas e por isso in- adequadas, mas sim conforme os preceitos objectivamente dictados pelo pensamento. Não ha palavra para definir com exactidão este estado psychologico em que a lealdade, com- pleta nas intenções, não o é nos juizos; em que não ha hy- pocrisia, por não existir fim oceulto diverso do que se prose- gue; mas em que também não ha franqueza absoluta, porque o homem intimo se mantém fechado e impenetrável. O phi- losopho via-se agora ao mesmo tempo politico, por um acto da vontade reflectida, não por um movimento espontâneo do temperamento. Esta dualidade, em que se lhe desdo- brava o espirito, havia de por força trazer-lhe resultados funestos, pois o commum da gente, com a simplicidade in- teira da intelligencia vulgar, não percebe taes caprichos da natureza, e o interesse explora com vantagem todas as con- tradicções e enygmas. Foi o que o conde de Barcellos e seu 18 274 Os filhos de D. João I filho, o de Ourem, fizeram depois, levando facilmente o rei a considerar traidor seu tio e sogro, que precipitaram no abysmo da loucura. Não precipitemos nós, porém, os acontecimentos. A rainha, preoccupada com a idéa de que D. Pedro que- ria usurpar o throno ao pequenino rei Affonso, tirar-lh'o, matal-o talvez, para lhe succeder, ficou pasmada quando D. Pedro lhe f aliou em declarar e jurar herdeiro presum- ptivo da coroa o infante D. Fernando, irmão mais novo do rei, uma creança de cinco annos; e tão pasmada, que num destes movimentos excessivos de volubilidade feminina, de mais a mais frequentes na gravidez (a rainha enviuvara n'esse estado1), logo ali tratou o casamento de Affonso V com a filha, também creança ainda, do infante D. Pedro. Jurou-se pois herdeiro presumptivo o infante D. Fernando, exactamente aquelle que D. Henrique perfilhara, cumprindo a promessa feita antes de Tanger; ficando também tratado o casamento do rei com D. Izabel2. Mas n'isto chegou á corte, esbaforido, o conde de Bar- cellos. Contando com a inimisade da rainha e de D. Pedro, architectára sobre essa hypothese os planos da sua ambição, propondo-se casar o rei com a neta, Izabel também, filha do infante D. João, para se introduzir d'esse modo na al- i Em nove annos de casada, a rainha dera oito filhos ao rei, mas três não vingaram: D. João, o primogénito (1429), que morreu de tenra idade; D. Maria (1432), fallecida á nascença; e D. Duarte (i435), que morreu pequeno. Os orphãos de D. Duarte eram, portanto, cinco: D. Fi- lippa (1430), fallecida de nove annos no immediato á morte do rei; D. AffonsoV (1432-1481); D. Fernando, perfilhado pelo tio e que her- dou d'elle o titulo de duque de Vizeu (1433-1470); D. Leonor, que casou com o imperador da Allemanha (1434-1467); e D. Catharina (1436-1463) — cinco creanças de nove annos a dois. A rainha estava gravida de D. Joanna (1489— 1475), filha posthuma, que depois foi rai- nha de Castella. Alem dos filhos legítimos, D. Duarte deixou um filho natural de D. Joanna Manuel, o bispo da Guarda D. João Manuel, que veiu a fal- lecer em 1476. 2 Pina, Chron. de Affonso V, 11 a vi. O regente 27o cova do paço, e d'ahi reinar. A maneira que as monarchias se enraizavam com o absolutismo do direito romano, as questões familiares dos dynastas tomavam um valor poli- tico eminente. Astuto e dissimulado, porém, como homem que ruminara o seu despeito durante sessenta longos annos, o conde de Barcellos não fez escândalos. Pelo contrario, celebrou a excellente paz que encontrava na corte; e foi logo d'ali ver-se com o arcebispo de Lisboa, D. Pedro, fi- gadal inimigo, do seu homonyrno, e a quem a rainha dava grande fé. Desabafou com elle1. Talvez do arcebispo viesse o plano da liga contra D. Pedro, porque ainda lhe queria mais mal do que o conde. Fosse de quem fosse a idéa. certo é que para servir os intentos do conde de Barcellos, e também os seus próprios, os fidalgos do reino, quasi to- dos, se ligaram sob a presidência de Vasco Fernandes Cou- tinho, que depois foi conde de Marialva; e na véspera do dia das cortes, reunidos numa igreja em Torres Novas, juraram alliança contra D. Pedro — o que todavia não im- pediu muitos delles de se bandearem com o regente, quando as cousas lhe deram vencimento. Juraram os da liga um pa- cto ou compromisso escripto, cuja perda é muito para sen- tir, pois a franqueza, ou cynismo, com que estava feito seria eminentemente instruetiva para a historia. Não queriam <> governo de D. Pedro, porque, sendo como era justo e amigo do povo, inclinaria contra elles. A nobreza, com etfeito, decaída da sua antiga eminência, agora que as condições do tempo subalternisavam a funeção da defeza nacional e com ella o caracter militar da sociedade, conspirava para rehaver ilegitimamente uma influencia que de direito pos- suíra. A monarchia, representada no infante D. Pedro, apoiava-se no interesse publico, e no povo como classe. A sociedade apparecia outra. Na Idade média existira si- milhante a essas formas rudimentares da animalidade, os annellides, justaposição, amalgama ou federação, de entida- des autónomas-, agora na Renascença, levanta-se como uma ' Pina, Chron. de Affonso Y, viu. 276 Osjilhos de D. João I cúpula ideal, em que todos os segmentos têem um logar in- dispensável, em que a unidade e harmonia da composição são absolutas, em que o rei é a chave da abobada politica. Na mente dos príncipes apparece já o Estado como uma obra de arte, uma creação do espirito, animada pela idéa da utilidade social. Bem vimos como esta idéa, esboçada no pensamento ini- ciador de D. João I, se formulava nitidamente no espirito de D. Pedro. O drama que agora começa, primeiro episo- dio da revolução politica da Renascença em Portugal, mos- tra-nos como o bastardo de Barcellos, encarregando a outro o papel do duque de Guise, pela posição equivoca em que o nascimento o collocava, foi todavia o chefe da nobreza rebelde; mostrando-nos também como o povo tinha o sen- timento claro do caracter do movimento revolucionário. Não queriam os conjurados o governo de D. Pedro, e declaravam francamente quererem o da rainha, porque, sendo estrangeira e mulher, lhes deixaria a elles o usufructo do reino. Certos do apoio do conde de Barcellos, diziam ter o do infante D. Henrique; mas não é provável, pois o infante, bem o sabemos, dava importância menor ás ques- tões da politica do reino, embora, ao expirar, a mãe lhe ti- vesse commettido a defeza da fidalguia. A sua attitude quasi indiíferente era, porém, favorável para o êxito. Tudo isto podia ser grave; mas o peior foi que a rainha, saben- do-o (o próprio Barcellos seria o primeiro a dizer-lh'o dire- ctamente, ou por via do arcebispo), teve um ataque de ambição e tomou a serio o seu papel de chefe de partido1. A prova de que D. Henrique não pactuava com os con- jurados é que, desesperado pelo tempo que perdia n'estas intrigas, procurava todos os termos de conciliação; e com a sua muita influencia no animo da rainha levára-a a mudar de rumo, consentindo em entregar a D. Pedro o regimento da justiça com o titulo de «Defensor do reino por el-rei», ficando ella com o da fazenda e com a creacão dos filhos. 1 Pina, Chron. de Affonso V, viu a x. O regente 277 E o que nos mostra que a intervenção de D. Henrique não era o resultado de uma cumplicidade com os conjurados, é o desespero do conde de Barcellos perante esta solução que, alem de tudo o mais, mantinha os ajustes do casamento do rei; e também a intervenção directa dos próprios conjura- dos que foram ter com a rainha e a convenceram de que não devia largar uma parcella sequer do governo1. A pobre senhora não tinha de certo o juizo forte. N'este estado se abriram as cortes. Não admira, pois, o resultado infeliz que deram. Perante uma creança de seis annos — tanto podem os symbolos, tanto a realidade é uma supposição! — encanecidos guerreiros, pesados bispos e graves procuradores dos povos, desenrolaram monotona- mente os seus discursos convencionaes, formulando o que estava na natureza das cousas, sem chegarem a nenhum re- sultado pratico. Estes queriam que, tanto a rainha como D. Pedro, fossem excluídos da regência; aquelles que reges- sem conjunctamente; uns pediam que dividissem entre si os ramos do governo; outros votavam pela regência exclusiva da rainha, e já sabemos quem eram; ao passo que os pro- curadores dos povos, também naturalmente, declaravam querer a regência exclusiva de D. Pedro. Como não havia pensamento nem força dominante que se impozesse, suecedia o que sempre suecede quando se discute. Nada se resolve. Sabemol-o hoje de mais por uma experiência tão aturada de parlamentos, que é ocioso insis- tir sobre o caso. Então D. Henrique (também nisto pre- cursor) ancioso de voltar a Sagres, a tratar de cousas úteis, fez intervir o accordo, substituto inevitável da deliberação. As bases desse accordo em que o infante parecia, com effeito, procurador dos conjurados, eram que a rainha teria, com a tutoria dos filhos, a administração das rendas e offi- cios — ahi estava o busilis! — que a administração da jus- tiça seria dada ao conde de Arrayolos, filho do de Barcel- los ; que D. Pedro ficaria defensor do reino (sem meios, 1 Pina, Chron. de Affonso V, xu, xm. 278 Os filhos de D. João I todavia, para o defender); que o conselho funccionaria em permanência, e todos os annos se reuniriam cortes. Evi- dentemente este accordo, como é frequente, não concor- dava nada; e só se explica pela pouca importância dada á politica e pela anciã de voltar a Sagres em que o infante ardia. — Farei o que meu irmão quizer — foi a resposta de D. Pedro, quando lhe communicaram o accordo. Não podia ser outra. Era o que estava na lógica do seu caracter. Se não fosse um critico em quem o pensamento se desdobrava, analysando as próprias acções; se não ti- vesse essa duplicidade intellectual que, quando se transporta para a imaginação produz o humorismo, e quando para o caracter a hypocrisia; se fosse um homem simples e volun- tarioso de intelligencia, D. Pedro teria respondido: E um erro que me annulla, sem proveito de ninguém. Mas a phi- losophia e a critica têem a virtude e o inconveniente de embotarem o impulso da vontade espontânea. E nos ho- mens de bem, como era D. Pedro, a serenidade intellectual, filha do desdobramento da personalidade, dá logar a que, por abnegação reflectida, se acceitem muitas soluções reco- nhecidas como absurdas e até pessoalmente funestas. Com um impeto de vontade inteira, D. Pedro, se fosse um am- bicioso, provocaria talvez a guerra civil. Se se tratasse d'el- le, e o seu desejo não estivesse posto neutro objecto, era o que succederia com D. Henrique, homem de acção he- róica e não de pensamento agudo. Obtida a annuencia de D. Pedro, lavrou-se um termo de accordo, assignado perante notários, e para maior solem- nidade sobre um altar. Mas os juramentos e firmas eram acompanhados de taes reservas e palavras cautelosas, que bem mostravam a intenção de as quebrar sem perigo, sendo necessário. Era geral a superstição fetichista nas firmas e juramentos; sendo commum também a falsidade, ordinária no género humano. Queriam poder mentir sem perjurar. O arcebispo de Lisboa, honra lhe seja, foi o único a re- cusar terminantemente a sua assignatura. Nomear defensor O regente 279 do reino a D. Pedro, nunca'! Fecharam-se as cortes, e D. Henrique voltou a correr para Sagres. Que suecederia? 0 conde de Barcellos, esfregando as suas mãos já tre- mulas, num contentamento quasi infantil de velho, imagi- nava ganha a victoria, e sorria com desdém marcial da simplicidade do defensor do reino e das phantasias do seu irmão Henrique. Ambos os filhos da ingleza, cada qual pelo seu modo, lhe deviam parecer creaturas singularmente excêntricas. Os instinctos populares do sangue e os hábitos de rapina fidalga, compondo todo o seu caracter, mostra- vam-lhe chãmente a vida como a satisfação immediata da vontade de governar no próximo, e de acrescentar terras, terras sem fim. Depois de tantos annos a roer impaciente o freio da sua ambição, batia a hora, chegava-lhe também a vez de mandar, levando pelo beiço a aragoneza, boa pes- soa, esposa fiel e fecunda d'essa outra creatura singular que fora D. Duarte, sempre a escrever, o desgraçado! Esmoendo na cabeça os seus planos, viu chegado o mo- mento de dar o segundo golpe. O das cortes fora o pri- meiro: agora o casamento! Era necessário que esse pequeno rei tivesse ao lado a neta d'elle para o guiar, fallando con- forme o avô lhe mandasse. Queria-se um rei á moda antiga, cavalleiro, e não da espécie nova trazida a Portugal com a ingleza que, dando volta ao juizo do pae, creára uns filhos cujas idéas extravagantes ameaçavam acabar com tudo. Ca- sar Atfonso V com a filha de D. Pedro, fazel-o genro d'esse visionário, embriagado com as suas invenções singulares de justiça e bem dos povos — nunca! A justiça era a espada; o bem dos povos a sujeição fiel á vara dos meirinhos. As pre- tensões dos villaos punham-no fora de si; mas agora, ale- gre com a victoria, ria benevolamente. Foi fallar á rainha, e disse-lhe quanto era indispensável romper o ajuste do ca- 1 Pina, Chron. de Affonso V, xiv, xv. 280 Os Ji lhos de D. João I samento do filho, reclamando de D. Pedro a restituição do alvará de promessa. Havia ainda um respeito fetichista pela palavra escripta. D. Leonor não quiz; teve medo. A serenidade de D. Pe- dro amesquinhava-a; sentia-se pequena diante d'elle. Não quiz, mas respondeu ao Barcellos: — Pedi-lh'o vós. E o conde de Barcellos, cheio de sufficiencia, marchou para D. Pedro, e repetiu-lhe o arrazoado e o pedido. Está- se vendo o gesto do defensor do reino, e a onda negra de amargura que inundou o seu animo pessimista. Com um desdém de principe, com uma nobreza de philosopho, com um sorriso amargo de critico, D. Pedro respondeu-lhe que poderia recusar, mas não o faria. E abrindo um cofre, tirou o alvará, rasgou-o, e em pedaços entregou-o ao irmão1. Certamente não era um politico. O politico despreza o próximo, amesquinhando-se, porém, a si, conscientemente, até ao ponto de perder a noção clara da dignidade. O amor próprio philosophico é uma tolice na vida pratica. D. Pedro, com todo o seu saber das cousas e dos homens, não estava feito para a situação que reclamava um ambicioso. O conde de Barcellos, sendo-o, não tinha também a capacidade ne- cessária para um papel que a sua imaginação confusa só vagamente desenhava. Não lhe chegara o momento de querer o sceptro! Como semente, obscura ainda no seu cérebro, essa idéa foi germinando em successivas gerações . . . Met- tendo no bolso os pedaços do alvará rasgado, partiu sem caber em si, pasmando da sua fortuna, e mais ainda da simplez do irmão. E para isto andara por tão longes terras! E para isto se dessorava a ler os livros ! Incontestavelmente as leituras transtornavam o juizo . . . Mas, com grande surpreza sua, veiu-lhe o mal de onde menos o esperava. A corte fora para Lisboa, e logo depois da ida, chegou o infante D. João, meio curado das febres que por mezes o tinham tido enfermo em Alcácer do Sal. 1 Pina, Chron. de Affonso V, xvi. O regente 281 Perdido como estava D. Fernando cm Fez (embora só viesse a acabar em 1443), D. João era o mais moço dos infantes : contava agora trinta e nove annos, pois nascera com o sé- culo. O conde de Barcellos, muito senhor de si, como velho que podia ser pae, e como seu sogro que era, nem sonhava obstáculos por esse lado. Mas D. João, tendo por D. Pedro um respeito filial e uma confiança absoluta na sua discri- ção, abertamente, na presença da própria rainha e da corte, declarou que o accordo de Torres Novas fora um erro, e que D. Pedro devia governar sósinho, pois as cousas iam de mal a peior e não havia outra solução. Efectivamente faltava governo. D. Leonor, nos últimos períodos da gravi- dez, nem despachar podia. Eram geraes os clamores, e em Lisboa o povo, que já dizia claramente ser necessário tirar o governo á rainha e dal-o"a D. Pedro, alvoroçou-se todo quando soube as opiniões de D. João1. Era no estio de 1439, em agosto; ia fazer um anno da morte de D. Duarte; nascera a infanta D. Joanna, que mais tarde veiu a ser a foliona esposa do rei Henrique IV de Castella, mãe da excellente senhora, essa victima innocente das travessuras maternas que deram o throno a Izabel-a-Ca- tholica, e á beltraneja, depois de mallogrado o seu casamento com Affonso V, e depois do fiasco de Toro, o destino me- lancholico da clausura fria. Mas nem por ter acabado a gra- videz da rainha, melhorara o estado geral. Instava-se com D. Pedro para que interviesse energicamente. Porém elle, com uma repugnância natural a passar por ambicioso, di- minuindo-se a seus próprios olhos; elle, que desdenhava do poder pelos gozos que a outros seduziam, estava tentado a abandonar o cargo de defensor do reino, e ir-se para suas terras em socego. Álvaro Vaz, o capitão do mar, nosso co- nhecido, que pelo humorismo chegava á philosophia, concor- dava. Ou se demittisse, ou tomasse o caso a peito, chamando a si o governo. Assim, com taes escrúpulos, compromet- tia-se, sem utilidade para ninguém. • Pina, Chron. de Affonso V, xvn, xix. 282 Os Ji lhos de D. João I N'estes apuros, resolveram consultar o infante D. João. D. Henrique, sempre em Sagres, conservava-se estranho ao que se passava. Quando D. Pedro communicou ao irmão a idéa em que estava de se demittir, este, inrlammado, pro- testou. — Pois eu, respondeu vivamente, eu, se não fosse o ter dois irmãos, como vós e D. Henrique, reclamava a regência, e se m'a não dessem, morreria sobre isso! Não tratamos das virtudes pessoaes da rainha, que são muitas; mas sermos regidos por uma mulher e por uma estrangeira, nunca vi "maior vergonha e abatimento! O generoso sangue de Aviz pulava-lhe nas veias. E deve notar-se que excluía do throno a filha, para quem o avô obtivera a mão de Affonso V. Como podia o conde de Bar- cellos suppor no genro tão inconcebível desprendimento! D. Pedro temia uma revolução, previa uma guerra civil, e assustava-o a sua sabedoria de philosopho, costumado a ver a inanidade de tudo que não fosse o bem estar do pobre povo. — A guerra é certa, respondia D. João com verdade, por- que a gente que aconselha a rainha não procede por amor do reino, mas somente por se segurarem, escapando ao castigo do crime de encurtarem o património real. A lei mental de D. Duarte era o terror de todos os de- tentores de bens da coroa, pilhados durante o tumulto das guerras de Castella. Depois, havia ainda o perigo dos infan- tes de Aragão, irmãos de D. Leonor, que se sentavam com a outra irmã no throno de Castella: homens inquietos e aman- tes de novidade, interviriam sem duvida nas questões por- tuguezas. Tivesse, portanto, decisão e coragem, chamando a si o governo. Era esse o único meio de evitar a guerra. E se de todo em todo não quizesse, appellasse-se para o infante D. Henrique. Não houvesse temor, ainda quando as cousas fossem a mal. Ourem, Arrayolos, os rapazes, seus cunhados, por esses ficava D. João. O pae havia de estar com os filhos. Veria que todos appareceriam concordes nas cortes próximas. Houvesse firmeza. O regente 283 D. Pedro, pensando que talvez o irmão acertasse, con- cordou em esperar para as cortes, desistindo da idéa de se demittir. Talvez até a própria rainha viesse a propor algum alvitre aceitável1! Muitas vezes as questões mais árduas e mais apparentemente insolúveis caem assim inesperada- mente. Ora a rainha estava em Sacavém enleiada uuma espessa teia de intrigas-, e como, ao saber-se a decisão de D. Pedro, Lisboa exultara em gáudio, ella, por desforra, expulsou da corte as damas sympathicas ao infante2. Com este novo des- tempero rompia as hostilidades; e sobre a queda commet- teu um erro, que determinou a explosão. Foi dar a um seu aio, Nuno Martins da Silveira, a concessão dos varejos a que os mercadores de Lisboa eram obrigados todos os sete annos. O povo em tumulto correu á casa da camará, inva- dindo-a, na sessão em que os dois procuradores do conces- sionário, Bartholomeu Gomes, contador, e Álvaro Atfonso, escrivão da siza dos pannos, apresentavam a carta regia. Deixaram-na ler, e, ao ouvirem a assignatura da rainha, sem a do infante co-regente, deitaram Álvaro Alíonso pela janella fora. O desgraçado salvou a vida por ter caído sobre um telhado; e Bartholomeu Gomes deveu-a á força do seu pulso3. N*uma vozeria atroadora, acclamavam o infante D. Pedro, vociferavam contra a rainha. Estava iniciada a revolução. Debalde o conde de Arrayolos, a quem o ac- cordo de Torres Novas dava o cargo da justiça, veiu a Lis- boa para a pacificar. O tumulto era cada vez maior, e os parciaes da rainha exacerbavam-no, acreditando que o Ar- rayolos vinha a vingal-os. Já diziam que cedo se veriam as gigas da Ribeira cheias de mãos e pés, á maneira de pes- cado. Promettiam mortandades, meio infallivel de precipi- tar os contrários no desespero da defeza. Já se fugia de Lisboa; já nem os padres nas igrejas eram respeitados ' Pina, Chron. de Affonso V, xxi, xxn. - Ibid., XXIII. 3 Ibid., xxiv. 284 Os filhos de D. João I quando queriam defender o governo, como succedeu em S. Domingos a Fr. Vasco de Alagoa, corrido do púlpito pela populaça. O conde da Arrayolos teve de retirar para não ser desfeiteado1. Lisboa estava em plena rebeldia. D. Pedro veiu de Camarate á capital, e socegou o povo; mas a camará disse-lhe terminantemente que todo o mal estava na regência ser de muitos : ou governasse elle só, ou só a rainha. E esta, apesar dos conselhos accordes de D. Pedro e do conde de Arrayolos, instou com os fidalgos para que trouxessem gente e armas ás cortes próximas2. A pobre senhora pensava em fazer das cortes uma bata- lha. Para D. Pedro, as cousas precipitavam-se por modo que forçosamente tinha de abandonar as suas inclinações con- templativas de sábio. Chegava o momento agudo em que o philosopho se via forçado a ser um homem de acção. E sen- tia ao seu lado a falta do infante D. João, cuja inteireza sim- ples e rectilínea lhe aquecia o animo indifferente. O infante caíra outra vez com febres, em Alcochete. D. Pedro foi lá vel-o. Á cabeceira do enfermo estava o primo e cunhado, conde de Ourem, que assistiu á entrevista. O conselho de D. João foi o mesmo: que D. Pedro se nomeasse regente do reino. Viessem os conjurados, viessem os infantes de Aragão de- fender sua irmã, viesse quem viesse. . . Elle, Ourem — o primo annuia com a cabeça — todos, e Lisboa que Ih 'o pedia, saberiam defendel-o. — Esperemos as cortes, voltava D. Pedro com a sua pru- dência, inimiga da politica, sempre feita de audácia. Não precipitemos as cousas. As cortes decidirão. Mas D. João objectava que se podia perder o momento propicio da disposição dos ânimos em Lisboa. — Será como Deus quizer, concluiu D. Pedro. Eu nada farei sem cortes ; mas, pois a rainha escreve aos fidalgos seus parciaes que venham com tropas, eu, como defensor 1 Pina, Chron. de Affonso V, xxv. 2 Ibid., xxvii. O regente 285 do reino, farei saber ás villas que estejam prestes para qual- quer movimento e novidade1. Tudo isto levou menos de um mez. Setembro ia em prin- cipio, quando D. Pedro, antes de partir para Coimbra, sua casa, a retemperar-se na soledade para a crise que se appro- ximava, entendeu dever ir antes a Sacavém despedir-se da rainha e do rei seu sobrinho. Entrou no paço, mais como juiz do que como vassallo. O reisinho, de sete annos, veiu para elle a rir, e elle beijou-lhe a mão. Depois, voltando-se severamente para a cunhada, disse-lhe: — Fiz quanto pude, a bem: só recebi ódio e má vontade. Até aqui tivestes-me como querieis: de agora em diante, to- mar-me-heis como me achares2. E partiu sem esperar resposta, satisfeitíssimo comsigo mesmo, por essa occasião de fallar com sinceridade com- pleta. Julgava ter mettido uma lança em Africa, e praticara apenas mais um erro palmar; porque, se queria a submis- são amiga da rainha, perdia-a para sempre, ferindo-a mor- talmente no seu amor próprio; e se estava decidido á guerra, as palavras ditas eram um pleonasmo. De astúcia e audácia ha de compor-se o homem destinado a mandar no próximo. Com os seus ardis de velha raposa, o conde de Barcellos, melhor politico, dissipadas as primeiras illusoes, vendo tur- vos os ares, e os filhos de mãos dadas ao genro, que — pa- recia incrivel! — deitava pela janella fora o throno patente: o conde de Barcellos abstinha-se, sumia-se, deixando o tem- po deslindar as meadas, receiando algum passo dado em falso que o compremettesse gravemente. Por seu turno, D. Pedro, de volta a Camarate, antes de partir para Coimbra, pela primeira vez exercia o cargo de defensor dos povos. Com igual titulo, o pae salvara a inde- pendência do paiz, fazendo-se rei, porque achou o throno vago; e de certo a lembrança da revolução de 1 383 acudia agora á memoria do filho de D. João I. Também era Lis- i Chron. de Affonso V, xxvm. 2 Ibid., xxx. 286 Os filhos de D. João I boa que o impellia, não a usurpar a coroa, porque a philo- sophia vaccinava-o cTessas ambições vãs, mas sim a salvar a ordem ameaçada pela turbulência ávida da fidalguia e pela insensatez da rainha. O cargo de defensor do povo, em que se via investido, era para elle, que conhecia a historia ro- mana, como a antiga magistratura dos tribunos*, e a sua perspicácia dizia-lhe que as funcçoes d'esse cargo iam ser o attributo soberano dos príncipes, e os reis os verdadeiros defensores do povo contra a prepotência da nobreza. Tudo isto lhe ia pela cabeça, emquanto com mão firme escrevia a carta ás villas do reino, recommendando-lhes que estivessem precavidas para quando vissem seu recado1. Ex- pedidos os mensageiros, de modo que as cartas fossem todas entregues no mesmo dia, partiu. Em Lisboa, um povo es- pesso corria ás portas da Sé a ler a carta do defensor que corria de boca em boca e era decorada soffregamente. De noite, com candeias, vinham lel-a, porque o dia não che- gava. N'um alvoroço immenso, íruma sympathia e confiança estremes, os populares acclamavam o infante seu defensor, cobrindo de vitupérios a rainha que pretendia appellar para a intervenção estrangeira, e esperava o auxilio dos infantes do Aragão para os esmagar. Surriadas de palmas, gritos de alegria, clamores de vivas, acolhiam cada phrase da carta de D. Pedro ao povo, que se sentia seguro com a protecção de um príncipe. Todas as camarás do reino responderam que ficavam pre- cavidas, e o Porto acrescentou querer que o infante, só, sem outra ajuda ou companhia, «fosse regedor» 2. Tremen- do de susto, a rainha fugiu de Sacavém para Alemquer. Declaradamente em revolta, Lisboa, na ausência do defen- sor do reino que em Coimbra esperava a reunião das cortes, entregou-se nas mãos do nosso conhecido Álvaro Vaz de Almada, o fiel Achates de D. Pedro, elegendo-o seu alferes, general ou chefe. Já se contava que o pleito se não liqui- i Chron. de Affonso V, xxxix. 2 Ibid. O regente 287 daria ás boas. O alferes, ao receber solemnemente a ban- deira da cidade, jurou o termo de condições que os popu- lares impunham ao mandato. Em S. Domingos, velho foram da Lisboa medieval, reuniu-se a assembléa dos mecânicos, representação dos officios, decidindo que somente D. Pedro fosse regedor e defensor: assim promettiam requerel-o em cortes, «morrendo por ello se necessário fosse». Por seu lado o arcebispo D. Pedro, façanhudo contrario do infante, e única pessoa que recusara jurar e assignar o accordo de Torres Novas, homem bulhento e crivado de dividas a quem o governo prudente e honesto do infante não podia tirar de embaraços, amontoava armas na alcáçova da Sé, onde se fortificava ameaçando a cidade. A camará intimou- lhe a demolição da fortaleza; e ondas de povo encolerisado assignavam essa ordem de um modo tão ameaçador, que o arcebispo entrouxou as vestes, o báculo e a espada, e emigrou para Castella. Lembrava-se do que succedêra ao seu predecessor, no dia da execução do conde Andeiro. Estava muito viva essa data para arriscar temeridades. Logo que chegou a Castella, porém, mandou de lá um cartel de ameaças promettendo a Lisboa uma invasão: promessa em paga da qual a cidade sequestrou as rendas do arcebispado de Lisboa, applicando metade para dotação do arcebispo effectivo, e a outra metade para pagamento das dividas que o fugido deixara1. Vê-se aqui o humorismo de Álvaro Vaz, e também a sua habilidade politica: tiravam-se ao arcebispo as rendas e os parciaes, desde que se pagava aos credores. Restabelecido, o infante D. João veiu de Alcochete para Lisboa pôr-se á frente da cidade2. Ao manifesto de D. Pedro respondeu a rainha com outra carta, pedindo aos povos que nas cortes próximas manti- vessem o estabelecido em Torres Novas; mas estas cartas por toda a parte eram rasgadas; e em Lisboa o escrivão ' V. o alvará de 8 de dezembro de 1439, nos Amiaes do município de Lisboa, do sr. Freire de Oliveira, 1, 3ai. 2 Pina, Chron. de Affonso V, xxxi a xxxiv e xl. 288 Os Ji lhos de D. João I da chancellaria,, quando as foi collocar nas portas da Sé, a custo escapou com vida1. Por outro lado a rainha tentava seduzir o infante D. João. Chamando-o a Alemquer, D. Leo- nor implorava-lhe que abandonasse o irmão, offerecia-lhe a própria regência, o throno para a filha, dava tudo, no seu desespero de mulher oífendida. Mas não obteve melhor re- sultado. D. João firmemente respondeu: — Nunca Deus queira, nem quererá que entre os filhos d'el-rei D. João I, que nas mocidades em tanto amor e con- córdia se crearam, seja agora semeada tal sizania. Haveria temor de Deus e vergonha do mundo, não digo em acceitar, mas somente em lembrar-me de acceitar o regimento do reino, tendo dois irmãos mais velhos e taes para isso, como são D. Pedro e D. Henrique. E emquanto ao casamento d'el-rei com minha filha, não sendo o caso como é, certo seria a maior honra e o maior acrescentamento que eu poderia desejar. Com melhor vontade e menos sentimento meu soífreria vêl-a no mundo em uma publica dissolução, do que casal-a por tal maneira contra a honra e vontade de meu irmão. Iria contra elle, e contra a vontade de D. Duarte que Deus tem2. A resposta do infante, por cuja boca fallava a honra in- génua e forte, deixou interdicta a rainha. Surprehendia-a encontrar de tal modo firme o respeito pelos mais velhos, de tal modo vivo o sentimento do amor fraterno, elevado ás proporções de um culto, e superior a todos os instinctos de ambição e de amor paternal. Tinha uns cunhados tão sus- ceptíveis e exigentes em nobreza, que lhe pareciam estou- vados. Não podia entendel-os. Mas, femininamente teimosa, não desistiu ainda. Appellou para D. Henrique. Escreveu- lhe*, e por mau conselho, provavelmente, dos que lhe go- vernavam a cabeça leve, julgou que o melhor era assustar o visionário de Sagres. Dizia-lhe que D. Pedro, cousa hor- rorosa! queria assenhorear-se do governo para o prender e 1 Pina, Chron. de Affonso V, xxxv. 2 Ibid... XLI. O regente 289 para o perder. Quando em Sagres D. Henrique leu essa carta, o dispauterio da cunhada provocou-lhe de certo o riso; e largando para Coimbra, foi ter com o irmão, infor- mar-se do estado das cousas. — Vede, senhor irmão, dizia-lhe ao apeiar-se do cavallo, rindo alegremente; vede, senhor irmão, que temor é o meu! Venho assim percebido e seguro. . . E abrindo os braços, contou-lhe o que a rainha lhe man- dara dizer. — Não me espanto, observou D. Pedro com a sua habi- tual serenidade melancólica, taes tempos e taes vontades crearem fructa tão nova ' . . . Proseguiu contando ao irmão como as cousas se tinham passado, emquanto o acompanhava pelos pateos do palá- cio, levando-o á sala onde a duqueza de Coimbra e a fa- mília do defensor estava reunida placidamente. Achava-se ali o conde de Barcellos, um tanto esquivo, como quem se sente pequeno. Os três irmãos abraçaram-se, e, depois de conversarem sobre a situação geral, decidiu-se que o Bar- cellos, como quem melhor se dava com a rainha, a fosse decidir a não deixar de ir ás cortes de Lisboa, em novem- bro, d'ali por um mez. O conde veiu num galope a Alem- quer, onde se encontrou com o seu filho Arrayolos, chegado de Lisboa. Os ares turvavam-se cada vez mais; a sorte pa- recia inclinar-se para o lado de D. Pedro. Alemquer estava transformada n'uma praça de guerra, atulhada de arma- mento, cercada de velas e roídas que no seu vigiar con- stante denunciavam o grande medo que ia lá por dentro. Franzindo a testa, retorcendo a boca, o velho conde foi-se ter com a rainha e transmittiu-lhe o recado. A paz do reino e o livramento do infante D. Fernando (pobre martyr es- quecido em meio d'esta comedia!) reclamavam as cortes; os infantes pediam-lhe que não deixasse de ir a Lisboa. D. Leonor, cheia de orgulho, vendo no pedido uma capitu- lação, respondeu que iria se as cidades e villas revogassem 1 Pina, Chron. de Affonso V, xliii. '9 290 Os filhos de D. João I a tenção dada por D. Pedro. Com esta resposta voltou o velho conde a Coimbra, inteiramente convencido de que os dias da rainha estavam contados. Por isso, quando os dois irmãos partiram, um para Sagres, outro para Guimarães, este, que era senhor do Minho e de boa parte de Traz os Montes, com um calor proporcional ao seu desejo de des- truir o efteito dos passos que mezes antes dera em falso, afadigava-se por convencer os parciaes da rainha a que não fossem ás cortes de Lisboa1. Que havia a ganhar com isso? Deixassem outros resolver as pendências, que depois fica- riam elles sempre ao lado do vencedor, para lhe impor as arrhas do triumpho. Sentia-se agora á larga, entre os seus, o conde de Barcellos. No seio da familia, D. Pedro, com os livros, enchia-se de força. Na paz do tumulo, D. Duarte dor- mia o somno eterno. Em Sagres, D. Henrique armava navios para Africa. Em Fez, D. Fernando gemia sob o açoite do mouro. E, em Lisboa, D. João guiava a plebe amotinada. Guiava é um modo de dizer. As revoluções ninguém as guia; os chefes são sempre servos. A revolta de Lisboa tomava corpo. Esperar a decisão das cortes, como queria D. Pedro, era arriscar muito. O Porto antecipára-se, de- clarando desde logo a sua terminante e absoluta vontade. O comício de S. Domingos fizera o mesmo. Podia, devia a camará ficar de braços cruzados? De resto, o parecer de D. João era de ha muito favorável aos actos decisivos. D. Pe- dro, portanto, resolveu-se a passar o Rubicon. Em Álvaro Vaz tinha Lisboa o seu condestavel, outro Nunalvares, como o de 1 383; em Lopo Fernandes, tanoeiro velho e abonado, de que o povo «fazia grande cabeceira», tribuno da plebe muito chegado ao infante D. João, tinha outro Álvaro Paes; e outro João das Regras, finalmente, no dr. Diogo Affonso Mangancha «em quem havia letras e ardideza com pouco 1 Pina, Chron. de Affonso V, xliv. O regente 2Q1 ■b repouso». Era um fura- vidas, letrado astuto, que viu o seu futuro ligado ao êxito da revolução, e lhe deu por isso quanto podia; não era, porém, um aventureiro, porque já no tempo de D. Duarte andava no desembargo, nem um insignificante, pois legou o que tinha para subsidiar a instrucção1. Com estes elementos de primeira ordem, um cavalleiro estreme, um tribuno querido, e um letrado astuto, poz em scena a camará de Lisboa o seu acto revolucionário. O des- embargador Mangancha pronunciou um discurso, argumen- tando com a velha lei dos frankos salianos, chamada salica, admittida em toda a Hespanha, e que excluía as mulheres do throno: n'isto fundava o impedimento legal para D. Leo- nor reger o reino; e, visto esse impedimento, instava por que Lisboa reclamasse a regência para o infante D. Pedro. Foi victoriado. Antecipadamente estavam conformes todos, e os fidalgos e homens bons da cidade assignaram o accor- dão, segundo as conclusões do desembargador. Levado o 1 Leal Cons., lviii. — Este Mangancha, desembargador, é o que por seu testamento fundou um collegio em Coimbra em sua casa, instituindo uma bibliotheca em que, á moda do tempo, os livros estavam presos por cadeias aos muros. «E que os meus livros se ponham por cadeias». O testamento do desembargador Mangancha, datado de 4 de janeiro de 1448, foi transcripto por J. P. Ribeiro, Diss. Chron., 11, 260. Eis-aqui alguns trechos referentes á instituição do collegio: «em que se recebam dez escolares pobres de todo e quatro servido- res, sem nunca ter azemola, nem besta, havendo pela renda dos ditos bens duas tavolas ao dia, sem outra consoada, nem cama, nem ai, que não for vigília, e quando a for, uma tavola e á noute consoada. . . se ordenem dez camarás e n'ellas se armem dez leitos de madeira e dez estudos. . . E ahi sejam recebidos a primeira vez dez escolares já gram- maticos e passantes dezeseis annos, porém se forem sacerdotes ainda que não sejam grammaticos recebam-nos. . . E d'esses dez seja um rei- tor do collegio. . . E cada escolar começante grammatico e por conse- guinte nas outras sciencias possa estar dez annos, e o que já for gram- matico sete, e o que já deixa a Lógica, cinco e mais não». «Neste collegio nunca possam ser recebidos ricos, barregueiros, ta- fues, bêbados, volteiros, gagos, nem d'outros mãos costumes, peitudos e de narizes tortos, bochechudos, que teem rosmaninhos nos rostos, ainda que sejam bons. . .» 2cy2 Os Ji lhos de D. João I auto processionalmente, no meio das acclamações unanimes do povo, ao infante D. João, approvou-o este com alegria. Notiticaram-no depois á rainha, aos infantes e condes, e ás terras do reino. Lisboa fazia com isto acto positivo de capital, tornando-se o cérebro da nação. O Porto annuiu logo, declarando que isso mesmo votara já. D. Pedro, trans- posto o Rubicon, disse que sim, que acceitava com prazer o mandato. D. Henrique, reservadamente, absteve-se, ac- cusando como subversivo o procedimento da capital e aguar- dando as cortes para se decidir. Devemos recordar que era o auctor do accordo de Torres Novas, de facto despedaçado, embora vigente como lei; mas o povo que não distingue como os letrados, apesar de todo o seu respeito, murmura- va, rosnando contra D. Henrique, a ponto do infante D. João ter de intervir, promettendo que ia escrever-lhe e as cou- sas se accommodariam. Quando, porém, a noticia dos casos de Lisboa chegou a Guimarães e o conde de Barcellos a soube, teve um ataque de fúria senil. O irmão levava a melhor! E verdade que aconselhara á gente da rainha que não fosse ás cortes; mas isso era para que, nem D. Leonor, nem D. Pedro, vencessem de todo. Só a desordem lhe podia ser produ- ctiva. Um governo forte destruia-lhe todas as esperanças. E de mais a mais na mão de D. Pedro! Amor, dedicação pela aragoneza, não tinha de certo; e o bem do reino con- sistia na fortuna dos seus fidalgos. Diz o chronista que «se- gundo juizo commum e especiaes que se depois seguiram» o desgosto do conde era apenas «com respeito do seu in- teresse particular» '. Taes noticias e respostas chegavam a Lisboa, onde pro- visoriamente reinava o infante D. João, e Álvaro Vaz has- teava o pendão soberano da cidade. A guarnição do castello, pela rainha, teve ainda velleidades de resistência; mas o al- feres foi lá, cercou-os, mais com chufas do que com tiros, e logo os levou a renderem-se. ' Pina, Chron. de Affonso V, xxxv a xxxix e xu. O regente 293 D. Pedro largou então de Coimbra, cercado de muita fidalguia, com uns quatro mil homens de gente sua. Cor- reu que iria de passagem a Alemquer para levar comsigo o rei. A mãe teve medo e destacou-lhe um emissário ao Al- fazeirao. O infante descia a estrada que vem de Coimbra, pela Redinha, a Leiria, d'ahi á Batalha e Alcobaça. Ao enviado da rainha disse que não iria a Alemquer, e prose- guiu, chegando ás portas de Lisboa. Acampou no Lumiar. Era principiado o inverno de 1439. Os da capital vieram pedir-lhe que tomasse a regência*, elle respondeu-lhes que esperassem pelas cortes. Com effeito, reuniram-se em Lisboa os três estados do reino. A rainha recusava-se a tudo: a largar a regência, a sair de Alemquer, a consentir na vinda do pequeno rei a Lisboa. D. Pedro então, acompanhado pelos irmãos, D. Hen- rique e D. João, fez a sua entrada na cidade. As instan- cias de D. Henrique obtiveram de D. Leonor a vinda do reisinho ás cortes1, que perante elle votaram a regência de D. Pedro. O conde de Barcellos, com uma raiva que lhe escurecia a intelligencia, ainda propoz restricções, mas foi repellido; ainda reclamou o restabelecimento do arce- bispo de Lisboa, seu amigo e cunhado, mas foi-lhe negado2. O seu despeito converteu-se em ódio, vendo a partida in- teiramente perdida. Ao levantar da sessão, um procurador do Porto lembrou- se de propor que se tirasse o rei a sua mãe, porque, educado por uma mulher^ ficaria fraco, e seria alem d'isso creado no ódio a D. Pedro — e a nós, terminou dizendo. E vendo que a assembléa inteira concordava, D. Pedro pediu que parassem: — Não se faça tal cousa. Se o rei Affonso tivesse de mor- rer, diriam que o matei. Os procuradores, todavia, insistiam. D. Pedro começava a ser mandado. Pediu que consultassem os irmãos, e estes opinaram que o rei devia ficar em poder do regente. Ob- • 10 de dezembro. 2 Pina, Chron. de Affonso V, xlv a xlix. 294 Os filhos de D. João I servou ainda que melhor seria andarem ambos, juntamente, pelo reino, a rainha e elle*, mas a isto oppoz-se D. Leonor, que durante os debates viera de Alemquer, e estava em Santo António do Tojal. Era, com eífeito, humilhante de- mais para ella, andar assim, como aia dos principes, na corte de D. Pedro, rei verdadeiro; mas a essa crueldade tinha sido levada, e a não se lhe submetter havia de forçosamente entregar o rei1. Preferiu outro extremo: não abandonou só esse, abandonou todos os filhos, cinco creanças, a maior de sete annos, a mais nova de menos de um: D. Affonso, D. Fernando, D. Leonor, D. Catharina e D. Joanna. A in- fanta D. Filippa, mais velha dois annos que o rei, tinha morrido pouco antes em Alemquer. Deixou os filhos todos no Tojal, e partiu sósinha para Cintra. Calculou que, com esse escândalo, provocaria a guerra civil, e que os seus irmãos de Castella, uma vez liquidadas as pendências que lá os tinham retidos, viriam defendel-a. De Cintra, n'uma excitação aguda, partiu para Almeirim: estaria ahi mais perto da fronteira, cuidava ella que para receber os soccorros, quando foi para caminho do exilio. Todas as instancias, todos os conselhos paternaes de D. Pedro eram baldados. No intuito de a socegar, o rei e a corte foram para Santarém, defronte, do outro lado do Tejo. Em Almeirim conspirava-se abertamente. O conde de Bar- cellos, deitando fora a mascara, instava com a rainha por que se recolhesse ao Crato, cujo prior era fiel, cujo castello a defenderia, emquanto não chegavam os infantes de Aragão para a vingar. Publicamente se contavam com horror os tratos havidos entre os aragonezes e o conde de Barcellos; e D. João seu genro, seu próprio filho o conde de Ourem, e D. Henrique, ao lado de D. Pedro, exprobravam o des- vairamento do velho. Ainda que de Ourem diziam alguns estar com D. Pedro, «por ser de boa politica e mais se- guro ficar o pae de um lado e o filho do outro». D. Leo- 1 Ha um momento, em junho, em que o accordo parece estabelecido V. a carta de 1 1 de junho de 1440; m, no App. F. O regente 21 õ nor, também por cautela, mandara á irmã as suas jóias e dinheiros. E o prior do Crato, neste coro de mentiras, mandava também o filho, a Santarém primeiro, prestar a sua homenagem ao regente, e depois a Almeirim, combinar a fuga da rainha. Essa loucura consummou-se, por uma noite fria de outu- bro ( 1440), escapando-se D. Leonor com um pequeno grupo a galope nas vastas planícies do sul do Tejo, como bando de ciganos foragidos1. E quando na villa soou a noticia, a gente saltou das camas espavorida, gritando em choros: — Fugir! fugir! do infante D. Pedro que vos vem prender. Foi um pânico atroz e ridiculo. Mal vestidos, entrouxando as roupas, soltavam-se a correr pelas charnecas fora, como bando de ovelhas tresmalhadas. No seu desvairamento, mui- tos acreditavam que a carreira só havia de parar em Castella. A mulher e o filho do senhor de Cascaes, velho guerreiro já trôpego, que da cama se deitara no chão resistindo, re- bolavam-no para que se erguesse, numa afflicção aguda, sacando-lhe dos braços, pedindo-lhe por misericórdia que se salvasse. — Deixae-me comer a esta terra que me creou e a que não fui, nem sou traidor. Não me desterreis sem culpa, a este corpo, nem lhe deis sepultura em terras alheias2. Levaram-no aos tombos. E quando a manhã levantou de sobre a terra o manto escuro da noite, a charneca appareceu deserta e muda na sua immensidade. Aqui, alem, um farrapo, um mantéu, perdidos, aceusavam o êxodo tumultuoso da corte da rainha que se fortificava no Crato. E de ver que ao regente não assustavam em demasia ini- migos destes; receiára, porém, um conflicto com Castella3. Entrando na maioridade, o rei João II, em 1420, entregara o governo ao favorito D. Álvaro de Luna, que o infante ' Carta de 1 e 2 de novembro de 1440; vn e vm no App. F. 2 Pina, Chron. de Affonso V, l a l\v. 3 lbid.y lv — Carta de 2 de nov.; viu no App. F. 2q6 Os filhos de D. João I D. Pedro já tratara em Valladolid, quando partia para a sua viagem. D. Álvaro, creado de creança na corte cas- telhana, onde apparece pela primeira vez, como pagem, em 1408, era o encanto das mulheres, e desde a infância o que- rido do rei. Poetavam ambos ao desafio, desmanchando-se o cortezão em hyperboles. Chamava a D. João II columna de gentileza. Musico alem de poeta, escriptor ainda por cima, D. Álvaro, que fazia a apotheose do sexo feminino no seu tratado das Virtuosas é claras mujeres, era o que trovando chamava á sua dona Corona de quantas Dios padre cria, acabando por esta quasi blasphemia genuinamente castelhana: Se Dios, nuestro Salvador, ovier de tomar amiga fuera mi competidor. Tomando conta do governo, D. João II entregou-se nas mãos de Luna, e n'elle se consolidou a quasi instituição dos privados dei rey1. A corte mordeu-se de inveja, vendo esse trovador feito conde de San Esteban, com seis cidades e mais de setenta fortalezas. Distinguiram-se pela sua oppo- sição ao governo os infantes de Aragão, primos-irmãos do rei castelhano, que em 1418, casando-se este com a irmã de D. Leonor de Portugal, se acharam cunhados do rei. A rainha viuva do Aragão estabeleceu residência na corte de Castella, junto da filha, com os dois rapazes que anda- vam em busca de fortuna, e a viam patente se conseguissem abater D. Álvaro e tomar-lhe o logar á frente dos fidalgos, junto do fraquissimo rei. Desde então, a Castella inteira se achou dividida em duas facções hostis, que em guerra dis- putavam entre si D. João II; mas o rei, fiel á sua amisade, • Cf. Ticknor, Hist. litt. esp., na ed. Gayangos, 1, 208. — A Chronica anonyma, de D. Álvaro de Luna, impressa pela primeira vez em Milão, 1546, é um documento celebre na litteratura castelhana. Amador de los Rios (Hist. crit. litt. esp., vi, 224-9) estudando-o, attribue-o a Alvar Garcia. O mesmo auctor analysa as producções de D. Álvaro, nomeada- mente o seu tratado das Virtuosas é claras mujeres; ibid., 63,5 e 271 a 7. O regente 297 tanto mais se prendia a D. Álvaro, quanto maiores eram as victorias dos seus inimigos1. N^sta situação, D. Pedro, desde que a rainha, fugindo de Cintra para Almeirim, abertamente appellou para os irmãos e o conde de Barcellos se bandeou com elles, encostou-se também á parte contraria, alliando-se a D. Álvaro de Luna e ao mestre de Alcântara, D. Gutierres, seu sócio na cam- panha e na protecção real, enviando-lhes logo um auxilio de tropas, com que poderam bater as dos infantes arago- nezes e libertar o rei que estes tinham captivo2. De tal modo se dissipava o perigo de uma intervenção castelhana, porque os infantes não viriam, emquanto D. Álvaro, a quem o rei se conservava sempre fiel, os trouxesse por lá abar- bados com a sua hostilidade. Conseguiram apenas que de Castella mandassem uma embaixada no outono de 1440, reclamando a regência para D. Leonor-, mas esse mesmo acto platónico era renegado pelo rei, que, de accordo com Luna, secretamente mandava dizer a D. Pedro que não lhe desse ouvidos. A embaixada, eífectivamente, foi despedida com as cortezias do estylo logo que D. Leonor fugiu de Almeirim para o Crato3. O pleito da regência estava, pois, liquidado. D. Pedro, senhor do governo, tinha o rei em seu poder: esse sym- bolo, essencial á auetoridade politica, era uma creança de oito annos. De facto, rei era elle; e no momento em que um homem sobe á eminência do poder, é que a sua ver- dadeira natureza se revela. Antes, os actos podem ser si- mulados pelo plano que o dirige, ou pelo impulso incon- sciente que o move; depois, complicam-se inevitavelmente com a saudade da vida forte, com as reminiscências e com as dependências creadas no periodo culminante. No alto do throno a que as circumstancias o forçaram a subir, D. Pedro via mais claramente ainda, porque do alto 1 Ch. Romey, Hist. d'Esp., ix, 17. 2 Pina, Chron. de Affonso V, lv e lvi. 3 Ibxd.y lxiii e lxvi. 298 Os filhos de D. João I são mais largos os horisontes, essa inanidade intrínseca das cousas que lhe revelara a sua mente de philosopho. O pessi- mismo subia com elle ao throno. De uma vez, em Coimbra, indo com o infante D. Henrique para a porta de S. Bento, que dava sobre a ponte do Mondego, e onde se viam as ar- mas da cidade — uma mulher sobre um cálix com uma co- roa na cabeça e com um seio amamentando um leão, com o outro uma serpente — D. Henrique parou, e rindo, a olhar as armas, disse-lhe: — Bem se pôde, senhor irmão, comparar a vós esta figura, pois também de uma parte daes mantimento ao leão, que é Gastella, e da outra a Portugal, que é a serpe do nosso timbre. — Verdade é, respondeu D. Pedro, scismando; mas vêde-a melhor e considerae que está sobre um cálix que significa sangue, em que mais claramente parece que, de meus tra- balhos, serviços e benefícios, esse ha de ser meu galardão1. . . De outra vez, em Lisboa, o povo da cidade queria levan- tar-lhe uma estatua em reconhecimento do bem que lhe fizera abolindo dentro d'ella o serviço da aposentadoria, um dos mais vexatórios que a Idade média teve. Pela aposen- tadoria os povos eram obrigados a aboletar a corte e as em- baixadas, fornecendo-lhes camas, roupas, louças e todos os utensilios e alfaias necessárias á hospedagem2; e com os há- bitos de deslocação constante das cortes, e com a frequên- cia das embaixadas, antes do estabelecimento de legações permanentes, este serviço era onerosissimo, mormente nas terras como Lisboa, que se iam tornando capitães. D. Pedro, em 14393, ordenando a abolição da aposentadoria, dotou a obra do paço dos Estáos, destinado a receber as embaixa- das; pois a corte já tinha em Lisboa o seu paço da Alca- 1 Pina, Chron. de Affonso V, lii. 2 Viterbo, Elucid. V. Aposentadoria. 3 V. a carta regia de 9 de junho fixando a dotação para o paço dos Estáos, em Oliveira, Annaes do município de Lisboa, 1, 320. — Pina, xlix, data o acto das cortes de dezembro, o que se vê não ser exacto. D. Pe- dro era ainda somente defensor, e de certo esse acto lhe augmentou a popularidade na capital. O regente 299 cova, apar S. Martinho detrás da Sé, depois substituído pelo da Ribeira, onde viveu D. Manuel1. E quando vieram dizer a D. Pedro, já então regente, que lhe queriam levantar a estatua sobre a porta dos Estáos, elle a com o rosto carregado de tristeza e pensamento » recusou a licença: — Se a minha imagem ali estivesse esculpida, ainda virão dias que em galardão d'essa mercê que vos fiz e de outras muitas que com a graça de Deus espero de vos fazer, vos- sos filhos a derribariam e com pedras lhe quebrariam os olhos. E, portanto, Deus por isso me dê bom galardão, que de vós emfim não espero senão este que digo, e porventura outro peior. Shakespeare, o genial adivinhador do homem na Renas- cença, pintou no seu Hamlet o prototypo desse estado ex- trinsecamente contradictorio e incoherente, que resultava para a consciência humana do súbito desanuvear dos hori- sontes intellectuaes. Estonteada, como ave ainda implume a quem furtaram o seu ninho de crenças infantilmente prote- ctoras, a alma esvoaça, geme, e a final expira. Hamlet portu- guez, o regente previa o seu fatal destino no cálix que signi- fica sangue. O poder não o satisfazia: provava-se que não fora um ambicioso, agora, quando podia dar largas aos seus desejos. Era no throno o mesmo philosopho precursor do pessimismo; mais poderoso ainda no alcance da vista do que o irmão, precursor também do utilitarismo, já hoje talvez em principio de decadência. Com a fuga da rainha para o Crato houve um simulacro de guerra civil. D. Pedro enviara uma carta-manifesto ás 1 Os Estáos de D. Pedro eram o edifício em que no Rocio, em 1484, se installou a inquisição; reconstruído depois do terremoto de 1755, em 1820, supprimida a inquisição, foi palácio da regência; em 1826 serviu á camará dos pares; em i833 foi para lá o erário; e por fim ar- deu em i836. No seu logar está hoje o theatro de D. Maria II. 3oo Osjílhos de D. João I villas do reino, carta que fora lida depois da missa, no dia de Todos os Santos. Escreveu outra vez a D. Leonor, admoestando-a, e, por não haver mais remédio, dispoz os preparativos da guerra. O infante D. Henrique foi para a comarca da Beira, o infante D. João para a de entre Tejo e Guadiana. Ao Porto mandou-se um enviado especial; e ordens foram dadas para o Alemtejo, a fim de que ninguém fornecesse ao Crato mais mantimentos do que os necessá- rios para o sustento da rainha e vinte pessoas de séquito1. O Grato era um d'esses velhos castellos fronteiros levan- tados n'um mar de charnecas desoladas por séculos de combater incessante. O ferro e o fogo tinham talado sem piedade as planícies, e só de longe podia vir o mantimento. As ordens do regente equivaliam a um cerco, pois ainda antes de irem tropas contra o castello já lá dentro havia fome. A pobre rainha pedia de mãos postas ao infante D. João que lhe acudisse; elle respondia-lhe que saísse do Crato, cujo prior, mais a familia, não gosavam da melhor fama. N'este ponto correu voz de que os rebeldes tinham contratado gente em Castella, e era verdade. Tornava-se indispensável acabar com o núcleo de resistência; e no meiado de dezembro (17) as tropas do infante entravam em Belver, e publicavam-se éditos de dez dias para se sub- metterem todos os que seguiam o prior, sob pena de morte e confisco. Assentou-se o cerco, e á fome juntou-se o terror dentro do Crato. Repetiam-se os prognósticos fúnebres. A imagi- nação, assustada pela consciência da felonia, via pavores no ar. Reparam numa águia que por três vezes desceu sobre um ninho de cegonhas pousado na torre da casa do prior; e que depois de levar os dois filhos, levava pelos ares nas garras o pae . . . Prognostico da sorte reservada ao prior do Crato?. . . A bala de pedra do primeiro trom de um quar- tão dos sitiantes bateu em cheio num escudo de armas, des- 1 V. a carta a Coimbra, datada de Santarém, 8 de dezembro; x no App. F O regente 3o i pegando-o, sem o partir, das mãos de dois anjos que o sustinhatn, e só ao cair por terra se fez em hastilhas; o se- gundo tiro matou um homem; o terceiro foi despedaçar-lhe o cadáver já mettido no seu esquife . . . O cerco estreitava-se. Nas immediações do Crato havia ligeiras correrias, mas pelo reino não bolia uma folha. Che- garam com effeito alguns troços de castelhanos pagos com as jóias e baixellas da rainha, e, não havendo outro meio de a convencer, o regente, com o infante D. João e os cunhados Ourem e Arrayolos, filhos do conde de Barcellos, marchou para o cerco. Nos últimos dias de dezembro entravam em Aviz; e a rainha, vendo que nem Barcellos, nem os infantes de Aragão, nem os conjurados da liga de Torres Novas: nin- guém vinha em seu soccorro, abalou, passando a fronteira, para Albuquerque de Castella, com o prior do Crato, o se- nhor de Cascaes e outros que, seguindo-a, acabaram emi- grados. O Crato entregou-se, rendendo-se o castello com os oitocentos castelhanos que o guarneciam1. E assim terminou a guerra civil. O conde de Barcellos não se levantara pela rainha, os seus filhos acompanhavam o regente", mas estava longe de ser seguro que o pae se lhe submettesse. Que andava fazen- do pelo norte, em grande parte seu, esse velho astuto e insa- ciável? A sabel-o, e a ver se o congraçavam, partiram para Traz os Montes, em fevereiro de 1441, D. Pedro e D. Hen- rique. O conde estava em Mesão Frio, a cavallo sobre o Douro, para lhes embargar a passagem. Villa Marim, Mesão Frio e Cidadelhe, nas cumiadas agrestes das serranias do norte do rio, que caem abruptas e selvagens num leito de schistos terrosos, coroadas por pavorosas erupções graníti- cas, eram ainda behetrias, moléculas espontaneamente for- madas, quasi republicas serranas da Idade média, que a necessidade da defeza obrigava a sujeitarem-se a um fidal- go, patrono ou senhor; mas que, na rudeza livre de mon- tanhezes bravios, reservavam para si a eleição do protector. ' Pina, Chron. de D. Affonso V, lxvi e lxxiv 3o-2 Os filhos de D. João I Essa eleição recaíra no conde de Barcellos, cujo plano de confiscar as liberdades dos serranos, tornando o beneficio hereditário na sua casa, se realisou n'este próprio anno1. De dentro do seu ninho alpestre, como um falcão, o conde de Barcellos, receiando-se de que os irmãos viessem ajustar contas, mandara afundar os barcos do Douro ; mas D. Pedro construiu uma ponte de toneis e passou. O conde de Ourem que vinha com elle, pedindo-lhe perdão para o pae, rogou-lhe licença para ir adiante convencel-o. Foi e trouxe-o. Viram- se, abraçaram-se os dois irmãos. Ouve-se o que as bocas diriam; adivinha-se o que diriam os corações. O arcebispo de Braga D. Fernando, que era um pobre homem, malicio- so, porém, exclamava cheio de uncção ecclesiastica: «Ecce quam bonum et quam jocundum habitare fratres in unum!» D. Pedro «com bem na cara» impassivel de quem conhecia o interior aos homens, escutava a verbosidade contricta do conde de Barcellos, os seus protestos de obediência, as suas affirmações de amisade e dedicação. Abandonava á sua sorte a rainha, encarregava-se até de a trazer á obediência e amisade de D. Pedro; concordava no casamento do rei com a filha do regente; somente pedia uma cousa: era que repozessem em Lisboa o arcebispo exilado. Foi garantido; e separaram-se todos em paz, o regente para Lisboa, D. Hen- rique por Vizeu para o Algarve, e o conde para Guima- rães2. Tratou-se logo do casamento do rei que tinha dez annos feitos. Houve cortes em Torres Vedras, e os desposorios effectuaram-se em Óbidos no dia da Ascensão de 14413. Pouco a pouco, uma por uma, se iam liquidando as difi- culdades. Faltava regularisar a situação da rainha, que an- dava por Castella perseguindo os irmãos para que viessem 1 Fornellos, Mem. hist. econ. do concelho de Mesão-frio. As behetrias foram extinctas em i55o, com a reforma dos foraes por D. Manuel. — Cf. J. P. Ribeiro, Reflex. hist., p. 1, n. 19. 2 Pina, Chron. de D. Afonso V, lxxv. 3 Ibid., lxxvi. — Carta do Bombarral, 26 de maio; xm no App. F. O regente 3o3 restaural-a. O conde de Barcellos mandou-lhe com effeito um enviado, que chegou, porém, em má occasião. No anno precedente a rainha de Castella tinha conseguido que seu filho, o príncipe das Astúrias, casasse com a prima, Branca de Navarra, cujo pae era um dos irreconciliáveis inimigos de D. Álvaro de Luna. Não pôde o condestavel impedir este enlace, que, todavia, a fraqueza do príncipe lhe não per- mittiu consummar'. Mas a victoria da opposicão accentuava- se, e os aragonezes omnipotentes parecia deverem levar a melhor. Tinham cercado Medina dei Campo, tinham-se apo- derado outra vez do rei, e batido as tropas de Luna e do mestre de Alcântara. D. Leonor estava com os irmãos em Medina, quando recebeu o enviado de Barcellos, e, confiada no êxito, repelliu-o. Em Portugal, o regente convocava as cortes para Évora2; e repellia também as suecessivas em- baixadas castelhanas. Receiava um rompimento. Ceder seria fraqueza, insistir podia trazer a guerra. As cortes de 1442 votaram, porém, tão arfirmativamente, que se preparou para a lueta. Os pedidos que lançou, os armamentos que orde- nou, foram unanimemente applaudidos; e n'esta unanimi- dade do reino contra a infeliz viuva, encontrou o conse- lho de Castella, reunido para tratar o caso de Portugal, o argumento decisivo a favor da não intervenção e pela paz, apesar dos rogos de D. Leonor e dos irmãos que assistiam ás deliberações da assembléa3. Pacificamente decorrera o anno de 1441 e o seguinte le- vava igual caminho, quando em outubro morreu de uma perniciosa em Alcácer do Sal o infante D. João, que fora o braço direito do regente no pleito do governo. Era o segun- do dos filhos de D. João I que descia á cova, na flor dos annos: tinha apenas quarenta e dois; e se Portugal perdia nelle um dos caracteres mais inteiros que a sua historia 1 Ch. Romey, Hist. d'Esp., ix, 17. 2 Cartas de Santarém e Évora, 19 e 20 de dezembro, xv, e xvi no App. F. 3 Pina, Chron. de D. Affonso V, lxxvii a lxxx. 304 Os filhos de D. João I apresenta, o regente perdia também o alliado mais presti- moso e mais fiel. A sua dor foi immensa. Estava em Coim- bra, e caiu de cama enfermo ao receber a noticia. Transferiu logo para o filho do fallecido, D. Diogo, o mestrado de San- tiago com todas as rendas que o pae tinha1; e para a filha proporcionou-lhe o futuro um destino brilhante. O mundo é feito de compensações e equilíbrios. Parecem pratos de uma balança que sobem ou descem alternada- mente, revezando-se. Quando a dor e a immensa falta de D. João acabrunhavam o regente que baixava, subia o conde de Barcellos vendo-se a final igual dos irmãos, também du- que. Vinha terceiro na ordem do tempo, mas era primeiro de facto, porque os seus bens pertenciam-lhe e não á coroa, e porque o titulo ficava hereditariamente vinculado á sua familia quasi soberana. Em 1442 morrera o senhor de Bra- gança, D. Duarte, sem herdeiros. A corte estava em Évora, e para lá foram correndo, pae e filho, Barcellos e Ourem, a reclamar a herança do morto ainda quente. Ourem chegou primeiro, pediu e obteve do regente o senhorio d'esse cas- tello; Barcellos chegou depois, pediu também, mas D. Pe- dro disse-lhe que o dera já. D^ste modo o pae recebeu do filho a terra de que foi feito duque2. A desforra chegava tardia, mas vinha. A velhice indemnisava-o amplamente das amarguras passadas. Sentia-se erguer, no prato da balança do mundo ... O regente baixava. Depois da perda do irmão, n'esse anno funesto de 1443, morria também no seu captiveiro o desgraçado D. Fer- nando, terceiro dos filhos de D. João I que descia ao tumulo, se é que era vida a sua existência cruel. . . Mor- ria também o filho do infante D. João, logo um anno após do pae. A um tempo vagavam dois mestrados, o de San- tiago e o de Aviz, com o cargo de condestavel que passara do pae para o filho de D. João. O regente recusou-o ao conde de Ourem que o reclamava para si, e deu-o ao pro- ' Pina, Chron. de D. Affonso V, lxxxi. 2 Ibid., lxxxi; e Sousa, Hist. Geneal., v, 37 e segg. O regente 3o5 prio filho. Allegava Ourem a supposta hereditariedade do cargo na linhagem do grande condestavel, cujo neto era; dizia que o infante D. João fora condestavel, não por ser infante, mas por ser casado com a neta de Nunalvares. Contestava o regente não existir doação nem diploma que provasse a hereditariedade, e senão, que lh'o mostrasse; que á morte de seu pae, e não podia cila tardar muito, ficava duque, três vezes conde: para a estreiteza de Portu- gal, bastava; tivesse paciência1. — Desesperado, o conde de Ourem partiu, jurando vingar-se. Renascia-lhe na alma o appetite insaciável do pae. E D. Pedro, considerando as cousas, reparava como se iam realisando as suas previsões. Enumerava as perdas soffridas, commentando-as resignada ou indifferentemente: a morte de D. João, o engrandeci- mento do conde de Barcellos, e agora o ódio do conde de Ourem. A vida cada vez lhe parecia menos digna de amor. Em Castella, a triste rainha D. Leonor, perdidas todas as esperanças com a victoria de D. Álvaro de Luna em Ol- medo (1445) que libertara o rei, pondo por uma vez termo ao poder dos aragonezes, retirára-se para Toledo, onde vi- via pobremente das esmolas que de cá lhe mandavam. A final negociava-se um accordo por via do conde de Ar- rayolos, quando repentinamente chegou a noticia de que morrera2. Envenenada? Corria que sim, pelo condestavel D. Álvaro, inimigo figadal dos aragonezes. O facto c que aos quinze dias morria também, repentinamente, a rainha de Castella3. Vencidos os irmãos, D. Álvaro via-se livre das irmãs, e senhor absoluto do rei. O regente de Portugal man- dára-lhe novos reforços, com o próprio filho, o novo con- destavel, que aos dezeseis annos fizera as suas primeiras armas em Olmedo4, concorrendo para o extermínio dos in- 1 Pina, Chron. de D. Affonso V, i.xxxn, lxxxiii. 2 19 de fevereiro de 1445. Ibid., lxxxiv. 3 Ch. Romey, Hist. d'Esp., ix, 17. 4 O filho de D. Pedro, do mesmo nome, nascera em 1429. Foi n'esta expedição a Castella que conheceu D. Inigo Lopes de Mendoza, com- 3o6 Os filhos de D. João I fantes aragonezes, dos quaes um, Henrique, morria no com- bate, emquanto o outro recolhia vencido aos Pyrenéus. Mas, dir-se-ía que para confirmar as conclusões do seu pessimismo, esta fortuna do regente voltava-se contra elle, ferindo-o na reputação; porque a alliança com os castelha- nos, reclamada pela paz do reino, fazia-o solidário dos actos de D. Álvaro, e para alguns cúmplice nos seus crimes. Essa idéa aggravou-se com o erro que ambos commetteram, D. Pedro e D. Álvaro, casando a filha do infante D. João com o rei de Gastella, viuvo. D. Pedro imaginou pagar assim a divida á memoria do irmão querido-, D. Álvaro pensou ter na rainha portugueza um instrumento dócil. Enganou-se redondamente. O rei, casado quasi sem dar por isso, come- çou a reparar que o valido dispunha d^lle com demasiada liberdade1; D. Izabel, obedecendo aos instinctos voluntario- batendo ao lado d'elle em Olmedo, batalha em que Mendoza ganhou o titulo de marquez de Santillana. De volta a Portugal, o condestavel, tão letrado como o pae, pedia ao marquez a collecção das suas Can- ciones y depres, que este lhe mandava com a celebre carta que é um dos principaes documentos da historia litteraria do tempo. — Cf. Ama- dor de los Rios, Hist. crit. etc, vii, 8o. i «Estando el Rey ocupado en estas cosas, llegó à Mayorga D. Pedro, 3.° condestable de Portugal, mancebo de 17 anos, hijo dei infante D. Pedro, governador de Portugal con 2 mil infantes e hasta 1 :60o de caballo, de gente escogida, en ayuda de el Rey, que á consejo dei Con- destable D. Álvaro de Luna, aun que contra el parecer dei conde de Haro y de otros, avia pedido favor ai infante de Portugal. Cuyas gen- tes, sendo bien y graciosamente recebidos fueron festejados de los cas- tellanos à los quales avian mucho deseado ver estos fidalgos y la de- mas gente de aquel reyno, y a cabo de 5 ou 6 dias, no aviendo neces- sidad suya fueron despedidos con muchos dones y presentes que el Rey dio a cada uno segun sus méritos em que tornaran contentos. «Deste viaje el condestable de Portugal llevava concertado casa- miento de la Infanta Dona Isabel hija de Don Juan, infante de Portugal y maestro de S.t0 Tiago dei mismo reyno, con el Rey Don Juan que 5 mezes habia que estava biudo. Esto hizo el Condestable D. Álvaro casi sin saber el Rey ninguna cosa ai principio, tan rendido estaba á su voluntad y querer, aquien despues estraha y secretamente començó a desamar en especial por esto.» — E. Garibay, Comp. histor. de las cron. y univ. Hist. de todos los reynos de Espana (Amberes, 1 5/i ), 11, 11 33. O i~egente 307 sos da raça, virou o marido, e ambos conspiraram contra o condestavel de Gastella que em 1453 foi preso em Burgos e decapitado no anno seguinte cmValladolid1. Assim o des- tino inverte por vezes as tenções dos hábeis. O homem põe, e Deus dispõe. Entre o ajuste e as bodas, em 1446, consummou o re- gente a publicação das Ordenações que se ficaram chamando affonsinas \ e sendo o primeiro código civil portuguez, foram o mais decisivo golpe no systema politico da Idade média, e o alicerce do poder soberano da monarchia, a caminho de uma definição completa. O compilador Ruy Fernandes, in- stado desde o dia em que D. Pedro tomara conta do governo, concluíra a final o trabalho de coordenação das leis do reino, 1 Ch. Romey, Hist. d'Esp., rx, 17. — Os poetas celebraram a catas- trophe de D. Álvaro, não poupando epithetos injuriosos para esse ho- mem perdido: traça roedora, gusano tragou, etc. Guillen de Segóvia escrevia : Três delitos le pusieron Grand crueza, tirania et ai rey segunt sintieron ocupar la senoria. Cf. Amador de los Rios, Hist. crit., etc, vi, i85.— O condestavel D. Pedro nas suas glosas ao poema do Menosprecio, etc. (n. 776, dos reservados na Bibl. nac. de Lisboa) duas vezes allude ao caso de D. Ál- varo de Luna. «Venido forastero: e pobre cópanero en castilla tanto privo con el- rey q le dio en gruessas cibdades : e villas Ciento : e cinquêta mil do- blas de renta : e ai cabo lo prendio en burgos : e lo mando degollar en la placa deValladolid qdãdo la su cabeça nueue dias puesta en un paio en el cadahalso adonde lo degollarÕ : e el su cuerpo a grã pena pudo fallar sepultura», (foi. 10 v.) «... aquel furioso prego : e aquella cabeça puesta nueve dias en ai paio que por servicio de su rey havia seydo llagada. E ni las llagas: ni los seruicios estorcierõ la su terrible caída por mano de aquel que lo havia collocado en tanta celsitud: e alteza que los reyes: e prici- pes le obedescian e los mayores aguardauã la su puerta. Pêro todavia affirmo los sus insoportables crimines ser dignamête punidos : no por juhizio dei rey terrenal, mas delrey de los reyes delante el qual nin- gud mal impunido: ni bien inremunerado queda.» (foi. 5 v.) 3o8 Os filhos de D. João I dispersas em cartas, decretos, alvarás e regimentos dos seus reis successivos '. As ordenações foram a bíblia, o livro por ex- cellencia, da nova religião civil da monarchia. Por outro lado, o regente creava em Coimbra o estudo geral, ou universi- dade, em que se haviam de ensinar leis e cânones, theolo- gia e artes, dotando-o com rendas próprias, declarando-se por carta regia protector da instituição nova2, fundada em obediência aos preceitos que annos antes pregava ao irmão nas suas cartas de Flandres. O ensino e as leis, esses dois ali- cerces da sociedade politica, encontravam assim em D. Pe- dro o mais infatigável defensor. A elle, pôde dizer-se, deve a moderna monarchia em Portugal a sua existência. Em 1447 partiu para Castella uma D. Izabel, emquanto a outra casava com D. Affonso V que completara quinze annos. A neta do duque de Bragança, e a filha do regente, Izabeis ambas, subiam simultaneamente aos thronos de Cas- 1 «D. Pedro logo em começo do seu regimento mandou ao dito dou- tor (Ruy Fernandes) que proseguisse a dita obra quanto bem podesse e não alçasse d'ella mão por nenhum caso até que com a graça de Deus a puzesse em boa perfeição.» — Figueiredo, Synopsis chron., 1, 34. 2 Devo esta informação ao sr. Theophilo Braga que m'a communi- cou em carta que diz : «... Referi-me a uma carta de 3 1 de outubro de 1443 em que D. Affonso o (D. Pedro) nomeia (isto é, o regente nomeia-se a si próprio) Protector da Universidade que por aquelle documento funda em Coimbra. Transcrevo pela primeira vez este doe. na Historia da Universidade (p. 144) que estou imprimindo. O infante entrou em accordo com o bispo de Coimbra D. Luiz Coutinho, com o cabido da Sé e o prior de S. Pedro de Almedina, que em 24 de maio de 1446 fizeram escriptura de doação das rendas da igreja de S. Thiago de Almelaguez para dotarem o dito Estudo geral, em que se ensinas- sem leis e cânones, theologia e artes, com a condição de que tudo caducaria se este Estudo geral fosse mudado de Coimbra. Estes e outros documentos foram copiados do archivo da cathedral de Coim- bra e publicados pelo cónego Miguel Ribeiro de Vasconcellos, que desconheceu o facto de 1443. Trago-os também na minha Historia, p. 146 a 148. Esta Universidade chegou a ter nomeado o seu reitor, o dominicano Álvaro da Mota, por provisão de 22 de setembro de 1450; porém as consequências do desastre de Alfarrobeira (1449) obstaram a que o pensamento do infante fosse por diante». O regente 3oo, tella e Portugal'. No verão, em julho, D. Pedro viu-se for- çado a retirar para Coimbra, ao eremeterio da sua família, dos seus livros. Os ambiciosos deviam estar satisfeitos, e também satisfeito o regente por ter evitado a anarchia no reino e a guerra estrangeira. Todavia não era assim, porque na realidade as cousas procedem de um modo avesso. Diz o ditado que quanto mais se faz, menos se merece. O mundo é com eífeito uma ondulação cega, uma ambição vaga, para um norte indefinido; e os que mais se lançam n'essas cor- rentes são exactamente aquelles que mais sofFrem as conse- quências do tumulto. Essa própria ambição, a que alguns fabricantes de systemas chamam progresso, é tanto mais dolorosa e cruciante quanto é mais activa e mais enérgica. Emigrando para Coimbra, D. Pedro vergava ao peso, não do remorso, porque estava innocente, mas das cogita- ções que no seu espirito provocava o espectáculo da injustiça e da contradicção constitucional do mundo. Nem a sua phi- losophia, nem a do tempo, davam para comprehender como taes contradicções são inherentes á própria realidade; e o seu pessimismo, como todos os pessimismos, provinha de não entender que a ordem, a paz, a justiça e a belleza estão apenas na luz diaphana da nossa rasão. Pairando livre, apa- gam-se para ella os aspectos confusos das cousas, e vê-se ape- nas a si própria como numa phantasmagoria. Deposto da re- gência, accusavam-no de cumplicidade com o condestavel de Castella no envenenamento provável das duas rainhas; accu- savam-no, e então com verosimilhança (depois da comedia do principio de 1446 que logo contaremos) de querer usur- par o throno ao sobrinho — quando elle apenas quizera, apenas queria, dar paz, socego e felicidade a um povo, não por amor em que ardesse por elle, mas por assim llro pres- • A rainha de Castella teve o dote de 100:000 florins aragonezes, que pouco custou a pagar, pois se encontrou nas despezas da expedi- ção auxiliar de 1445. Houve grandes festas em Lisboa á partida da rainha. O casamento de D. Affonso V fez-se em Santarém sem fausto. — Cf. Pina, Chron. de Affonso V, lxxxvii. .MO Os filhos de D. João I crcvcr a sua consciência justa e sabia. Passava por ambi- cioso, em bocas abertas para deglutir com ambição insaciá- vel, elle que sabia o valor mesquinho de todas as vaidades do mundo! E com este agitar de idéas, que não podia resolver, esvaía-se-lhe a cabeça, e a rasao começava a allucinar-se-lhe. ALFARROBEIRA regente e o seu partido viam approximar-se janeiro de 1446, em que Affbnso V completava quatorze annos, idade para reinar. Consideravam, como era facto e o tempo mostrou depois, que ao caracter do sobe- rano faltava energia, apesar da violência tumultuosa demon- strada já nos seus verdes annos; que tinha a intelligencia curta; e que a fidalguia esperava com anciã o momento do rapaz ser rei, para se lançarem como falcões sobre o reino. O regente e o seu partido combinaram uma comedia a que Atíonso V se prestou de bom grado. Convocaram-se cortes em Lisboa, e perante ellas o rei tomou conta do governo com um discurso do desembargador Mangancha que, ao acabar, de joelhos e sorridente, lhe entregou a vara da jus- tiça. O sorriso do desembargador, porém, queria dizer que, logo três dias depois, AtFonso A' havia de declarar-se creança de mais para o governo, como em seu nome o participou o mesmo Mangancha ás cortes, acrescentando que o rei se 3i2 Os filhos de D. João I declarava igualmente bem casado, para desmanchar duvi- das aos que as tivessem acerca dos esponsaes de Óbidos. O auctor d'esta combinação, bem ou. mal urdida, foi de- certo o letrado ardiloso. O ardil, porém, dando aos argumentos dos contrários uma apparencia de rasao, voltava-se contra quem o empre- gara. Succede quasi sempre assim. Agora já o duque de Bragança não carecia de excitar o filho, porque era o conde de Ourem que levava atrás de si o pae, de mãos dadas com o arcebispo de Lisboa, restaurado no seu sólio pelo regente e por amor da paz. Todos em coro estontearam a cabeça do rei, obrigando-o a desdizer-se, e a reclamar o go- verno e a mulher. Recebeu-a nas bodas de Santarém (1447), e logo em seguida o reino que o regente lhe entregou1. N'esse dia, todos começaram a voltar-lhe costas, como era natural. O duque de Bragança estava em Chaves, quando isto aconteceu. Os setenta annos não lhe pesavam; sentia-se leve e alegre e robusto, ágil como aos vinte. Saltou num pulo a cavallo, arrebanhou a sua gente de guerra, e desceu como um raio, galgando o Marão, Tâmega abaixo, até Guimarães. De Guimarães foi a Ponte de Lima, de Ponte de Lima ao Porto, e por todo o Minho tirava aos creados do ex-regente os officios que tinham por el-rei, expulsando-os como trai- dores, mandando velar e roldar os castellos contra D. Pe- dro. O reino pertencia-lhe. A corte continuava em Santarém. Ahi D. Pedro se con- servava ao lado do rei, e o conde de Ourem acampara em Torres Novas, como num quartel general, commandando as manobras. Junto do rei pozera como protonotario um certo Berredo, que em Roma aprendera todas as artes e manhas das cortes italianas, training exercitado em vinte séculos de politica, e que á astúcia juntava auctoridade e «solta audácia de dizer», por ser homem de grandes letras. Esse Berredo era o confidente do rei, e a propósito de des- 1 Pina, Chron. de Affonso V, lxxxvi a lxxxviii Alfarrobeira 3i3 pachar os negócios da cúria, propinava ao rapaz em do- ses graduadas, mas progressivas, o veneno do ódio a D. Pe- dro; ao mesmo tempo que para com este era mel, com olhares ternos e palavras doces. Quando achou o rei satu- rado e prompto, fez-lhe uma profissão de fé patrioticamente solemne, batendo no peito com gesto grave, affirmando a sua lealdade inquebrantável e a dôr immensa por ter de denunciar o plano de D. Pedro, que queria tirar-lhe o reino para o dar aos próprios filhos. O fim d'esta scena era levar Affonso V a Torres Novas. Affonso V estouvadamente foi, e entregou-se desde logo nas mãos do conde de Ourem. Com o ódio a ferver-lhe no peito, o conde, menos educado do que o Berredo, accusava o primo de se deixar governar por D. Pedro. Era rei; mas o rei verdadeiro continuava a ser o infante em Santarém. Pois não se offendia de passar por creança? Já era um ho- mem. Visse bem: estava preparando a própria perda. O rei scismava. Na sua cabeça impetuosa, mas débil, agita- vam-se os sentimentos que o outro fazia vibrar, debaten- do-se com a amisade e o respeito quasi filial que tinha pelo regente, sempre carinhoso e bom para com elle. Aos quinze annos, a gratidão falia alto. Indeciso, perguntava ao primo: — Então? Então? Era d"ali mesmo, emquanto estava livre da tyran- nia do tio, mandar-lhe intimar que se fosse da corte. — Com tal engano, não ! protestou generosamente Af- fonso V. Em pessoa o despediria eu. Ourem condescendeu em que fosse assim, pois assim o queria; aconselhando-lhe que levasse os fidalgos da comarca armados, conforme fez. Mas D. Pedro, conhecedor d'estas tramas, logo que o rei entrou em Santarém, foi-se a elle, e, com uma serenidade contrafeita, disse-lhe: — Ha dez annos que por causa do governo abandono o que é meu: deixae-me ir a minhas terras cuidar do que me pertence. Resolvia assim o pleito, declarando-se vencido. E a sorte inevitável, quando se não combate com armas iguaes, e os 3 14 Os filhos de D. João I inimigos usam das nossas e de outras ainda, que o respeito próprio nos veda empregar. O rei, satisfeitissimo, abraçou o tio n:uma verdadeira effusão. Partindo espontaneamente, livrava-o de um peso esmagador, porque tinha o vago sen- timento de commetter uma ingratidão e uma atrocidade. E quando o infante partiu para Coimbra, armado por causa do conde de Ourem em Torres Novas, o desafogo e a sau- dade combatiam-se no coração do rei. Era no fim de julho. Em Thomar, D. Pedro, vendo que o não atacavam despe- diu as tropas e seguiu para casa, sósinho com os filhos1, na situação em que o deixámos no capitulo precedente. Á sua partida soou o regabofe, como em monteria, para todas as matilhas desatreladas, depois das corridas atrás dos cervos pelas charnecas vastas. Todos os descontentes, todos os despeitados, todos os cobiçosos, todos os pescado- res de aguas turvas, costumados a ganhar no tumulto de uma mudança de governo, deitavam redes ao mar revolto de Portugal. As calumnias ferviam, a baixeza expandia-se, a ingratidão desabrochava. O regente fora um monstro: delapidara, perseguira, envenenara D. Duarte para lhe suc- ceder, D. João porque lhe fazia sombra, e D. Leonor depois de a ter perdido: pobre senhora! Agora a bondade ingénua do portuguez vinha á superfície, para condemnar o regente, por ter sido o órgão dos ódios populares de outros annos. E levantados n"esta onda de sympathia, apresentavam-se como victimas os antigos creados de D. Leonor, chorando as suas desgraças, pedindo reparação. Havia uma vasta seara a ceifar: os bens dos parciaes do regente davam para todos. Confiscava-se metade de Portugal em favor da outra metade — vce victis! e ficavam satisfeitos os vencedores. O conde de Ourem e o arcebispo de Lisboa, installados na corte, reinavam. A onda da reacção subia, e já se opinava que tantos cri- mes não podiam ficar impunes. Alguns, mais ousados ou mais famintos, pediam a cabeça de D. Pedro. ..ED. Hen- • Pina, Chron. de Affonso V, lxxxix. Alfarrobeira 3i5 riquc? Os cchos d'estas vozes chegaram a Sagres; mas em 1447, exactamente n'esse anno, andava abarbado com o ne- gocio gravíssimo da expedição de Lagos, pelo segundo syn- dicato ou companhia de Lançarote. Apesar disso, veiu a Santarém e defendeu o aceusado, «mas não com aquella força e escarmento que a seu irmão devia e o mundo espe- rava'». Collaborara na regência, era quasi solidário com os seus actos: devia defendel-os, tanto mais que a má lingua o não poupava, envolvendo-o com D. Pedro nas aceusações. Mas D. Henrique tinha na mente a Africa, só a Africa! l*m acto de generosidade podia comprometter o futuro da sua empreza que agora iria por diante, com o sobrinho no thro- no, com a fidalguia attenta a digerir o regabofe. Via-se outra vez em Marrocos, a tomar a desforra de Tanger! Via as ca- ravelas de Lançarote, quem sabe? a dobrarem o cabo da Africa, descobrindo o Preste Joham e as índias! De Ceuta voltava neste momento o antigo alferes de Lis- boa, Álvaro Vaz, conde de Avranches, cuja extravagância era de outro quilate. Fazia gala em dizer cousas desagradá- veis e atrevidas na cara da gente. Proclamava a innocencia de D. Pedro, e a sua amisade por elle, o seu ódio pelo conde de Ourem, máximo dos atrevimentos nesta conjunctura. Era bravo, e andava armado. Sabiam que não dizia palavras vãs, e estava prompto sempre a sublinhal-as com a espada. E o rei que era rapaz, cavalleiro por instincto, e, no fundo, reconhecido e grato ao tio, sympathisava com a excentri- cidade briosa do conde de Avranches. Isto escudava-o con- tra o desejo que todos tinham de o deitar fora da corte. Particularmente, mandaram-lhe emissários aconselhando-o como a amigo a que tivesse juizo, não se perdesse. Elle cha- coteando, respondia: — Amigos, pelo que tenho feito a Portugal, mereço mais villas e castellos, do que prisões ou cadeias. Não fujo, des- enganem-sc. E se for preciso, sabei que hei de ser digno confrade da Santa Jarreteira que recebi. Espero em Deus ' Pina, Chron. de Afonso V, xc. 3i6 Os filhos de D. João I que, sem ociosidade de minhas mãos, os que me quizerem visitar, antes seja na sepultura que nos cárceres ou cadeias. Não tenhaes, pois, cuidado, dó, nem compaixão de mim . . . E despediu-os. No dia seguinte foi ao conselho o mais apurado e janota que pôde, mas por cautela armado. Fal- lou com arrogância e ameaça contra os que pediam a ca- beça de D. Pedro. D. Henrique, ouvindo-o, apoiava. E o rei inclinou para este lado com evidente desgosto dos contrá- rios1. Pela ultima vez a Cavallaria, personalisada no conde de Avranches, ganhava uma victoria, porque no animo de Aífonso V reverdeciam, posthumamente, os ideaes das eras passadas. O conde de Avranches e D. Henrique foram a Coimbra ver D. Pedro, em volta do qual se iam reunindo numerosos parciaes; mas, ao chegarem, chegou a noticia das medidas tomadas em Santarém pelo rei que o conde de Ourem sub- jugava. Prohibia-se a todos os fidalgos irem ver o infante ; publicavam-se éditos para que todos os creados da rainha D. Leonor, que tivessem sido privados de suas fazendas pela regência, viessem rehavel-as; degredava-se o infante da corte, prohibindo-lhe que saísse de suas terras. Era um rompimento completo, um reacção declarada, uma conde- mnação de D. Pedro que a custo saía com vida. O irmão Henrique, vendo as cousas assim paradas, quando viera na esperança de realisar outro accordo, largou para Soure, in- deciso, talvez aborrecido — como iriam as cousas do Lan- çarote?— recommendando resignação e paciência2. Levado pelo Berredo, seu mentor, Ourem não cessava de tramar enredos com que demonstrasse ao rei a felonia do tio e a necessidade urgente de acabar de vez com elle. O primeiro laço foi o termo de concórdia com o duque de Bragança, que mandaram a D. Pedro, assignado pelo rei, i Pina, Chron. de Affonso V} xci. 2 Ibid.f xcn. Alfarrobeira 3 1 7 na esperança de que o infante, suppondo-lhe a alma tam- bém accesa em ódio, o repellisse. D. Pedro, pessimista ou desdenhosamente, assignou e devolveu. Como se havia de proceder contra elle? Que remédio senão rasgar as cartas, já escriptas, chamando ás armas as terras do reino?. . . De- pois tiraram ao conde de A.vranches o castello de Lisboa, que tinha desde 1439; e ao filho de D. Pedro o cargo de con- destavel, que Ourem dizia ter-lhe sido roubado e reclamava para si. Tão longe não foi o rei, pois deu-o ao infante D. Fer- nando, sem annuir a concessão ião feia. Finalmente, exigi- ram a D. Pedro a entrega das armas que tinha ainda da expedição a Castella, em 1445-, mas a isto o infante sensa- tamente respondeu que as não dava por necessitar d'ellas para sua defeza. Daria, se quizessem, o valor em dinheiro1. O conrlicto acirrava-se. Pois não haveria meio de des- manchar o equivoco e trazer a paz ao reino? Havia: se houvesse abnegação e patriotismo, em vez de astúcia audaz por um lado, e tibieza insensata pelo outro. Entre ambas, D. Pedro estava condemnado a naufragar. A ver se pacifi- cava as cousas, o conde de Arrayolos, futuro herdeiro do ducado de Bragança, veiu de Ceuta para onde o governo de D. Pedro o mandara, havia um anno, por fronteiro. In- stava pela reconciliação com o pae e com o irmão-, instava com D. Pedro para que viesse á corte defender-se2. O in- fante escreveu-lhe de Coimbra uma longa carta que é um novo e eloquente documento do seu caracter. «Não curo de fazer aqui menção, dizia D. Pedro, dos feitos do começo de meu regimento, e de como me houve com elle . . . porque de todas estas coisas haveis comprida informação, assas seria sobejo escrever-vol-o. . . E de assim eu ter o dito regimento, segundo bem sabeis, alguém não eram contentes: uns com inveja, outros por se não fazer d'elles cumprimento de direito e justiça; ainda que assas claro é que não se fazia d?elles assim cumprimento, como ' Pina, Chron. de Affonso V, xcwi e iv. 2 Ibid., xcv. — Sousa, Hist. Geneal. tom. v, i3q, seg. 3i8 Os filhos de D. João I era razão, por eu mais não poder». Começaram por indis- pôl-o com o rei, fazendo acreditar a este que queria eterni- sar a regência. «A verdade disto, é porque eu havia certo que alguns andavam n'aquelles tratos, eu dizia por vezes, assim como uma vez em Évora, que eu sabia bem parte dos ditos tratos em que alguns assim andavam: mas que eu tinha o regimento da mão d'el-rei meu senhor, e que quando elle quizesse eu lh'o deixaria livremente com muito boa vontade; mas que pelo d^quelles que nos ditos tratos andavam que o não deixaria; e elles affirmaram que eu di- zia que por coisa que fosse que nunca o deixaria; e assim como isto retorciam qualquer coisa que eu dizia ou fazia, adereçando-a ao seu máo propósito, por fazerem entender ao dito senhor que aquella era minha intenção. «Tanto continuaram isto os que assim me desamavam por si e seus ministros e adherentes, que fizeram com o dito senhor que me requeresse o regimento; e foi entre elle e mim concertado que para o mez de outubro que ora pas- sou, que então era por vir, elle tomasse mulher e casa e que eu depois lhe entregasse o regimento com a solemnidade própria do caso.» Oppozeram-se os inimigos a que a entrega da regência se fizesse de modo que parecesse approval-a o rei: queriam um rompimento, e pretendiam que a regência se entregasse antes das bodas, de certo para ao depois im- pedir que estas se chegassem a realisar. El-rei a final recla- mou-lhe a regência e elle entregou-lh'a. «Logo o duque meu irmão, vosso padre, transmontado como se houvesse de fazer alguma grande cavalgada, se veio de Chaves á cidade do Porto, tendo já n'ella homens d'armas escondidos, lançando fora d'ella mui deshonrada- mente os meus, que ahi se viram assim como se fossem malfeitores; e isto mesmo mandou fazer em Guimarães e em Ponte de Lima, derribando as casas de Leonel de Lima por ser meu servidor, assim como se fossem de traidor. E quando os lançavam fora das villas, chamavam-lhes trai- dores, velando e roldando as villas e castellos sem causa e sem razão, assim como se tivessem inimigos no reino.» Alfarrobeira 3ig Proscguc a enumeração das tropelias, contando como se tinham visto e o que tinham combinado, el-rei c o conde de Ourem, c como se retirara para suas terras. Manda-lhe o treslado da carta em que el-rei approvava todos os actos da regência. «Vendo eu como os ditos feitos assim mal começavam. . . mandei perceber alguns meus para o dia da minha partida para haverem de ir commigo, e assim por esta guisa e com este galardão parti da corte do dito senhor, e logo de Tho- mar mandei tornar aquella gente que commigo vinha; e vindo-a aquém de Thomar houve uma carta porque me cer- tificavam que o duque vosso padre passava poderosamente por minhas terras, e que mandava que a certo dia lhe ti- vessem prestes de jantar em Avellans; pelo qual eu mandei avisar alguns meus que viessem para mim, porque lhe queria contrariar a passagem por semelhante maneira e logo na- quelle mesmo dia foi certificado que não era assim: pelo que logo escrevi aos que mandara chamar que não viessem, em tanto que alguns houveram primeiro as cartas que não vies- sem que as do chamamento.» Retirado em Coimbra, os seus inimigos desacreditavam- no por todos os modos, no espirito do rei, «e lhe fizeram tomar tanta suspeita contra mim e contra os meus que lhe disseram que não tinha remédio senão tirar todo los officios que os meus tinham em sua corte e em seus reinos; e fo- ram logo lançados fora dos officios os meus criados que andavam em sua casa, e isto com assas e muita infâmia delles, e assi pelo conseguinte foi feito aos outros meus criados por todo o reino». Tiravam-se inquirições e devassas contra os servidores de D. Pedro e «andando de mal em peior assim fizeram devassar contra mim perguntando se sabia quem fizera a peçonha com que mataram el-rei D. Duarte e o infante D. João, meus irmãos, e a rainha D. Leonor; e d'ahi per- guntavam outras coisas segundo suas damnadas e corruptas intenções». As testemunhas eram peitadas, os juizes inimi- gos. Ao mesmo tempo, revogavam-se os actos do governe 32o Os filhos de D. João I de D. Pedro, julgavam-se de novo os processos crimes, or- denava-se aos fidalgos que não visitassem o ex-regente, e a este prohibia-se-lhe voltar á corte: estava degredado. Depois d'isto mandaram-me «uma forma de concórdia entre mim e o duque vosso padre, a qual me el-rei meu se- nhor mandou assinada por si e sellada com o seu sello; e mandou com ella a mim e ao duque que, posposto o ódio e má vontade, fossemos amigos». «Vos crede verdadeiramente que elles se não moveram a ordenar a concórdia na forma em que vinha com boa in- tenção; nem tinham tão boa vontade de sermos concorda- dos como o eu tinha: somente por me tentar e tomarem achaque contra mim. «Pêra esto não acharam quem enviar sobre ello senão D. Fernando e Ruy Galvão que me diffamavam; e porque eu aquello soube, escrevi a el-rei meu senhor, pedindo-lhe de mercê que não mandasse a mim semelhantes homens; que ainda que eu fizesse todo o bem do mundo, elles o reputa- riam sempre pelo contrario: e o dito senhor não quiz mu- dar seu propósito.» Apresentada a concórdia, assignou-a D. Pedro; mas ao mesmo tempo ordenavam que os castellos e villas armas- sem como se houvesse guerra. «Continuando outrosim em suas boas obras, por me fazerem deshonra, tiraram o cas- tello de Lisboa ao conde de Avranches». O conde de Ou- rem requeria a el-rei o omcio de condestavel, que era do filho de D. Pedro, dizendo pertencer-lhe. «Muito honrado conde amigo: o que principalmente da- mnou estes feitos, é quererem em estes reinos usar das prati- cas de Castella, e todos por seu proveito e por cada um levar a sua enxavata; e Portugal segundo bem sabeis não é para supportar isto; e se esta pratica vai adiante, segundo se agora começa, nunca creio que seja muito serviço, nem d^l-rei meu senhor, nem de seus reinos1.» i Sousa, Hist. Geneal., tom. v, 120 a 39. A carta é de 3o de dezembro de 1448. Alfarrobeira 32 1 Os esforços do conde de Arrayolos foram em vão. Ou por se convencer da inutilidade d'elles, ou porque os intri- gantes urdissem noticias aterradoras de perigos que Ceuta corria, como diz a chronica1, o facto é que voltou para Africa, deixando em plena ebullição o revolver de intrigas dirigidas para acabar com o infante D. Pedro. A maré que havia de afogar o ex-regente subia; e o conde nem sonhava que essa tormenta viria a dar a catastrophe de 1483 que lhe levou ao patibulo de Évora o filho e exterminou a casa de Bragança, tenazmente construída pelo avô. Com eífeito, D. João II é o continuador da politica anti-feudal do infante D. Pedro, da mesma forma que é o continuador da politica ultramarina de D. Henrique. N'elle renasceu a alma heróica dos filhos de D. João I. Foi o perfeito príncipe que vingou 1449, passado o anachronismo do reinado de Aífonso V — essa idade dourada em que, segundo as praticas de Cas- tella, cada qual levava a sua enxavata2. N'esta longa defeza do regente, em que a sua innocencia transparece, vê-se também, comtudo, o abatimento do seu espirito e o abandono em que se achava. O Porto, que fora o primeiro a acclamal-o, deixa-se arrebatar pelo duque de Bragança, escorraçando como traidores os amigos do re- gente. Lisboa, que tão enthusiasticamente o acclamára, ve- remos como lhe voltará costas, renegando-o. Bem fizera em não querer a estatua na portada dos Estáos! N'esses dias passados, todavia, o regente ainda tinha a força de animo bastante para a critica amarga e para o humorismo melan- cólico. Agora, inferior á sua desgraça, não em caracter, mas em intelligencia, a lucidez do espirito desapparece, e a mão treme-lhe de certo ao escrever ao conde de Arrayol- los, com medo d'essa morte que não temera, com receio d'esses juizes de que desdenhava. A natureza animal e o instincto orgânico levantavam-se-lhe no animo, envolvendo ' Pina, Chron. de Affonso V, xcv. 2 Provavelmente synonymo de enxavego ou enxavega, espécie de rede.— Cf. Viterbo, Elite, ad verb. 322 Os jilhos de D. João I em nuvens a sua antiga consciência diaphana. Em vez de julgar, defende-se; o estylo ainda é lúcido, mas a firmeza do pensamento e a penetração do conceito foram-se. Vê-se ali um homem perdido, não pela força dominante dos inimigos, pois muitas vezes os vencidos são vencedores, mas porque o clamor da derrota enche-lhe os ouvidos e estonteia-o. Treme de que o ataquem, anda armado, e chama para a volta de si os seus parciaes, confessando lealmente depois que foram vãos esses sustos quando pensou que o duque de Bragança vinha atacal-o. Não se lembra, já não pôde reco- nhecer, que erros d'esses, em mãos inimigas, se tornam armas para o perder no conceito do rei, pouco perspicaz. A Coimbra chegavam entretanto correios dizendo que o duque de Bragança passara o Mondego em armas, e vinha descendo a estrada que ladeia pelo norte a serra da Estrella. El-rei chamára-o effectivamente á corte; e o conde de Ou- rem aconselhára-o a vir em armas. Tendo de passar pelas terras de D. Pedro, era certo que este lhe resistiria; e fa- zendo-o, elle Ourem e o rei iriam do sul também contra o infante, liquidando-se finalmente o pleito. Estava, ao lado de D. Pedro, Álvaro Vaz; faltava-lhe, porém, o irmão Henri- que, ultimo dos filhos de D. João I com que podia contar: os três outros levára-os a morte! Mandou chamal-o a Thomar, onde o tinham as obras da reedificação do convento de Christo1; mas D. Henrique respondeu com evasivas, pro- mettendo conselhos, recommendando prudência e cautela, dizendo que fallariam quando fosse — e não veiu2! Curvado i O mestrado de Christo fora transferido, de Castro Marim, no Al- garve, para Thomar, muito antes de D. João I o ter doado ao infante D. Henrique. Foi, porém, este que reconstruiu e ampliou a primitiva igreja e convento de Gualdim Paes. — V. Escript. da. Ordem de Christo, ms. de Pedro Alvares Secco; da biblioth. nac. — Cf. Rackzynski, Les arts en Port., 846. 2 Pina, Chron. de Affonso V, xcvi. Alfarrobeira 323 pela desgraça, sob o peso do isolamento, que é a carga mais dura de soffrer, D. Pedro suecumbido abraçava-se ao conde de Avranches, cuja Cavallaria nobremente simples lhe indi- cava os partidos extremos — uma cavalgada, uma aventura: a guerra e a morte alegre! Mandaram, portanto, um parlamentario ao duque de Bra- gança, que chegara a Coja, descendo o valle do Alva. Era abril de 1449. Todos os dias D. Pedro esperava a chegada do irmão, contando que, intervindo elle, as cousas mudariam de rumo; e entre esta esperança e o conselho extremo do conde de Avranches, a sua alma despedaçava-se, a intelli- gencia fugia-lhe, a confiança na justiça e na ordem absoluta dissipava-se, deixando-lhe o espirito afogado i^uma tristeza negra feita de duvida. O parlamentario voltou com um emis- sário do duque e com esta resposta pérfida: «O duque e D. Pedro sempre tinham sido bons amigos; vinha cumprindo as ordens de el-rei; seguia por estrada publica, e estava certo de que não lhe fariam mal». Irritado, D. Pedro respondeu: — Se o duque não mudar de propósito, dizei-lhe que o não deixarei passar. Não sou tão néscio, nem elle tão avi- sado, que me enganem essas dissimulações. Ainda tinha nos lábios o leve tremor do desdém, mas os cantos da boca dobravam-se-lhe com indicio de ira, signal certo de abatimento do seu génio phleugmatico. E D. Henrique?. . . O emissário do duque foi com a resposta, e tomavam-se as providencias para a guerra, quando chegou de Santarém um enviado do rei que, por conselho do conde de Ourem, intimava o infante a deixar passar o duque, chamado a ser- viço da coroa. Vendo assim desembainhada a espada do seu supplicio, o infante pulou de raiva. Recônditas cellulas de génio portuguez bravio fizeram talvez explosão, depois de comprimidas e atrophiadas largos annos pela expansão dominante das faculdades criticas. A cólera dos phleugma- ticos é sempre loucura; e se não era uma nova mentira o que o enviado do rei foi dizer para Santarém, conforme geralmente se julgou, D. Pedro, fora de si, teria exclamado 324 Os f, lhos de D. João I que não era vassallo de el-rei de Portugal, mas súbdito e ser- vidor de Castella; que assim como desterrara D. Leonor, assim lhe faria aos filhos ... O conde de Ourem, satisfei- tíssimo, soprava o fogo, vendo as cousas responderem aos seus planos. Mandou espalhar por todo o reino esta con- fissão de felonia, que tornava o infante um homem per- dido. E emquanto isto se passava na corte, chegava a Pe- nella, onde D. Pedro congregara as suas tropas, o bispo de Ceuta, mandado por D. Henrique. O irmão dizia-lhe que deixasse passar o duque, pois o ordenava el-rei. D. Pedro, scismando na vinda do bispo, respondia distrahidamente: — Deixo, sim; mas é mister que não venha em som de guerra . . . O bispo foi-se. D. Henrique já tinha partido para Santa- rém, dando costas a Coimbra. D. Pedro sentia a cabeça es- vasiar-se-lhe. Aquelle abandono do irmão, em taes circum- stancias . . . Lembravam-lhe as palavras de D. João, quando a rainha o quizera fazer regente, e casar o rei com a filha d'elle: — Nunca Deus queira, nem quererá, que entre os filhos de el-rei D. João seja semeada tal sizania . . . E verdade que D. João não tinha os cuidados da Guiné, nem a cabeça tomada pelos planos de Marrocos. Singular! Entre filhos de um mesmo ventre, educados pela mesma mãe! Parecia-lhe que era noite, porque tinha o cérebro tol- dado de negro. Parecia-lhe que os campos e as arvores ro- dopiavam, porque as sombras vagas das idéas dançavam- lhe na cabeça. Abatêra-se-lhe de repente toda a ira; estava n^im espasmo de inércia apathica, sem saber se ia morrer. . . quando na estrada surgiram a galope os cavallos da embai- xada que o sobrinho lhe mandava de Santarém, ordenan- do-lhe que regressasse a Coimbra, d'onde não sairia sem licença, e que deixasse passar o duque de Bragança. Res- pondeu, serenamente: — Venha elle em paz!1 1 Pina, Chron. de Affonso V, cxvn a cix. Alfarrobeira 325 E abrindo-se-lhe os olhos, como quem sáe do torpor de um sonho, agitando-se, nervosamente excitado, sem bem coordenar os movimentos e as idéas, alternando o Ímpeto com o abatimento, violento e submisso, leoninamente fero e meigo como pomba: em vez de ir para Coimbra, conforme o rei ordenava, subiu para a Louzã. Pela primeira vez deixava de raciocinar o que fazia. O duque de Bragança conservava-se em Goja. D. Pedro avançou da Louzã a Yil- larinho, meia légua para nordeste, pelas alturas sobranceiras ao valle do Coura precipitado desde o pico do Açor, nas cumiadas da serra da Estrella. Em Coja, sobre o Alva que desce recolhendo os caudaes dos montes para os trazer ao Mondego, o duque assentara n'um logar forte. Entre as po- sições dos inimigos nos dois confluentes do Mondego, o Alva e o Coura, haveria umas cinco léguas de distancia, muito augmentadas, porém, para a marcha pelos tormentos do terreno, degraus Íngremes em que a serra vae subindo até aos picos da Estrella e do Açor. O ponto de Villarinho, onde se fortificara' D. Pedro, fechava a passagem ao duque. Ficava-lhe á direita o grande fosso do Mondego, á esquerda a muralha gigantesca da serra. O choque era inevitável; ou o duque havia de regressar, subindo o valle do Mondego, pelo caminho por onde descera. A cavallo, D. Pedro, em frente dos seus esquadrões, fal- lou-lhes. Alto, magro, phleugmatico, as vicissitudes dos úl- timos tempos, collaborando com os annos — fazia n'essa data cincoenta e sete — tinham-lhe encalvecido a fronte, branqueando-lhe a sua farta barba loura. O azul dos olhos, sempre vago, oscillava agora n'uma indecisão completa. Pa- rada a physionomia, como de um somnambulo, a voz em que fallava aos seus tinha alguma cousa de espectral, e o que lhes disse parecia uma confissão tumular. Amrmando a sua fidelidade ao rei, punha n'ella os fundamentos da sua des- obediência. Lembrava os seus dez annos de governo, em que honesta e lealmente defendera a coroa dos assaltos da gente ávida, e o reino da guerra estrangeira. El-rei era uma creança, e andava enganado. A fúria dos seus inimigos vi- 32Ò Os filhos de D. João I nha de lhes não dar, nem consentir que el-rei lhes desse o que queriam — que era o reino inteiro! Saíra da regência como para lá entrara. D. Affonso tinha o Porto e Guima- rães, Bragança de que o fizera duque: nada era capaz de o saciar! O dever impunha-lhe a resistência. Ceder seria deslealdade. O ideal da Cavallaria que se humanisára na descendência de D. João I fallava, nas agonias do fim, pela boca de D. Pedro também na véspera de morrer. Era uma compre- hensão generosa e heróica da vida, pondo os princípios da honra pessoal e da dedicação á palavra, acima dos interesses e necessidades do mundo. O commum da gente fizera disso uma religião fundada no symbolo material do juramento; mas os espíritos superiores, ou pelo sentimento, como fora Nunalvares, ou pela intelligencia, como D. Pedro fora tam- bém — porque já se podia dizer acabado! — estabeleciam essa religião do dever sobre o alicerce intimo das revela- ções da consciência. As tropas de D. Pedro ouviram-no com um silencio fú- nebre, mensageiro de morte. A gravidade dos semblantes, a mudez das bocas, attestavam a decisão das resoluções. Sentiam-se votados todos a um igual destino, e mal sabiam que a historia havia de ver n'este momento um dos seus in- stantes épicos, porque era o choque do velho mundo na- turalista e bárbaro da Idade media, com a Cavallaria que nascera d'ella, flor de ideal sempre desfolhada e morta. A realidade não consente que as intuições poéticas da alma humana vinguem, sobre os seus sentimentos e instinctos ani- malmente orgânicos. Para esmagar a turbulência do natu- ralismo mediaval, era mister cousa diversa da Cavallaria: carecia-se da mão de ferro dos tyrannos e da energia de um systema adequado e pratico. Foi isso o principado monar- chico da Renascença, e o tyranno em Portugal chamou-se D. João II... A frente dos esquadrões, com o conde de Avranches a seu lado, D. Pedro avançou mais, obra de uma légua, so- bre Serpins, porque do lado opposto o duque de Bragança Alfarrobeira 327 descera até á Várzea, obra também de três léguas. No valle do Coura, D. Pedro a jusante, o duque a montante, esta- vam menos de uma légua afastados. O duque, hirto nos seus setenta e dois annos, perguntava, com certa hesitação, se queriam combater, ou retirar. — Recuar seria injuria, acudiu com enfado Álvaro Pires de Távora-, sois inimigos, combatamos. Escusam-se mais palavras e dissimulações. Do lado opposto, Avranches, que saíra com uma escolta, a reconhecer o campo adverso, voltou inflammado. — Demos-lhes! ou fogem, ou são destroçados. Mas D. Pedro, obedecendo ainda ao fio já ténue da luz que pouco a pouco se lhe apagava na alma, respondeu: — Não; o nosso mister é a defeza. Oxalá retirem sem combater. O duque de Bragança não confiava na sua gente, entre a qual havia murmúrios. A sympathia, impotente para ven- cer, tem isto de consolador: que dá aos vencidos a desforra platónica do respeito intimo, embora inconfessado, dos pró- prios vencedores. E ás vezes, como agora succedeu, a sym- pathia é tão forte que triumpha. O duque adquiriu a con- vicção de que não podia contar com os seus. Muitos secre- tamente eram por D. Pedro; quasi todos cuidavam que iam em jornada por entre amigos. Tinham medo: e esta fraqueza é commum, quando a consciência não dorme tran- quilla. Desde que avançara até á Várzea, o duque de Bra- gança mettéra-se n'um fundo de sacco. Não podia retirar, porque as povoações tinham destruído as barcas para a passagem do Alva, que ia cheio np primavera com o der- reter das neves da serra. Não podia combater, porque as tropas debandariam. Via-se á mercê do homem a quem se propunha matar. Portanto, apesar do desaire e da idade, fugiu, abandonando os seus. Com um punhado de cavallei- ros, de noite, metteu-se á serra. Seguindo as picadas, guiado por pastores errantes, n?essas alturas cobertas de neve, onde o frio é vivíssimo e o ar raro, os setenta e dois annos do duque gemeram. Pelo Alvoco, deixando á esquerda o cume 328 Os filhos de D. João I esbranquiçado da Estrella, foi sair á Covilhã; mas softreu tanto, que nos doze annos que viveu ainda, nunca mais pôde endireitar a cabeça. Retesaram-se-lhe os tendões do pes- coço, e essa attitude ficou para attestado da humilhação que soffrêra. Quando se viram abandonados, os homens do duque de- bandaram, correndo tresmalhados pela serra, com o medo constante de que D. Pedro os viesse perseguir. Levavam todos o mesmo norte: galgar os montes e recolher-se á Co- vilhã que era do infante D. Henrique. Mas os cavallos ge- lavam, as bagagens perdiam-se. Em Albergaria, lá pelos altos, morreram alguns de frio. Os de D. Pedro queriam perseguir os fugitivos: elle não o consentiu. Avranches pra- ticamente lhe aconselhava, com as rebollarias do costume, que prendesse o duque: «Quem o inimigo poupa, nas mãos lhe morre»; mas D. Pedro recusou-se também a isso. Em- bora «quanto mais alongasse a vida d,elle, tanto antecipava a sua morte1», foi excellente que assim praticasse; porque, vivendo, não deixaria acaso um tão bello exemplo da no- breza da Cavallaria. Raiava pela loucura um proceder as- sim, não ha duvida; mas todos os motivos deliberantes dos actos humanos parecem doidices quando excedem o nivel médio do commum das cousas. A santidade confunde- se com a loucura; todavia são esses píncaros da vontade ideal que servem aos homens de critério e luz por onde se guiam. D. Pedro, innocente, fazia como se a innocencia devesse reger e vencer. Depois do erro pratico de deixar fugir o duque, a lógica mandava-lhe licenciar as suas tropas, e fel- o, encerrando-se no seu palácio de Coimbra com a fa- mília e os livros. Dobrado sobre o bufete em que sua filha D. Filippa trabalhava, perdia-se a scismar vendo o pincel da infanta correr sobre o pergaminho, traçando as preciosas illuminuras das Homilias dos Evangelhos, que em testa- mento veiu a legar ao convento de Odivellas2. Avranches ; 1 Pina, Chron. de Affonso V, c a cv. 2 Comm. de Juromenha, em Rackzynski, Les arts eu Portugal, 206 Alfarrobeira 3 2 g cuja Cavallaria era pontualmente pratica, dizia-lhe que en- doidecera; e abraçava-o, chorando, entre ditos ou rebolla- rias, preso a elle como a hera quando se enrosca n*um tronco rugoso de ulmeiro : a hera sempre verde, em cujas fo- lhas metallicas as gottas de orvalho tremem como lagrimas diamantinas. A candura é alegre. Nada ha tão forte como a limpidez da consciência. E com a força e com a alegria, o homem fica invulnerável aos golpes do destino inimigo. Que importava que o duque de Bragança colligisse na Covilhã os farrapos das suas tropas, e se apresentasse em Santarém, na corte, como vencedor — se ia de cabeça baixa, não podendo erguer o pescoço? Nem por isso a sua lingua, e as bocas do conde de Ourem e dos seus cantavam menos a grandeza do duque, a piedade generosa com que deixara de esmagar D. Pedro: esse traidor que ousava desobede- cer a el-rei! No conselho, as aceusações iam desbragadas, a ponto de D. Henrique intervir colérico: — Não consinto se diga que nenhum filho d^el-rei D. João faz injuria a seu rei e senhor! Passava no ar a sombra do infante D. João?. . Passou, fugiu, dissipou-se; e a alegria sentida por muitos, julgando que D. Henrique poria a final ordem nas cousas, dissipou-se também, vendo-o cair de novo na passividade apathica de que saíra por um momento apenas. A energia do seu animo gastava-a toda em outros motivos. Varrido o susto, a camarilha, inteiramente senhora do rei, deu largas ás suas paixões, clamando vingança e justiça, com os olhos postos na immensa presa a dividir. Proce- deu-se com energia c rapidez. A fuga do duque fora na véspera de Ramos; e na véspera de Paschoa chegavam a Coimbra as intimações do rei, declarando D. Pedro desleal, e mandando fazer-lhe guerra. Na semana santa de 1 | \g houve uma segunda paixão: crucificaram o infante inno- cente — que despediu o emissário do sobrinho e genro, di- zendo appellar da sentença para a consciência do rei. O rei, com os seus dezesete annos, tinha ainda a consciên- cia pouco lúcida: nunca a teve a final muito mais! Prepara- 33o Os fi 'lhos de D. João I va-se para a guerra, e distribuía os bens e officios dos que eram por D. Pedro a quem vinha pedir-lhos1. E vinham em procissões! O filho do infante, D. Pedro também, não fora desapos- sado ainda do cargo de condestavel que o pae lhe dera com o mestrado de Aviz. Tinha a comarca de entre o Tejo e Guadiana e as praças de Elvas e Marvão, por onde as más línguas diziam que haviam de entrar os castelhanos de D. Álvaro de Luna e do mestre de Alcântara, a soccorrer D. Pedro. Tal foi o pretexto para o rei mandar contra o fi- lho do infante o conde de Odemira, que tinha Fronteira, e que obrigou o condestavel a emigrar, passando a Castella, a abrigar-se em Alcântara sob a protecção do seu mestre2. Também esta provocação á guerra civil falhou, e a lentidão da vingança exasperava a camarilha odienta. Não recuando perante nenhum processo, usaram da mocidade da rainha para fazerem d^lla o algoz do pae. Foi D. Izabel quem n'uma carta lhe participou como o conselho sentenciara contra elle a morte, prisão perpetua, ou desterro para fora do reino-, e como o rei partiria de Santarém em armas no dia 5 de maio. Recebendo publicamente a carta da rilha, sua condemna- ção cruel, D. Pedro, sentindo «a morte começar já a bater ás portas da sua vida», apertou o papel nervosamente nas mãos, e houve um momento de silencio. Ao emissário por- tador da carta pediu noticias da saúde e disposição de el- rei. Em seguida sentou-se á mesa, e comeu serenamente; depois da mesa, começando o conselho, sem poder mais, largou n\]m choro largo, levantando os olhos ao céu: — Minha tenção é a morte... Desterrado não será um filho d'el-rei D. João. . . para andar minha velhice por ter- ras estrangeiras. . . Preso aos cincoenta e sete annos! Con- sentir ferros de justiça em minha carne! 1 Pina, Chron. de Affonso V, cvi e vir. 2 Ibid., cvm. Alfarrobeira 33 1 Pedia, emfim, que o aconselhassem. Pensassem todos no que havia a fazer. A sua idéa era partir de Coimbra no próprio dia 5, em que el-rei partia de Santarém, e ir abrir- lhe os olhos, esmagando os inimigos, não com armas, mas com a força da evidencia. . . A lucidez do seu pensamento perdèra-a com os balanços demorados d^ste naufrágio. Emmaranhava-se em chimeras, deixava-se ir no encalço de utopias. Queria abrir os olhos ao rei, e era elle, o des- graçado, que os tinha vendados pela cegueira... Triste- mente, os companheiros se afastaram silenciosos, guardando para o dia seguinte emittir o seu voto, conforme os desejos do infante. Sentiam-se tomados de uma commiseração fú- nebre. Uns opinavam que se não devia ir procurar a morte, bastava esperal-a: fortificassem-se em Coimbra, Penella e Montemor, e n'esse trilatero seriam invenciveis. Em ultimo caso, Buarcos ficava á mão para fugir por mar; mas tal hypothese não se daria, porque o rei não tinha forças bas- tantes para os cercar, e o tempo desenganaria a todos. El- rei era uma creança; aprenderia com os annos. Outros, em opposição, diziam ser deshonra esperar o cerco, mormente para cavalleiros da Jarreteira: fortificasse o infante os seus castellos, retirasse sobre o Douro onde colligiria reforços; com elles passasse á Beira, de lá a riba Guadiana, ás ter- ras do condestavel seu filho. Isto bastaria para dar juizo aos inimigos. 0 conde de Avranches, porém, emittiu uma opinião á parte. Antes morrer grande e honrado, exclamou, do que viver pequeno e miserável! Armassem-se, e fossem a San- tarém em força intimar o rei a que ouvisse o infante, e dis- sipasse as falsidades e enganos. E se el-rei não quizesse, morressem todos no campo como bons e leaes cavalleiros. D. Pedro opinou serenamente pelo voto do conde1. Estava, pois, lavrada a sentença pelo accordo d'esses dois homens, em quem a Cavallaria, dominando n'um a vontade, no outro a intelligencia, ambos arrastava a uma positiva 1 Pina, Chron. de Affonso, V, cix a cxi. 332 Os Ji lhos de D. João I loucura. Para Álvaro Vaz, a Cavallaria era o voto de obe- diência absoluta e completo sacrifício, incluindo a própria vida, aos dictames da consciência pratica, principalmente representados pela homenagem feudal e pela confraterni- dade guerreira. Para D. Pedro, a Cavallaria era um voto análogo aos preceitos da consciência ideal, principalmente representados também pela lealdade absoluta, pela fideli- dade sem mancha, aos principios da sua religião da nobreza intellectual do homem. Pela Cavallaria, actuando sobre a vontade e sobre a intelligencia, tinham chegado, um ao hu- morismo, outro á apathia; e agora que a crueldade das cou- sas os precipitava numa crise, encontravam-se ambos abra- çados n'uma loucura commum. Tanto, nas suas culminações mais subtis, o saber se confunde com a ironia, demonstrando a inanidade das cousas! É que o idealismo, quer se chame Cavallaria, como no século xv, quer Jacobinismo, como no nosso se chama po- pularmente ás abstracções radicaes da politica, é um des- vairamento do espirito pratico, por isso mesmo que é uma verdade da rasão abstracta. A arte grega, com aquella im- comparavel subtileza de observação que a distingue, notou que na natureza não ha linhas absolutamente rectas, e por isso as baniu das suas regras estheticas. Todavia a linha recta existe, e é, portanto, uma verdade; mas existe e é verdade unicamente como abstracção racional. O mesmo succede no mundo. Toda a realidade consiste em linhas mais ou menos curvas, que, todavia, têem em si a ambição e a virtualidade da recta. E para todo aquelle que no mundo quer representar um papel, obedecendo aos impulsos do de- ver moral que nos impõe a obrigação de cooperar ou de di- rigir os nossos similhantes, para todos esses é forçoso cur- varem-se ás condições da realidade. Querer despedaçal-a, para a fazer conforme ás linhas ideaes da rasão, é uma lou- cura, mas que em dados casos pôde ser sublime e aben- çoada. É, porém, uma abjecção, é a ruina da nossa inteira liberdade, deixar que se apague dentro de nós esse pharol da rasão absoluta que unicamente pôde guiar-nos nas vere- Alfarrobeira 333 das obscuras da vida, e sanecionar os actos exteriormente contradictorios a que a realidade nos obriga a submetter-nos. Eis ahi a distineçao e a analyse que não faz o idealismo. Arrebatado pelo clarão da luz, cega-se, e, como borboletas esvoaçando em torno do foco, incendeia-se n'elle. A isto com rasão se chama loucura, porque tal nome convém a todas as aberrações do espirito. E essa espécie de loucura, a que Cervantes deu o nome eterno de quixotismo, referido á própria cavallaria do século xv, é a mesma que assaltou nos nossos tempos os espíritos desvairados pelo ideal, e que, por verem com os olhos da rasão um mundo de verdade, belleza e bondade absolutas, cegaram dos olhos positivos para a realidade tal e como existe. A catastrophe é inevitá- vel para o quixotismo, quer seja vencido, quer vença. E a historia está, com efteito, cheia de episódios heróicos, em que o espirito pratico apparece transitoriamente esmagado. Inevitável, e maior ainda, é a catastrophe quando vence; porque determina as reacções orgânicas, pois outra cousa não são os collapsos suecessores das crises. Para não sair dos tempos modernos, foi um collapso o delirio religioso do monachismo proíelytico, cavallaria ao divino; e foi outro o delirio politico da revolução franceza, cavallaria também do racionalismo e da abstracção philantropica. D. Pedro que tão sensato, tão humano, tão lúcido fora, emquanto podia proceder como critico, perdeu tudo quando chegou a hora da acção n'uma crise; e o conde de Avran- ches, cujo humorismo illuminava com riso os passos mais arriscados, não encontrava também n'este supremo transe mais do que uma solução quixotesca. É que em ambos a cavallaria, tão constitucional que os endoudecera, não era, como para o commum dos homens do tempo, apenas um rito, ou um phraseado similhante aos phraseados dos nossos bons jacobinos de hoje. Abraçados um ao outro, no silen- cio da noite que suecedeu ao conselho, como António e Cleó- patra quando juraram o consorcio da morte1, desvairados 1 Synapothanumenia. — Plutarcho, in vit. Anton. 334 Os filhos de D. João I pela loucura do amor genesiaco, os dois cavalleiros juraram também morrer juntos, allucinados pela doudice da honra. — Conde, disse D. Pedro, sabei que eu sinto já minha alma aborrecida de viver n'este corpo, e desejosa de se sair de suas paixões e tristezas. Pois que as cousas me não obe- decem, determino morrer e acabar inteiro, e não em peda- ços. Pela creação que vos fiz, pela irmandade que commigo mereceste ter na santa e honrada ordem da Jarreteira1 em que somos confrades, e principalmente pela vossa bondade e esforço, quero saber se no dia em que d'este mundo me partir, querereis também ser meu companheiro? — Sou muito contente, respondeu o conde, ter-vos essa companhia na morte, assim como vol-a tive na vida-, e se Deus ordenar que do mundo vossa alma se parta, sede certo que a minha seguirá logo a vossa* e se as almas no outro mundo podem receber serviço umas das outras, a minha n'esse dia irá acompanhar e servir para sempre a vossa . . . E na manhã seguinte, depois de velarem toda a noite, preparando-se para a morte, commungaram christãmente jurando morrer, nas mãos do clérigo que lhes ministrou o sacramento, e protestando não querer offender ninguém, mas só defender com rasão e justiça a honra do infante. D. Pedro estava por terra, de bruços, lavado em lagrimas, ciliciando-se, a accusar-se dos seus peccados2; Álvaro Vaz, de pé, ao lado, comprimia os soluços; no seu altar, o padre abençoava-os. O christianismo foi também uma cavallaria, da alma dolorida, pelo ideal da ventura ultratumular. . . Voltemos agora a pagina, vejamos o reverso da medalha, no que passava em Santarém, em meio da corte, afogada no espirito pratico, sem nenhuma luz de idealismo que a guiasse, e lhe fizesse comprehender o desvairamento trágico dos homens de Coimbra. 1 O infante fora eleito em 22 de abril de 1427, no logar vago pela morte deThomas Beaufort, duque de Exeter, occorrida a 27 de dezem- bro de 1426. — Major, Vida do inf. D. Henrique, p. 117 da trad. port. 2 Pina, Chron. de Affonso V, cxn. Alfarrobeira 335 A rainha, ensurdecida com o tumulto da guerra que se preparava, afflicta com as vozes que em coro pediam a morte do pae, acaso ferida pelo remorso pungente da carta cruel que lhe escrevera, deitou-se de joelhos diante do ma- rido, e lavada em lagrimas pedia-lhe a salvação de D. Pe- dro. Era seu pae, era innocente; lembrasse-se que deshon- rava no avô os filhos que ella lhe havia de dar! Tivesse compaixão! Abrisse, pelo amor que lhe dava, os olhos á verdade . . . — Gomo quereis brandura, voltava-lhe Aftonso V, se elle é tão pertinaz? Reclamei-lhe as armas que tinha, e não rifas deu. Ordenei-lhe que deixasse passar o duque de Bragança, e não o consentiu. Mas, por vós, e só por vós, se elle pedir perdão, dou-lhfo. A rainha levantou-se e tristemente escreveu ao pae, sem esperança. Com effeito, no conselho, apesar do voto em con- trario dos seus companheiros, D. Pedro, decidido a morrer, declarou firmemente que não pedia perdão por não ter de que. Seria confessar-se réu. Isso nunca! — Antes tenham remorsos da minha morte, do que eu vergonha de viver! E acertava. Porque, se o idealismo é uma loucura pra- tica, a dignidade é que determina a linha divisória do mundo interior da rasão e do mundo objectivo da necessidade, mar- cando o limite até onde a curva inherente ás cousas reaes traduz a comprehensão synthetica da vida. Morrer por um ponto de honra, é um absurdo; morrer por uma exigência da dignidade, é um dever alegre. D. Pedro, porém, estonteado como navio que perde o leme no mar tempestuoso, batido pela rajada secca da loucura, tergiversou n\im momento de fraqueza contraproducente. Escreveu á filha pedindo perdão, para condescender com os que o aconselhavam*, mas, obedecendo ao próprio im- pulso que protestava, acrescentou: «Isto, senhora, faço eu, mais por vos comprazer, que por me parecer rasão que as- sim o faça». Taes palavras offenderam com motivo o rei, e decidiram-no a recusar o perdão, annuindo ás instancias 336 Os filhos de D. João I dos conselheiros que em coro envenenavam as palavras de D. Pedro, accendendo a vaidade do rapaz, indicando-lhe que não devia deixar-se guiar por uma mulher. O medo d^lles, era agora a rainha e o amor que o esposo lhe dava. Por isso também voltavam para ahi os seus ardis, procurando desligar d'ella o rei, aconselhando-lhe a caça, pintando-lhe o trato com mulher, na sua idade, como contrario á saúde do corpo e do espirito. Ficaria um ser effeminadamente fraco, diziam os physicos; e os moralistas acrescentavam que esse casamento não fora verdadeiro: não passava de uma concubinagem. A tudo isto, porém, resistia a força do temperamento de Aífonso V, no desabrochar da idade viril. Vendo que remavam errado, a boa gente voltou de norte, inventando amantes á rainha, sacrificando á prisão o cama- reiro mór d'el-rei, Álvaro de Castro, que, provada a inno- cencia, foi solto e em compensação feito conde de Mon- santo1. Todos os dias, correndo, tornavam mais aguda a situação. O conflicto parecia inevitável. Affonso V estava preso n'uma rede que lhe impedia o conhecimento exacto da verdade. Todo o empenho de conciliação morria abortado á nas- cença, como succedeu ao do prior de Aveiro, a quem veda- ram o accesso ao rei2. Já não havia, com efteito, outra so- lução alem da morte! Para lá caminhava de certo o infante quando largou de Coimbra a 5 de maio, de manhãsinha, depois de uma noite que a cidade inteira consumiu em festas e dansas. Levava comsigo os filhos, um milhar de cavalleiros, e o quintuplo em peões com uma grande carreagem de bois e animaes de carga. Ao partir, desvairadamente, fallou ás tropas, di- zendo-lhes que «ia pedir justiça como leal servidor d'el-rei 1 Foi o que casou com a neta de João das Regras e deu origem á casa dos marquezes de Cascaes; v. a nota de p. 182. 2 Pina, Chron. de Affonso V, cxm a cxv. Alfarrobeira 337 seu senhor». Singular campanha, cuja loucura se via nas legendas dos balsões, que de um lado tinham escripto Leal- dade, e do outro Justiça e Vingança. Fúnebre paradoxo este de proclamar a lealdade, saindo a campo como re- belde; e de pedir justiça, gritando por vingança! Vendo um acto de loucura tão consummada, em Santa- rém os inimigos não couberam em si de contentamento. O parecer dos que nos conselhos do infante queriam que se não saísse de Coimbra era o bom, porque, não dispondo o rei de forças bastantes para um cerco, a ameaça apra- zada para o dia 5 de maio não podia cumprir-se. Quando, pois, se soube que D. Pedro deixara espontaneamente o seu covil, e vinha por esses campos fora metter-se na boca do lobo, bateram palmas de contentamento. Para que viria o infante, senão para atacar el-rei? Era fácil fazel-o crer a Affonso V. E, todavia, D. Pedro não vinha hostilmente : ainda guar- dava uma secreta esperança de que os olhos do sobrinho se desvendariam para ver, e os seus ouvidos se abririam para ouvir. Mas a esperança, a lealdade, o amor da morte e o desejo de viver, com a cólera e o desdém soberano pelos inimigos, tudo isto se revolvia confusamente no seu cérebro, já incapaz de coordenar idéas com lucidez. No dia 5 foram dormir á Ega; no immediato, sem entrar em Leiria, pararam na Batalha, onde o povo se amotinou com intentos de resistência que os frades amoravelmente sufíbearam. D. Pedro ouviu missa, e bem com Deus, vi- sitou os túmulos dos pães, já recolhidos para sempre na sua morada de mármore1. Ajoelhou piedosamente, resou, 1 «São dois grandes moimentos tão juntos que parecem hum só. O mármore, muito alvo e fino, lavrados todos em roda de um sylvado de meyo relevo com seus espinhos e amoras e a espaços uma letra francesa que diz: // me plait, pour bien. . . Sobre os moimentos pare- cem dous corpos deitados, do mesmo mármore, lavrados de relevo in- teiro, hum dei Rey, que está armado de todas as armas, salvo as da cabeça, e o outro da Rainha que fica á mão direita dei Rey, e estão travados pelas direitas. As cabeceiras d'estas sepulturas ficão pêra a 338 Os filhos de D. João I fallou-lhes, com a certeza de que muito breve para ali viria também dormir em companhia. Singular rebelde, estranho campeão! Da Batalha foi a Alcobaça, onde também os frades o re- ceberam de braços abertos. Já de Santarém tinham largado corredores ao seu encontro. De Alcobaça partiu direito a Rio Maior, deixando a estrada de Lisboa. Ia resolver-se a direcção que haviam de tomar. No conselho reunido em Rio Maior, as opiniões foram quasi unanimes no sentido de uma volta a Coimbra. Não se devia ir mais adiante : a honra estava salva. Quem se atrevera a cumprir a ameaça de o atacar? Enviar emissários a Santarém, não, porque nada se podia fiar de um rei tão creança. Proseguir, tam- bém não, porque era accentuar o caso de rebeldia. Alem d'isso, ir plantar o arraial nos arrabaldes de Santarém, em meio dos olivaes, seria um crasso erro, pois, se lh'os der- ribassem na retaguarda, ficavam sem retirada segura nem possibilidade de peleja. Certo era perder-se a gente de pé e a carreagem. Ir sobre Lisboa, também não: traria um desengano cruel. Lisboa já não era a mãe que amamentara D. Pedro, mas sim madrasta descaroavel. A marcha seria indubitavelmente acossada pelas gentes do rei. Raciocinavam todos com o instincto de quem quer viver. D. Pedro não podia discutir, pois ia levado nas azas da morte. — Bem sinto já, respondeu, que estar aqui mais não é necessário, e muito menos avançar contra Santarém: já por tudo o que dissestes, já por parecer que vamos atacar el-rei. Retirar, porém, não quero ! Vamos sobre Lisboa ! Se não vierem a mim, daremos a volta por Loures, Torres porta principal, e em cada huma esculpido seu letreiro, que por serem em demasia largos terão particular capitulo. Fica o altar que dissemos contra os pés das sepulturas, arrimado ás columnas, que sustentão o simborio: por maneira que o altar e sepulturas fazem huma capella particular por si e não pequena no meyo de toda a quadra.» — Fr. Luiz de Sousa, Hist. de S. Domingos, vi, i5; tom. i, 625 e 62G. Alfarrobeira 33o, Vedras e Óbidos, recolhendo a Coimbra, onde esperare- mos a ventura que vier, e a intercessão de D. Henrique e da rainha minha íilha. . . Será verdade que algum homem, levado ao suicídio pelo desespero, ainda no próprio momento de decisão mais for- mal, deixe de ter a vaga esperança de um acaso salvador? Poderão tanto as decisões do pensamento, que abafem por completo os instinctos orgânicos? O facto é que em D. Pe- dro luetavam, e essa lueta era uma das causas da sua lou- cura. Vagamente esperou que o sobrinho viesse lançar-se- lhe arrependido nos braços \ como agora esperava que Lisboa ainda o acclamasse-, como contava ainda com a efHcacia da intercessão de D. Henrique e da filha: pondo a esperança em cada sombra de madeiro que suppunha ver sobrena- dando no mar agitado do pensamento, mesquinhos restos da nau da sua vida sossobrada! Demoraram-se três dias em Rio Maior. Nem o rei correu a pedir perdão, nem veiu recado de D. Henrique, nem da rainha: nada! Uma paz, um silencio, um abandono, que já pareciam de tumulo. . . Agora, o despeito que nos fleugma- ticos desdenhosos é tão forte como as labaredas do ódio nos sanguíneos, juntava-se na cabeça do infante ao tumulto de pensamentos desconnexos que já de antes o endoudeciam. Em vez de seguir para leste, direito a Santarém, no dia iõ obliquou para norte, dirigindo-se a Alcoentre, a caminho de Lisboa, onde a noticia da vinda de D. Pedro provocava tumultos e assassinatos. Dois creados do infante, havidos por suspeitos, tinham sido esquartejados, e os quartos postos para exemplo nas praças da cidade. Bem fizera, quando re- gente, não consentindo que lhe levantassem a estatua na portada dos Estáos! Marchava tristemente a pequena columna, acossada na cauda pelos ginetes e corredores de el-rei que saíram de Santarém logo que o viram partir. Perseguiam-no com ti- ros, mais de lingua que de besta. Ghamavam-lhe desbraga- damente hypocrita e falso, ladrão do povo, traidor, tyran- no; e taes insultos accendiam a ira dos soldados. 340 Os filhos de D. João I — Socego, dizia-lhes D. Pedro, não Se encolerisem. Essas bocas já muitas vezes me beijaram as mãos por mercês feitas . . . Mas, rfelle próprio, a onda da cólera subia, afogando-o. Já se combatia no couce do pequeno exercito, e de uma primeira escaramuça trouxeram os prisioneiros ao infante. Vinha entre elles um creado de D. Henrique. D. Pedro, en- furecido ao vel-o, tomou de um pau, gritando com a cólera fria da gente pensadora: — Ingrato e traidor! E da tua boca era que taes vilezas saíam! Bastava que fizesses o mal com as mãos, não com a lingua! Abateu-o com uma paulada; outros o acabaram feroz- mente. O sangue allucinou de todo o infante que, n'uma fúria, varridamente louco, mandou enforcar ou degolar os mais prisioneiros. Este accesso foi a ultima desillusão. A mais da gente de pé escoou-se de noite pelas veredas das serras; ficaram quasi sós os cavalleiros presos pela home- nagem e lealdade. Ninguém contava senão com a morte. Já de Santarém o rei saíra com trinta mil homens — ta- manho era o susto! — descendo lentamente ao longo do rio, para dar tempo ao inimigo de se approximar de Lisboa hostil. Quanto mais perto d^lla se chocassem, melhor, pois o teriam entre dois fogos. Entretanto D. Pedro seguia de Alcoentre, sempre a sul, direito á Castanheira sobre o Tejo. A direcção das duas forças era convergente. Chegou o in- fante á Castanheira, ainda o rei vinha longe. Acampou, mas o logar era indefensável. As deserções continuavam cada vez mais numerosas. Muitos abandonavam as bagagens para fugir mais leves. Arriscado a achar-se só, com o conde de Avranches que o seguia como um espectro vivo, levantou o arraial. Annunciou que iam a Lisboa, a ver se continha o pânico; mas légua e meia mais abaixo, sobre o ribeiro de Alfarrobeira, logo áquem de Alverca, parou de novo. Não pensava já em entrar em Lisboa; soubera da sorte dos seus creados ; mas ainda vagamente conservava uma ténue es- perança no irmão Henrique. . . Alfarrobeira 341 Uma terça feira, eram 20 de maio, chegou o rei com o seu exercito. Avranches, saído a reconhecer o inimigo, voltou á estacada, confessando que estavam perdidos. Em Alverca o Tejo espraia-se na sua enorme amplidão, alongado para o sul pelas alluviões p/um estendal de juncaes e paúes salgados, lezírias onde pastam as manadas de tou- ros negros. Leves cortinas de salgueiros e choupos fecham distantemente o horisonte encinzeirado. Para aquém, a ex- tensão da várzea é mais breve, limitada ao norte pela cor- dilheira de montes arredondados, em cujas encostas verme- lhas sobresáe o verde-negro da urze charnequeira, lençoes de mato que vem franjar-se nas argillas amarelladas dos contra-fortes. N'essas collinas, mollemente reclinadas sobre a várzea de um torrão pingue e endurecido pela agua e pelo sol, brilham como colmeias brancas as povoações, en- gastadas no verde quente dos pomares e figuciraes e no pardo melancholico das oliveiras com reflexos da côr do aço. Pelos vallados, á beira das azinhagas, os aloés com as folhas metallicas bordadas de espinhos, coroados triumphal- mente de pennachos escarlates, matizam a paizagem, inun- dada por uma luz olTuscante, a que o velario do céu põe uma cúpula gloriosa, azulando os altos dos montes, lá para o longe. O ribeiro de Alfarrobeira desce do norte serpeando pela várzea, encastoado em duas linhas de ulmeiros e choupos que o encobrem, até aos terrenos nús marginaes do Tejo, domínio das cheias, onde corre como uma valia. Junto do ribeiro estava o arraial do infante, cercado já pelas tropas reaes que, decididas a não assaltar, queriam vencer com o medo das trombetas concitando os echos dos montes, e dos arautos e reis de armas que soltavam os mais espantosos pregões, a intimar aos sequazes do infante o abandono do rebelde. Succedia, porém, o contrario : as deserções davam- se do campo real para o de D. Pedro. Nesta indecisão, uns besteiros do rei metteram-se á agua, encobertos com as arvores, e de lá jogavam tiros sobre o arraial. Já havia feridos e mortos. Por outro lado, de um 342 Os filhos de D. João I cabeço próximo, também atiravam. D. Pedro mandou então pôr fogo a umas bombardas que trazia encarretadas, apon- tando ao cabeço; mas a imperícia dos artilheiros atirou uma bomba junto da tenda de Aífonso V. Perante um aggravo d'estes, rompeu o assalto espontaneamente. A peonagem que restava ao infante debandou logo; e D. Pedro apeou- se, vendo chegar o momento por que a vontade suspirava e contra que o instincto se lhe rebellára tanto. Estava leve- mente armado : uma cota, sobre ella uma jornea de velludo cramezim e na cabeça a cervilheira. N'esse instante varre- ram-se-lhe de todo as esperanças na fraternidade de D. Hen- rique. Não acreditou na presença d'elle junto do rei, ao lado dos seus inimigos?1 Oxalá que levasse para a cova esta consolação. Alto, magro, branco, movendo-se espectralmente, com- batia a pé no meio do tumulto. De perto, os filhos fita- vam-no com o espanto interrogador das creanças. . . quando uma setta perdida, ou mandada2, lhe varou o coração. Caiu morto com esta só ferida; morreu com a consolação de não presenciar outras mortes; e o bispo de Coimbra, vendo-o por terra, curvou-se, ajoelhou, e no meio da vozeria do com- bate, absolveu-o, recolhendo-lhe o ultimo suspiro. A historia absolve-o também. A cavallo, o conde de Avranches combatia, clamando, matando. O seu humorismo tornára-se em fúria. — Senhor conde, que fazeis? Que o infante D. Pedro é morto! Gritou-lhe um moço. — Cala- te, rugiu o conde, e aqui o não digas a ninguém! 1 «O infante D. Henrique estava com el-rei D. Affonso V seu sobri- nho n'aquelle ajuntamento que se fez sobre o infante D. Pedro de que se seguiu a batalha de Alfarrobeira, na qual o dito infante foi morto e o conde de Avranches que era com elle, e toda a sua hoste desbara- tada; onde, se o meu entender para isto abasta, justamente posso di- zer que lealdade dos homens de todolos segres foram nada em com- paração da sua.» — Azurara, Conq. de Guiné, v. 2 Disse-se que os inimigos do infante accrescentaram o que o ma- tou. Traziam gente apostada para isso.— Pina, Chron. de AffonsoV, cxxi. Alfarrobeira 343 Esporeou o cavallo, foi d sua tenda, pediu que lhe des- sem pão e vinho, vestiu as melhores armas, e saiu a pé pelo arraial, já de todos os lados entrado. Reconhecendo-o, caíram em chusma sobre elle, que com a lança, e, depois de partida, com a espada, lavado em sangue, combatendo em volta, sem consentir que lhe tocassem emquanto esteve de pé, matava furiosamente. Vendo-se cansado, murmurou: — O corpo, já sinto que não podes mais, e tu minha alma já tardas. . . E deixou-se cair por terra, a gritar como um trovão: — Fartar, rapazes! Vingar, villanagem! N'um instante foi crivado de golpes. Despedacaram-no, deixando-lhe o tronco em retalhos espalhados pelo chão. A cabeça, decepada, levou-a um seu velho amigo ao rei, pe- dindo por ella acrescentamento. Era tempo de começar o regabofe. Três dias ficou insepulto o cadáver de D. Pedro, apo- drecendo com outros n\ima choupana de onde o levaram por fim, n'uma escada por esquife, á igreja de Alverca1. Dos filhos de D. João I restavam apenas dois. D. Hen- rique, de que já contámos a morte, em 1460, no seu leito em Sagres, acabou feliz com a segurança de deixar a vida coroada pelo êxito, esquecido dos irmãos que immolára no altar dos seus desígnios. D. Affonso, o bastardo, morreu cm 1461 2, vergando ao peso de oitenta e quatro annos3, riquís- simo, poderosíssimo, na plena satisfação das suas grandes ambições. Estes derradeiros foram os vencedores da vida; os outros quatro morreram vencidos. D. João, quasi em ra- paz, levou-o subitamente uma febre, matando esse raro exemplo de ingenuidade de caracter, mallogrando a mais > V. a narrativa da catastrophe de Alfarrobeira nos chronistas fla- mengos : app. G, no fim do vol. 2 No mesmo anno morreu o marquez de Valença, conde de Ourem, solteiro, herdando a casa de Bragança o conde de Arrayolos. — Cf. Sou- sa Hist. Geneal., x, 5 1 5 e segg. 3 Pina, Chron. de Affonso V, cxi.v. 344 Os filhos de D. João I bella das existências. D. Fernando acabou também, na flor dos annos, martyr verdadeiro immolado ao destino da pátria portugueza. D. Duarte, agonisando com a perda do irmão querido, desceu á cova, penitenciando-se em lagrimas de amargura, flor de modéstia ceifada pela fouce da fatalidade no vigor de uma vida sempre triste. D. Pedro, finalmente, a cujo acabar assistimos agora, fecha com o lúgubre sêllo do destino esta serie de desgraças. Occorre, portanto, indagar qual vale mais, se vencer, ou ser vencido? Convém perguntar, se, num mundo incom- pleto e imperfeito, como tudo quanto é real, a bondade, a virtude, a nobreza, e esse bater de azas para o ideal, repre- sentado á imaginação dos gregos na fabula de ícaro, não serão em verdade causas de permanente desgraça? Feita de ironia, a realidade parece condemnar aquelles que ou- sam querer desvendar-lhe as leis, quebrando o sêllo terrí- vel do mysterio. Contradictorio na essência íntima do seu próprio ser, o mundo esmaga quem se propõe vencel-o, des- florando-lhe a intimidade dos segredos. Viver é ignorar. Entre um scenario de duvidas ou de illusoes, a vida corre deslisando suave para quem não cogita em lhe penetrar o destino, precipitando-se violentamente para todos os ambi- ciosos consumidos pelo ardor do ideal. O temperamento é por via de regra para os homens a causa determinante do destino que a sorte lhes reserva, e por isso a felicidade não passa de um phenomeno subjectivo, dependente sobretudo da structura mental do individuo. Para uns a felicidade con- cilia-se com as maiores contrariedades do mundo exterior; para outros o infortúnio nem se dissipa com a plenitude dos favores da sorte. Dos infelizes martyrisados pela sede do ideal, uns cami- nham tropeçando sem cessar na duvida extenuante, outros seguem rectilineamente no encalço de uma illusão, levados atrás de miragens como as que no mar largo ou na vasti- dão dos desertos assaltam a imaginação atormentada dos viajantes. Na derrota d'esta vida, o mundo é como o mar, ou como o deserto, feito de agua, ou feito de areia, que Alfarrobeira 3^5 ambas se levantam em ondas, ambas enganam, ambas gi- ram á mercê do vento, ignoto gerador das tempestades. Viver é ignorar, é esquecer, é deixar seguir os dias e os annos, assistindo ao crescer e ao decair d 'este ser que somos, como assistimos ao medrar e ao morrer de uma planta. Só desdobrando-nos em ser pensante e em ser ve- getativo, realisando de um modo critico a concepção primi- tiva de alma e corpo, formulada pelo instincto; só desinte- ressando-nos, por assim dizer, da nossa própria existência natural, só assim poderemos já agora fugir ás tribulações deprimentes que uma civilisaçao desencaminhada ou inci- piente nos traz com o culto excessivo da vida natural. Viver é ignorar, emquanto a intelligencia, amadurecendo, não acorda para a curiosidade insaciável. Viver então pa- rece consistir no contrario da ignorância: na agitação das idéas e no heroísmo das acções. Mas assim que os ho- mens, fechado o cydo da adolescência ingénua, entram a cogitar na inanidade das cousas, viver torna-se outra vez ignorar, ou antes, esquecer a fatalidade natural e a triste condição da existência. Encerrado o circulo, volta-se ao co- meço: o tumulo é como o berço, a caducidade como a in- fância, a sabedoria summa igual do instincto espontâneo. Já hoje, nós, os herdeiros d'esta velha civilisaçao do occi- dente europeu, chegámos a uma idade que nos permitte ver claro nas sombras do mundo, para apreciarmos apenas como fortuna suprema a liberdade moral resultante do es- phacelamento de todas as illusões. E se a historia é uma lição de physica social no dyna- mismo dos elementos que a compõem, é também, na ana- lyse dos caracteres e dos motivos moraes que os constituem, a mais completa lição de psychologia positiva. Um caracter bem estudado vale por um mundo visto. Quando os cara- cteres são como foram os dos filhos de D. João I, eminen- temente accentuados e profundamente differenciados, a ga- leria torna-se um verdadeiro curso da alma individual nos seus phenomenos mais suggestivos. E quando, finalmente, a plêiade é, como esta foi para nós, a iniciadora da vida 346 Os filhos de D. João I nova que tivemos na Renascença, a psychologia histórica eleva-se á altura de uma interpretação das causas deter- minantes do nosso heroísmo passado — mais milagroso que muitos milagres perante os quaes os homens todavia ajoe- lham confundidos. XII A DESCENDÊNCIA DO CONDEMNADO onhamos agora aqui, a modo de epilogo, umas summarias noticias acerca da descendência do in- fante D. Pedro, a quem a sorte desgraçada não poupou os herdeiros. No dia immediato ao de Alfarrobeira, quando a noticia da catastrophe se tornou conhecida, a viuva fugiu de Coim- bra. Dos filhos, D. Pedro, o primogénito, que apenas con- tava vinte annos, andava como vimos foragido em Castella; D. João e D. Jayme, duas creanças de quinze e dezeseis annos, ficaram prisioneiros no campo «apparelhados para o cutelo1»; D. Brites e D. Filippa acompanhavam a mãe: e D. Izabel no alto do throno, chorava a morte horrorosa de seu pae, a dispersão de todos os seus. ' Pina, Chron. de Affonso V, cxwi. 348 Os filhos de D. João I A partilha effectuou-se logo. O duque de Bragança teve immediatamente Guimarães, e teria ficado com o Porto, como reclamava, se os da cidade se não oppozessem te- nazmente1. O conde de Ourem teve Valença do Minho com o seu marquezado2. Vasco Fernandes Coutinho, presidente da liga de 1439, foi feito conde de Marialva3. E assim á proporção. Dava-se a mãos largas, e para dar o que era de D. Pedro tornava-se indispensável deshonrar-lhe a memo- ria. Mas, como prova de quanta hesitação e quanto remorso havia nas iniquidades que se praticavam, basta dizer que Alfarrobeira foi em maio e só em 10 de dezembro, sete mezes depois, viu a luz a carta regia, datada de Almeirim, declarando traidor o infante D. Pedro e todos os que o ha- viam acompanhado, privando-os de bens e honras. Esse documento coincide com a missão que os duques de Borgonha, tios de.el-rei, enviaram a Portugal. Soara por toda a Europa, onde o nome do infante era conhecido e respeitado, a noticia da catastrophe de Alfarrobeira. O pró- prio papa, Nicolau V, publicou uma bulia fazendo a apo- theose de D. Pedro. O embaixador dos duques de Borgonha, deão de Vergy4, clérigo diplomata, ao depois bispo de Arras e cardeal, foi recebido por Affonso V, em Évora, pela pri- meira vez a 6 de dezembro. Reclamava a rehabilitação da memoria de D. Pedro e a restituição de honras e bens a seus filhos; tinha instrucções para levar o cadáver do infante, caso não se lhe quizesse dar sepultura condigna. Accusava formalmente a corte portugueza em nome da Borgonha, entremeando o seu discurso com as citações da Antiguidade clássica e judaica á moda no tempo, adduzindo exemplos e desenvolvendo theses de piedade e sentimento humano. Este primeiro assalto do eloquente embaixador foi em vão. O rei entregou-lhe uma resposta escripta, que era uma re- 1 Pina, Chron. de Affonso V, cxxix. 2 Ibid., cxxxn. 3 Ibid., viu. 4 Ibid., cxxix. A descendência do condemnado 349 cusa formal. Dias depois houve outra audiência. Já estava publicada a carta em que o rei sanecionava a condemnação do tio; e então o embaixador fallou n^m tom diverso, mais solto, comdemnando asperamente os conselheiros crimino- sos do rei, declarando que se recusava a mandar a Fi- lippe-o-Bom a resposta real, invectivando Alíonso V pelo exemplo funesto que dera de traição e parricidio. D. Pedro fora com etíeito um pae para o moço rei de Portugal que vacillava, hesitante. A 12 de janeiro, ha nova audiência e outro discurso, que é uma defeza formal de D. Pedro á vista do direito feudal; e quatro dias depois, finalmente, a despedida'. Não foi coroada de êxito a missão do embaixador borgo- nhez, nem o podia ser. O facto consummado não podia destruir-se, sob pena de negação completa e abdicação for- mal do partido vencedor. Mas não foi também inútil, porque moderou os Ímpetos da vingança. Soltaram D. Jayme, que emigrou para a Borgonha com o irmão D. João e a irmã D. Beatriz2, acolhendo-se á protecção dos tios seus prote- ctores e segundos pães. É de presumir com que anciedade a rainha D. Izabel acompanharia as diligencias do defensor da memoria de seu pae. Collaboraria com elle no espirito do rei, usando do amor que o marido lhe tinha; e cinco annos mais tarde, em 1455, ao dar á luz o príncipe D. João, futuro vingador de seu avô, alcançou do esposo a rehabilitação de D. Pedro. Assim, logo ao ver a luz, o que havia de ser D. João II co- meçava a sua obra reparadora! Rehabilitado, foi D. Pedro para a Batalha dormir o somno eterno á sombra do seu motto — Desirl a vaga ambição de ideal que o arrastou á loucura. .Mas logo no fim d'esse próprio anno de 1455, a rainha, como certas arvores que morrem da geração do frueto, 1 V. os discursos do deão de Vergy, no App. H, extrahidos da obra de Ch. Fierville, Le cardinal Jean Jouffroy et son temps; Paris, 1874. 2 Pina, Chron. de Affonso V, cxxix. 35o Os jilhos de D. João I acabava contente por ver apagado o stygma do pae, sor- rindo para o filho que o havia de vingar. As gentes diziam que por isso mesmo morrera envenenada. Em seguida a Al- farrobeira, D. Izabel vergara com o medo de se ver também perdida, por perder o carinho do esposo ' : com effeito, os vencedores queriam que Aífonso V se separasse da esposa e casasse de novo; mas elle oppoz-se, e mandou-lhe de Lisboa a Santarém, onde então estava a rainha, saudações e con- solos2. Depois, gravida, via no filho o seu redemptor. Podia morrer. Entrado o inverno, em Évora onde se achava a corte, adoeceu «de fluxo de sangue com suspeita de lhe terem dado peçonha»3. Assim, os antigos parciaes do regente per- deram o ultimo escudo do seu amparo; assim desceu á cova o primeiro dos filhos do infante D. Pedro. A procissão é longa: a morte fadara a todos para um destino igualmente funesto. D. Pedro, o condestavel poeta, que se homisiára de Por- tugal fugindo á perseguição, conforme vimos, volta á corte em 1453, dois annos antes da morte da irmã, chamado pelo rei e restaurado no mestrado de Aviz<*. Aífonso V, ex- clusivamente occupado com as idéas da Cruzada e das con- quistas de Africa, tornara o seu reino uma estacada para brigas de cavalleiros. De volta de Africa, o ex-condestavel foi assaltado pela perspectiva da coroa catalã. Morrera em 1461 o principe Carlos, herdeiro do Aragão, segundo se di- zia, envenenado pela madrasta para assegurar o throno a seu filho Fernando, o futuro esposo de Izabel de Castella, cujo casamento determinou a fusão das duas grandes mo- narchias da península. Os catalães, á morte do principe Car- los, collocaram-se sob a protecção da França, que o rei Fer- nando desinteressou, cedendo-lhe o Russilhão; em seguida entregaram-se nos braços de Henrique V de Castella, que 1 Pina, Chron. de Affonso V, cxxvi. 2 Ibid.y cxxviii. 3 Góes, Chron. do princ. D. João, v. 4 Sousa, Hist. geneal., 11, 84 a 88. A descendência do condemnado 35 1 igualmente os trahkr, e por fim appellaram para D. Pedro de Portugal que, como sabemos, era filho da filha mais ve- lha dos antigos condes de Urgel, pretendentes á coroa ca- talã. Coroado conde em Barcelona, em [464, D. Pedro, reti- rado em Granollers, escreveu, talvez com a previsão da morte próxima, o poema de desespero pessimista', em que vasou toda a amargura da sua alma dilacerada pelas des- graças suecessivas. Entre a coroação e a morte, soltou o seu canto de cysne. Acabou em 1466, rapaz ainda, aos trinta e sete annos, solteiro, sem filhos, «não sem indícios de lhe darem veneno»2. D. Filippa buscou desde logo acabar, após o naufrágio da sua família. Tinha doze annos quando lhe mataram o pae: recolheu-se em Odivellas, enclausurando-se, apesar de não proferir votos monásticos. Entregue a Deus, levou a vida a compor e traduzir livros de orações: as Estações e Meditações da Paixão, obra sua; a traducção de um livro francez de evangelhos e homilias; a da Vida solitária de S. Lourenço Justiniano, e vários tratados espirituaes para uso da princeza D. Joanna, sua sobrinha. Continuava a tra- dição escolar da família, e de todos os filhos de D. Pedro só ella talvez morreu feliz. Acabou em 1493 aos quarenta e quatro annos3. Para o mundo, porém, morrera logo em creança: ahi está naturalmente o segredo da sua ventura! Resta-nos conhecer o destino dos outros três irmãos re- fugiados na Borgonha. D. Brites, casaram-na os duques com Adolpho de Clè- ves, senhor de Ravensteyn, seu sobrinho; e na corte de Borgonha deixou como lembrança carinhosa a sua piedade • V. a nota de pag. 139 a 141. 2 Zurita, Ann. de Aragon, xvm, 147. 3 Sousa, Hist. geneal., 11, Si -84. — Cf. F. Francisco Brandão, ( Conse- lho e voto da Senhora D. Ftiippa filha do infante D. Pedro sobre ca terçarias e guerras de Castella, com uma breve noticia d 'esta Prin- cesa. Dirigido a El -rei D. João IV; Lisboa, 1G43, 4.0 352 Os filhos de D. João I inexcedivel, a sua caridade inexgotavel. Parecendo viver na terra, como mulher, edificava no céu, com uma candura de anjo, a sua morada eterna, diz o chronista. A sua modés- tia singular levava-a a esconder como crimes as virtudes que praticava, apparentando vaidades e mundanismo para que a não accusassem de orgulho. Por baixo dos vestidos de brocado trazia o cilicio, e quando ficava só dormia so- bre palhas. Tão virtuosa e santa foi, que a sua morte não passou sem milagre. Duas estrellas brilhavam fora sobre o seu leito, e apagaram-se quando expirou1. Disseram que morrera envenenada por um certo João Gonstain. D. Jayme e D. João, chamados também por seus tios de Borgonha, foram creanças para Bruges, onde os duques os acolheram como filhos, fixando-lhes desde logo pensões2, pois vinham despojados de tudo. Acompanhavam-os nu- merosos parciaes de seu pae, como elles também espolia- dos. i «De ceste dame, filie de feu dom Piettra, fils du roy de Portingal, se peuvent dire tant de hautes louenges que le reciter en doit et peut estre une gloire au feminin sèxe et un exemple recordable à tousjours à 1'estat de noblesse, laquelle a este honorée et grandie en ses vertus, quand telle princesse et filie de tel sang, mariée à prince de si haut estat, nourrie et habitant en court ou tous abus se font et se trouvent et toutes vanités se maintiennent, elle, vestue de drap d'or et de royaux atournements á luy duisants, et feignant estre la plus mondaine des autres, livrant ascout à toutes paroles perdues, comme maintes font, et monstrant de dehors de pareils usages avecques les lascives et huiseuses, portoit journeilement la haire sur sa chair nue, jeunait en pain et en eau mainte journée par fiction couverte, et son mary absent couchait en la paille de son lit mainte nuit, oubliant son rang; et comme le coeurs avait en abstinence couverte et en tel chastoy de son corps, non moins 1'avoit en devotion contemplative et en charité aumosnière, que feignant vivre en terre comme toute terriène, edifioit sa maison au ciei comme en affection angélique. . . Aucuns disent que la nuit de ceste dame labouroit en son darrain que jusques à rendre son esprit se raons- troient deux clartés au deseure de sa chambre en forme d'estoiles, et prestement, rendue 1'ame, s'esvanouyrent.» — Chastellain, Chron. (Bru- xellas, 1864), cap. lxix; tom. iv, 217. 2 Olivier de la Marche, Mem.y liv. 1 ; xx, xxiv, xxv e xxvm. A descendência do condemnado 353 D. João seguiu a carreira das armas; e logo em 1452 o vemos combatendo ao lado do duque de Borgonha contra Gand que se sublevara, encorporado nos esquadrões bor- guinhoes que reuniam hespanhoes e portuguezes, escocezes e italianos. Soldados de toda a espécie andavam com esses príncipes, a cujos estados faltava a homogeneidade nacio- nal em via de formação, abortada na jornada de Nancy (1477) com a morte de Carlos o Temerário. D. João bate-se em Baeselle contra os de Gand em junho, depois de levan- tado o cerco de Audenarde em abril1. Em paga de tantos serviços, o duque de Borgonha ar- mou o sobrinho cavalleiro do Tosão de oiro no capitulo da ordem reunido na Haya a 2 de maio de 1456. A sua no- breza, a sua galhardia, a sua modéstia encantavam quantos o conheciam. Proclamava-se feliz com a recompensa, que dizia valer para elle mais do que uma coroa2. Tinha vinte an- nos, e a vida parecia sorrir-lhe afortunada, quebrando n^lle o sêllo da desgraça com que fora marcada a sua família. A filha do rei do Chypre, Carlota de Lusignan, herdeira de João III, foi a noiva que os tios de Borgonha destina- 1 «Le 27 mai 1452 se partirent les nations des marchands de la ville de Bruges, les quelles y allaient du sceu et volonte de ceux de Gand, pour trouver paix entre le duc de Bourgogne et les gantois: icelles nations etoient, Espaigne, Arragon, Portugal, Escoce, Venissiens, Flo- rentins, Millanois, Genevois, et Lucois.» — (Chastellain, Chron. (Bruxel- las, i863), 11, 280.) «Les nations de Bruges sont les marchands tenant tables de marchandise pour tout le monde chretien.» — (Jacques Du- clerc, 11, 43.) Cf. Chastellain, 11, 3o6 e 369. 2 «Entre ces cinq chevaliers nouveaux élus, moult fut belle chose, ce disoit-on, des manières et paroles de ce jeusne Prince Messire Jehan de Coymbre alors quant il reçut 1'ordre en chapitre et qu'on lui re- quist le serment, car tout si noble et de royal sang qu'il estoit, sy se reputoit-il un des moins dignes du monde d'estre venu à celuy honneur, encore si jeune qu'il estoit et qui riens n'avoit vu ne valu. Donc, s'il eust eté des meilleurs du monde, ce disoit, sy se tenoit-il assez à pare d'estre venu là, et disait que autant se tenoit à riche alors et plus joy- eux que d'avoir couronne en teste.» — Chastellain, Chron. (Bruxellas, 1864), ih, 95. 23 3 5 4 Os filhos de D. João I ram a D. João, a quem chamavam de Coimbra, e que o grau do Tosão de oiro recommendava para o seu novo posto1. O encanto e a meiguice de D. João vêem-se na narrativa do chronista quando conta como foram as despe- didas do príncipe a seus tios, a seu cunhado Adolpho de Glèves, aos primos e aos gémeos de Touloujon, seus par- ticulares amigos2. Ir para Chypre, um dos extremos do mundo, baluarte- levantado em cheio, quasi no coração da maré crescente dos turcos, era pagar bem caro o preço de uma coroa. Mas o espirito portuguez de aventura achava-se bem n'essa corte de aventureiros que era a Borgonha, ani- mada pela esperança de construírem á força de armas uma independência. Partindo, D. João sabia que o seu destino era «o fim do mundo, entre gente de natural perverso», mas não podia adivinhar que ia ser victima d^ssa perversidade. Casado, decidido a introduzir ordem no governo do reino, o príncipe de Antiocha, tal era o seu titulo, morreu envenenado com cinco dos seus companheiros3. Nem dois annos lhe durou i «... Messire Jehan de Coymbre, jeusne chevalier de vingt ans, neveu de la duchesse de Bourgogne, auquel, par regard que l'on avait à ses moeurs et vertus et à la haute disposition de sa personne pour le temps futur, fut depute cet honneur car plus bel commencement de jeusne prince que luy n'avait en la terre. Or avait eté conclu de l'en- voyer en Chypre, mesmes à la requête du roy de Chypre qui en vou- lait faire son heritier et lui donner sa filie, et à quoy le Duc et la Du- chesse sa tante, à la três longue et grande instance du dit Roy s'étaient consentis pour le bien de la cristienté. Sy duisait bien certes de le parer de cestui renommé ordre affin de lui donner souvenance à toujours de la maison ou il avait eté nourry et que tant plus se tenist astraint et obligé envers elle.» — Chastellain, Chron. (Bruxelles, 1864), m, g5, xv. 2 V. o App. I no fim do vol. 3 (1458) «Et comme ceste mort de son cousin estoit au duc matière de tristeur, en avoit encore une autre qui lui estoit semblable, et dont il avait reçu les nouvelles que moult lui estoient dures, — c'estoit d'un noble jeusne chevalier, l'un des princes du monde mieux taillié à deve- nir homme de grant los, lequel il avait nourry et marié à la filie du roy de Cypre, messire Jehan de Coymbre, nepveu de la ducesse sa femme, né de Portingal. Cestui noble chevalier de 1'ordre de la Toison d'or fut A descendência d<> condemnado 355 a esperança de vir a cingir uma coroa! Choraram-o muito cm Chypre1, mais ainda cm Bruges, e naturalmente a viuva, depois casada com o duque Luiz de Saboya, mandou le- vantar-lhe o mausoléu no convento de S. Domingos, onde ficou dormindo o somno eterno2. Chypre viveu pouco. O reino estava condemnado a desapparecer breve. Envolvido nas complicações entre Veneza, o Egypto e a Turquia, perdeu a autonomia em 1489, quando Catharina Cornaro cedeu os seus direitos aos venezianos, e caiu de vez na posse da Turquia em iôyo3. empoisonné cTancuns gouverneurs du royaume de Cypre, lesquels, pre- nans dueil en sa manière de gouverner qui estoit vertueuse et utile au dit royaume, conspirèrent contre lui et lui brassèrent la poison de sa mort que dammage fut la plus grand des crestiens. Car de mes yeux jus qu'à celuy jour n'avoie vu homme onques plus enclin à haute dis- position, ne à haute vertu, et pour tant fortune envieuse d'un tel bien futur au monde envenima les coeurs d'aucuns mauvais pour lui avan- cier la mort. . .Furent empoisonnés aussy cinq gentils hommes avec- ques le Prince d'Antioche, messire Jehan de Coymbre, qui tous mou- rurent avec luy, en grant pleur et regret de la lille du roy qui depuis se remaria au duc de Savoye.» — Chastellain, Chron. (Bruxellas, 1864) tom. 111, cap. lxxvi, p. 386. • Henry Giblet, Hist. de re Lusignani; Veneza, i655. - «No mosteyro dos nossos padres Conventuaes está húa muy rica sepultura & nella sepultado hu Iffante de Portugal, rilho (aliás neto) de Dõ João Primeiro deste nome em Portugal, segundo affirma o Enchi- ridion dos tempos: o qual Iffante foi Príncipe de Antiochia, electo por tal dos Príncipes, & grades Senhores q. naquelle têpo forão cÕquistar terra Sãcta & outras províncias suas propinquas, entre as quaes foi aquella tão antiga cidade, onde teve principio o nome Christão. . . Na sua sepultura estão as armas, &. insígnias de Portugal esculpidas: & assi mesmo o estão em hum riquíssimo ornamento de brocado em tudo muy acabado com seu pano de púlpito, capa, & pano destante. q. os frades tem em muyta estima na Sancristia.» — Pantaleão Daueiro, Iti- ner. da Terra Saneia, xiv; p. 41 v. (ed. de i5g6). 3 «Nota quod post obitum de Lesignem regisCipri (João 111, 1432- 145S) suecessit alter Henricus de Lesignen quem alii dicunt fuisse fratrem Ysabellae ducissae Burguildiae, Hlium Johannis de Coymbra, regis Por- tugalliae, qui solam reliquit filiam, quam duxit uxorem comes Geben- nensis, filius ducis Saboudiae, circa annos domini 1433." 356 Os filhos de D. João I Com D. João são quatro já os filhos de D. Pedro que morrem envenenados: D. Pedro em Barcelona, D. João em Chypre, D. Brites em Bruges, e a rainha D. Izabel em Évora. Só D. Filippa acabou naturalmente na sua cella de Odivel- las; só D. Izabel deixa um herdeiro, um único para vinga- dor de todos. Falta-nos, porém, conhecer ainda o destino de D. Jayme, também recolhido na corte dos seus tios borguinhões. Este não morreu de veneno: morreu, porém, victima da sua cas- tidade mystica. Tão desgostoso da vida, como seu irmão o condestavel, auctor do poema do «menosprezo mundano», D. Jayme votou-se á igreja-, de Bruges seguiu para Roma, onde a influencia dos duques de Borgonha lhe fez obter depressa o cargo de protonotario apostólico. Pouco depois, vagando a sé de Arras, de apresentação do tio, foi nomeado bispo pelo papa, em 1453; de Arras1 veiu para Lisboa, em seguida, occupar o cargo de arcebispo. Em Roma, onde o levou certa missão da Borgonha (1456), Calixto III deu- lhe em commenda o bispado de Paphos, de Chypre, onde o irmão devia ser rei; e fel-o cardeal diácono de Santa Maria in Porticu. Diziam que, apesar de tão cedo ser cha- mado ao cardinalato — tinha vinte e dois annos apenas — (Aqui o chronista confunde-se : era João e não Henrique o herdeiro presumptivo do rei João III, e nunca chegou a reinar em Chypre; era sobrinho, e não irmão, da duqueza de Borgonha; foi a viuva, e não a filha, que casou com o duque Luiz de Saboya, succedendo na coroa de Chypre, 1458-1464.) «Sed hic multa passus, a Sarracenis fugatus fuit et expulsus a regno quod bastardus quidam usurpavit cum filia Ferdinandi regis Ceciliae. Denique, cum aVenetianis urgeretur, vocavit in auxilium admiraldum soldani Babiloniae et Egypti, qui stipe conductus accessit; cum mollet regnum absque tributo bastardo dimittere, praefectus admiraldus ab eo peremptus est. Deinde Venetiani pacem cum eo percutientes eum- dem regem similiter interemerunt et cum soldano Turchorum foedus ineuntes ab eo sibi regnum sub tributo tenere cceperunt anno domini 1478.» — Adrien de But, Chron. (Bruxelles, 1870), 394. 1 O seu successor na sé de Arras foi o deão de Vergy, antes embai- xador do duque junto de D. Affonso V. A descendência do condonnado J07 era tarde de mais para os seus merecimentos'. Aos vinte e cinco, três annos depois, morria em Florença, diz-se que por não querer contaminar a castidade, remédio que em ultimo extremo lhe indicavam os médicos. Tinha por em- preza um arminho com esta legenda: «Maio mori, quam foedarix 2. Antes morrer, que faltar: pôde também ser este o lemma geral que designe a geração mallograda, nascida do mais bello dos ramos da arvore de Aviz. Admiravelmente dota- dos, tão nobres pela intelligencia, como pelo caracter, os filhos do infante D. Pedro mostraram-se fieis á herança pa- terna, na grandeza própria, e na constância de um infor- túnio que se diria fatídico. Essa desgraça commum, desgraça que parece herdada, corôa-os com a aureola dos martyres, suprema consagração do mérito no mundo. Dir-se-ía também que uma tão longa e tão cruel serie de desventuras era a preparação necessária dos tempos fe- lizes em que Portugal ia entrar, levado pela mão poderosa do neto de D. Pedro. Gerado em horas de afflicçao su- prema, recebeu no seio materno, bebeu com o primeiro leite, as impressões trágicas dos acontecimentos que ficam relatados. Formou-se-lhe a alma com a lembrança das am- bições de D. Henrique, a lição das doutrinas imperialistas de D. Duarte, e a memoria da tragedia de Alfarrobeira em que a fidalguia triumphante assentara sobre o cadáver de D. Pedro a base da tutela exercida sobre o rei Affonso V, exemplar posthumo das antigas idades cavalheirescas. Assim que subiu ao throno, D. João II cerrou violenta- mente o parenthesis aberto na historia nacional. Com o cu- 1 «Tertius fuit Jacobus de Portugallia, régio sanguine natus, in quo ea modéstia, ea gravitate, id acumen ingenii et studium litterarum in amor virtutis emicuit, ut quamvis juvenis adhuc tardius tamen opinio- nem omnem ad eam dignitatem ascenderit.» — .-Eneae Svlvii, Hist. de Europa, lviii, 461. 2 Gallia chnst., 111, 344; Onuphre, Epit. Pontif. rom. (Veneza, 1 5 5 7 >, 3 18 a 325. — Cf. Sousa, Hist. Geneal., 11, 91-101. 358 Os filhos de D. João I tello e com o punhal vingou a memoria do avô, esmagando as resistências anarchicas da nobreza. Com o saber e com a audácia proseguiu as navegações, que nos deram afinal a descoberta do caminho da índia, completando a obra ini- ciada por D. Henrique. E esse rei, a quem em Castella chamavam por antonomásia o homem, era o que, persona- lisando a idéa pura do principado monarchico, tomava para si, como empreza, o pelicano amamentando os filhos, e como motto as palavras: pela lei e pela grei, pelo povo e pela jus tica. L|p li (E IH í APPENDICE (A) A LENDA DOS AVENTUREIROS (Al-mogharriruns) E AS ILHAS DO MAR ATLÂNTICO na Descripçáo da Africa e da Hespanha de Edrisi, traduzida por Dozy e Goeje (Leyde, 1866) 184 (p. 222). Lisbonne est batie sur la rive septentrionale du fleuve qu'on nome le Taje; c'est celui sur lequel est situéeTolede. Sa largeur auprès de Lisbonne est de 6 milles, et la marée s'y fait ressentir violem- ment. Cette belle ville qui s'étend le long du fleuve, est ceinte de murs et protégée par un château fort. Au centre de la ville sont des sources d'eau chaude en hiver comme en été. Située à proximité de 1'Océan, cette ville a vis-à-vis d'elle, sur la rive opposée le fort d'al-Ma'dan (Almada), ainsii nommé parce qu'en effet la mer jette des pailletes d'or sur le rivage. Durant 1'hiver les ha- bitants de la contrée vont auprès du fort à la recherche de ce metal et s'y livrent tant que dure la saison rigoureuse. Cest un fait curieux dont nous avons été témoins nous-mêmes. Ce fut de Lisbonne que partirent les Aventuriers, lors de leur ex- pédition ayant pour objet de savoir ce que renferme l'Océan et quelles sont ses limites, ainsi que nous 1'avons dit plus haut. II existe encore à Lisbonne, auprès des bains chauds, une rue qui porte le nom de rue des Aventuriers. Voici comment la chose se passa: ils se réunirent au nombre de huit, tous proche parents (littéral. cousins germains) ; et après avoir construit un vaisseau marchand ils y embarquèrent de l'eau et des vivres en quantité suffisante pour une navigation de plusieurs móis. Ils mirent en mer au premier souffle du vent d'est. Après avoir navigué durant onze jours ou environ, ils parvinrent à une mer dont les ondes épaisses ex- halaient une odeur fétide, cachaient de nombreux récifs et n'étaient éclairées que faiblement. Craignant de périr, ils changèrent la direction de leurs voiles, coururent vers le sud durant douze jours, et atteigni- rent Tile des Moutons, ou d'innombrables troupeaux de moutons pais- saient sans berger et sans personne pour les garder. 362 Os filhos de D. João I Ayant mis pied à terre dans cette íle, ils y trouvèrent une source d'eau courante et prés de là un figuier sauvage. Ils prirent et tuèrent quelques moutons, mais la chair en était tellement amère qu'il était impossible de s'en nourrir. Ils n'en gardèrent que les peaux, naviguè- rent encore douze jours vers le sud, et aperçurent enfin une ile qui paraissait habitée et cultivée; ils en approchèrent afin de savoir ce qui en était; peu de temps après ils furent entourés de barques, fait pri- sionniers et conduits à une ville située sur le bord de la mer. Ils des- cendirent ensuite dans une maison ou ils virent des horames de haute (i85) stature et de couleur rousse, qui avaient peu de poil et qui por- taient des cheveux longs (non crépus), et des femmes qui étaient d'une rare beauté. Durant trois jours ils restèrent prisonniers dans un appar- tement de cette maison. Le quatrième ils virent venir un homme par- lant la langue árabe, qui leur demanda qui ils étaient, pourquoi ils étaient vénus, et quel était leur pays. Ils lui racontèrent toute leur aventure; celui-ci lui donna de bonnes esperances et leur fit savoir qu'il était interprete du roi. Le lendemain ils furent presentes au roi qui leur addressa les mêmes questions, et auquel ils répondirent comme ils avaient déjà répondu la veille à 1'interprète, qu'i!s s'étaient hasardés sur la mer afin de savoir ce qu'il pouvait y avoir de singulier et de curieux, et afin de constater ses extremes limites. Lorsque le roi les entendit ainsi parler, il se mit à rire et dit à 1'in- terprète: «Explique à ces gens-là que mon père ayant jadis préscrit à quelqu'uns d'entre ses esclaves de s'embarquer sur cette mer, ceux-ci la parcoururent dans sa largeur durant un móis, jusqu'à ce que la clarté (des cieux) leur ayant tout à fait manque, ils furent obligés de renon- cer à cette vaine entreprise». Le roi ordonna de plus à 1'interprète d'assurer les aventuriers de sa bienveillance afin qu'ils conçussent une bonne opinion de lui, ce qui fut fait. Ils retournèrent donc à leur prison, et y restèrent jusqu'à ce qu'un vent d'ouest s'étant élevé on leur banda les yeux, on les fit entrer dans une barque et on les fit voguer durant quelque temps sur la mer. «Nous courúmes, dirent-ils, environ trois jours et trois nuits, et nous atteignimes ensuite une terre ou l'on nous débarqua, les mains liées derrière le dos, sur un rivage ou nous fumes abandonnés. Nous y restâmes jusqu'au lever du soleil, dans le plus triste état, à cause des liens qui nous serraient fortement et nous incommodaient beaucoup; enfin ayant entendu du bruit et des voix humaines, nous nous mimes tous à pousser des cris. Alors quelques habitants de la contrée vinrent à nous, et nous ayant trouvé dans une situation si misérable, nous dé- lièrent et nous adressèrent diverses questions auxquelles nous répon- dimes par le récit de notre aventure. Cétaient des Berberes. L'un d'entre eux nous dit: «Savez-vous quelle est la distance qui vous se- pare de votre pays?» Et sur notre réponse négative il ajouta: «Entre le point ou vous vous trouvez et votre patrie il y a deux móis de che- Appendice 363 min». Le chef des aventuriers dit alors: wâ asa/i ihélas); voilà pour- quoi te nom de ce lieu est encore aujourd'hui Asali. Cest le port dont nous avons déjà parle comme étant à l'extrémité de 1'occident. Conde, na sua traducção, publicada ao terminar do século passado1 dera d'esta lenda um texto que pouquíssimo se afasta da traducção de Dozy, a quem competiu a Hespanha, cabendo a Goeje a Africa, na tra- ducção que ambos emprehenderam d'essa parte da geographia de Edrisi. A única traducção completa (Testa obra é a de Jaubert2. O insigne arabista hespanhol, sr. Eduardo Saavedra3 rectificou a traducção de Dozy n'um copioso estudo em que, alem da critica de toda a parte relativa á Hespanha, publica e traduz os §§ 59 a 72 do texto do celebre geographo árabe : é a primeira parte do «quinto clima-, comprehendendo a Galliza e as Astúrias, parte da terra dos frankos e Portugal até ao Mondego. No primeiro capitulo d'este livro, bem como na introducção da obra de Dozy e Goeje, encontram-se todas as informações acerca do geographo árabe. O estabelecimento dos normandos na Sicília, expulsos os serrace- nos pelo conde Rogério de Hauteville em 10614, produziu um dos vá- rios exemplos de mosarabismo, tão frequentes na Península. Bárbaros, os príncipes christãos adaptavam-se á cultura árabe, e começando pela tolerância e pelo respeito, acabavam por assimilar costumes e idéas, sem perderem, todavia, o traço distinctivo da religião. A maneira de governar, o ceremonial da corte, os diplomas, as legendas das moedas, tudo, inclusivamente as inscripções das casas e palácios, aceusava na Sicília normanda um profundo caracter oriental. Nem faltava o harém. Rogério II, o filho do conquistador, tinha a paixão da geographia que, ao tempo, era exclusivamente, pôde dizer-se, árabe. No prefacio da sua obra, Edrisi diz do rei que durante quinze annos se oceupou «sem interrupção, sem cessar, de examinar pessoalmente todas as ques- 1 Descripcion de Espana de XerifAledrii ; Madrid, 1799. 2 Gèographie dEdrisi, tr. de 1'arube cn trançais, par P, Amedée Jaubert. 2 vol. Paris, i836 e 1840. 3 La geografia de Espaíia dei Edrisi . Madrid, 1881. 4 Eis aqui a suecessão dos reis da Sicília normanda : 1. Rogério I conq. em 1 2. Rogério II BDCC. a seu pae em 1 101, e ganha a Apúlia e a Calábria na Itália con- tinental, onde ^o extingue a raça do tio, Guilherme Guiscardo; rei em 1 i3o. 3. Guilherme I. o mau. sticc. em ii.\). 4. Guilherme II, o bom, id. em 1166, sendo então os normandos substituídos pelos allemães suabios. 3Õ4 Os filhos de D. João I toes geographicas, procurando-lhes a solução e verificando a exactidão dos factos, a fim de alcançar o conhecimento pleno que desejava i». Abu-'Abdallâh, filho de Mohammed, filho de Abdallâh, filho de Edris, e geralmente conhecido pelo nome de as-xerife al-Edrise, ou xerife Edrisi, como Conde orthographa, foi o encarregado pelo rei de pôr por ordem os materiaes geographicos colligidos. Edrisi II, seu bisavô, da família dos Hammuditas, príncipe reinante de Málaga, conquistada pelos granadinos em io53, e que morreu dois annos depois2, emigrou, ao que parece, depois de desthronado para Ceuta, onde reinava o berbere Sacante, liberto da sua família. Em todo o caso, Casiri3 affirma que o geographo nasceu em Ceuta, e a pompa e amor com que elle no seu tratado descreve essa cidade corroboram esta affirmação. Convidado pelo rei Rogério a ir para a Sicília, Edrisi foi, pondo-se ao serviço do normando, com certo escândalo para os seus correligio- nários; e encarregando-se da coordenação dos materiaes geographicos, terminava a sua obra, como elle próprio o diz no prefacio, nos últimos dias do mez de chauwâl do anno 548 da hégira, isto é, no meiado de janeiro de 1 154. A geographia de Edrisi marca de tal forma um estádio no progresso do conhecimento do mundo, pois resume quanto na epocha se sabia; e como é pouco, relativamente, depois d'essa epocha que começaram os trabalhos do infante D. Henrique, vê-se claramente a importância que a obra tem sob o ponto de vista da historia nacional. Antes da edição do fragmento publicado por Conde, e que citámos antes, o pu- blico europeu nada pôde conhecer da obra de Edrisi até i5o,2, data em que se imprimiu em Roma um resumo feito por editor anonymo ; e esse resumo, traduzido em latim em 16 19 pelos maronitas Gabriel Sionita e João Hesronita, imprimiu-se em Paris com o titulo arbitrário de Geographia do nubiense4. # Transcreveremos agora da traducção Dozy-Goeje5, a parte que se refere ás ilhas atlânticas e ao mar Tenebroso6. 1 Cf. Dozy-Goeje, /. c. introd. 11. 2 Cf. Dozy, Hist. des musulmans d'Hespagne, iv, 60-7. 3 Biblioth. Arab.-Hisp. Escurialensis, 11, i3; cit. por Dozy. 4 Saavedra, La geog. de Espana dei Edrisi, 1. 5 P. 60 e segg. 6 Sobre as lendas das ilhas perdidas do Atlântico, lendas populares na idade media, v. o Essai sur ihist. de la Cosmog. etc, do V. de Santarém, (Paris, 1849, 3 vol0 e a nota ív da ed. do livro 11 das Saudades da terra, de Gaspar Fructuoso, pelo sr. A. Rodrigues de Azevedo. As lendas das ilhas de S. Brandão e a Antilia ou Sete cidades estão ahi estudadas. Cf. M. d' Avezac, Les íles phantastiques de 1'Océan occid., 8 e segg., e sobre a dos almogarr. Hartmann, A/r. Edrisi, 3iy, 9; e Humboldt, Ex. crit. de la geogr. du nouveau continent, 11, 139. Ap pendi ce 305 — La première section du troisième climat commence à 1'océan qui baigne la partie occidentale du globe terrestre. Du nombre des iles de cet océan est celle de Sara, située prés de la merTenebreuse. On ra- conte que Dzou '1-Carnaín y aborda avant que les ténèbres eussent couvert la surface de la mer, y passa une nuit, et que les habitants de cette ile rassaillirent, lui et ses compagnons de voyage, à coups de pierres et en blessèrent plusieurs. (53) Une autre ile du mème océan se nomme Yile des diablesses (Djazirato 's-Sa'ali), dont les habitants ressemblent plutòt à des fem- mes qu'à des hommes; les dents canines leur sortent de la bouche, leurs yeux étincellent commes des éclairs, et leurs jambes ont 1'appa- rence de bois brulé; ils parlent un langage innintelligible et font la guerre aux monstres marins. Sauf les parties de la génération, nulle différence ne caractérise les deux sexes, car les hommes n'ont pas de barbe; leurs vêtements consistent en feuilles d'arbres. On remarque ensuite Yile de la déception (Djazirat khosrân), d'une étendue considé- rable, dominée par une montagne au Mane de laquelle vivent des hom- mes de couleur brune, d'une petite taille et portant une longue barbe qui leur descend jusqu'aux genoux; ils ont la face large et les oreilles longues; ils vivent de végétaux que la terre produit spontanément et qui ne different guère de ceux dont se nourrissent les animaux. II y a dans cette ile une petite rivière d'eau douce, qui découle de la mon- tagne. L'ile d'al-Ghour, (al-Ghaur) également considérable, abonde en herbes et en plantes de toute espèce. II y a des rivières, des étangs et des fourrés qui servent de retraite à des ânes (sauvages) et à des boeufs qui portent des cornes d'une longueur extraordinaire. Du nombre de ces iles est ensuite celle des suppliants (al-Mostachkin). On dit que cette ile est peuplée, qu'il y a des montagnes, des rivières, beaucoup d'arbres, de fruits, de champs cultives. La ville que s'y trouve est dominée par une citadelle. On raconte qu'à une époque antérieure à Alexandre il y avait en cette ile un enorme dragon qui dévorait tout ce qu'il rencontrait, hommes, boeufs, ânes et autres animaux. Lorsqu'Alexandre y aborda, les habitants se plaignirent des dommages que leur causait le dragon et ils implorèrent le secours du héros. Le monstre avait fait de tels ra- vages dans leurs troupeaux, qu'ils avaient résolu de s'imposer plutòt une taxe quotidienne de deux taureaux qu'on plaçait auprès de sa tanière; il sortait pour les dévorer, puis se rétirait jusqu'au lendemain, en atten- dant un nouveau tribut. «Est-il dans 1'usage de sortir par un seul endroit ou par plusieurs?» demanda Alexandre. — «Par un seul». — «Indiquez- moi donc le lieu». — Ils l'y conduisirent en apportant en mème temps les deux taureaux qu'ils placèrent au lieu ordinaire; aussitôt le monstre s'avança semblable à un nuage noir ; ses yeux étaient étincelants comme des éclairs et sa gueule vomissait des flammes; il devora les taureaux et disparút. (54) Alexandre ayant fait placer, le lendemain et le jour sui- vant, pas autre chose que deux veaux auprès de sa caverne, pour lui 366 Os filhos de D. João I causer une faim extraordinaire, ordonna aux insulaires de prendre deux taureaux, de les écorcher et de remplir leurs peaux d'un melange de resine, de soufre, de chaux et d'arsenic, et de les exposer à 1'endroit indique. Le dragon sortit de sa retraite, comme de coutume, et devora cette nouvelle proie; quelques instants après, se sentant empoisonné par cette composition, ou l'on avait d'ailleurs eu soin de mettre aussi des crochets en fer, il faisait tous les efforts imaginables pour la vomir, mais les crochets s'étant embarrasses dans son gosier, il se renversa la gueule béante pour reprendre haleine. Alors conformément aux dis- positions faites par Alexandre, on fit rougir des morceaux de fer et, les ayant placés sur des plaques du mème metal, on les lança dans la gueule du monstre ; la composition s'inflamma dans ces entrailles et il expira. Cest ainsi que Dieu fit cesser le fléau qui affligeait les habitants de cette ile ; ils en remercièrent Alexandre, lui témoignèrent une grande affection et lui offrirent des présents consistant en diverses curiosités de leur ile; ils lui donnèrent entre autres choses, un petit animal qui ressemblait à une lièvre, mais dont le poil était d'un jaune brillant comme de l'or; cet animal, appelé bagrâdj, porte une corne noire et fait fuire par sa seule présence tous les animaux, mème les lions et d'autres betes féroces, et les oiseaux. Dans la même mer se trouve 1'ile de Calhân, dont les habitants sont de forme humaine, mais portent des têtes d'animaux; ils plongent dans la mer, en retirent les animaux dont ils on pu se saisir, et s'en nour- rissent ensuite. Une autre ile de cette mer se nomme 1'ile des deux frères magiciens. On raconte que ces deux frères, dont l'un s'appelait Chirhâm et 1'autre Chiràm, exerçaient la piraterie sur tous les vaisseaux qui venaient à passer auprès de 1'ile; ils faisaient périr les navigateurs et s'emparaient de leurs biens; mais Dieu, pour les punir, les meta- morphosa en deux rochers que l'on voit s'élever sur les bords de la mer. Ce ne fút quaprès cet évènement que 1'ile devint peuplée. (55) Elle est située en face du port d'Asafi, et à une distance telle que, lorsque 1'atmosphère est tout à fait sans brouillard, on peut, dit-on, apercevoir du continent la fumée que s'élève de 1'ile. Cette particula- rité ayant été racontée à Ahmed ibn Ornar, surnommé Racamo '1-Iwaz, que le prince des Musulmans Ali ibn Yousuf ibnTàchifin avait chargé du commandement de toute sa flotte, il voulait y aborder avec les na- vires que 1'accompagnaient; mais la mort le surprit avant qu'il eút pu accomplir ce projet. On a recueilli des détails curieux, relativement à cette ile et à la raison pourquoi le port d'Asaíi reçut ce nom, de la bouche des aventuriers (al-mogharriroun), voyageurs de la ville de Lisbonne en Espagne, qui y abordèrent. Le récit de cette aventure est assez long, et nous aurons 1'occasion d'y revenir quand il será question de Lisbonne. Dans cette mer il existe également une ile d'une vaste étendue et environnée d'épaisses ténèbres. On 1'appelle Vile des moutons (Djazirato Appcndicc 367 '1-Ghanam), parce qu'il y en a des troupeaux enormes; ces animaux sont petits et leur chair est amère, à tel point qu'il n est pas possible d'en manger. Nous devons ce renseignement au récit des aventuriers. Prés de cette ile est celle de Ràcâ, qui est Yile des oiseaux (Djazi- rato '1-Toyour). On dit qu'il s'y trouve une espèce d'oiseaux sembla- bles à des aigles, rouges et armes de griffes ; ils font la chasse aux ani- maux marins dont ils se nourrissent, et ne s'éloignent jamais de ces parages. On dit aussi que 1'ile de Râcâ produit une espèce de fruits semblables aux figues de la grosse espèce et dont on se sert comme d'un antidote contre les poisons. L'auteur du Livre des merveilles rap- porte qu'un roi de France, informe de ce fait, equipa un navire qu'il envoya vers cette ile pour obtenir de ces fruits et de ces oiseaux, parce qu'il avait été informe des propriétés médicales du sang de leur foie; mais le vaisseau se perdit et ne revint jamais. (B) O AUTO OU LIVRO DO INFANTE D. PEDRO Este opúsculo, depois da primeira edição em 1544, foi constante- mente reimpresso. Inn. da Silva (Dicc. bibliog.; 111, 140,) declara ter visto as edições de : «j Lisboa, 1698, b) lbid. 1739, cj ibid. 1767, d) ibid. 1794, alem de outras do presente século, de que não tomou nota. O exemplar de que nos servimos é de 1882, do Porto, livr. de Cruz Coutinho. «Quanto ás traducções castelhanas, diz o mesmo bibliographo (se é que não foi n'esta lingua que a obra se imprimiu originalmente), acho apontadas em Barbosa a edição de 1564 (Burgos, por Filipe Junti), e mais duas, ambas feitas ao que parece em Sevilha, por Domingos de Robertis, i5g5, 4.0, e 1626, 4.0 — No catalogo da livraria de lord Stuart, vejo também citada outra com o titulo : Historia dei Infante D. Pedro de Portugal, el qual anduvo las siete partidas dei mundo; Sevilha, sem anno, 4.0; edição differente das indicadas por Barbosa e talvez mais antiga que ellas. — As edições que vi, e comparei entre si, téem muitas variantes, e differem notavelmente em vocábulos e phrases, porque cada um dos editores foi emendando a seu gosto e acrescentando o que lhe pareceu, de modo que julgo se não acharão talvez duas intei- ramente conformes ». A traducção castelhana mais recente que por nossa parte encon- trámos, foi a de 1873, Madrid: Despacho de Marés y cômpania, Januelo, 19; três pliegos com o titulo: Historia dei infante D. Pedro de Por- tugal en la que se refiere lo que le suecedio en el viaje que iii-^o alre- dedor dei mundo. Escripta por Gorne^ de Santisteban, uno de los que llevó en su cômpania. O frontispicio-capa é encimado por uma gravura de madeira representando o infante a cavallo em viagem, seguido por um homem a pé que traz nos braços uma creança nua; e tem como vinheta o esboço do mappa do mundo. Não nos pareceu destituído de interesse comparar a edição portu- gueza de 1882 com a traducção castelhana de 1 s 7 3 , para ver de que modo os dois textos se afastam hoje. O titulo ditlere bastante, pois o portuguez é o seguinte: Livro do infante D. Pedro de Portugal o qual andou as sete partidas do 24 370 Os filhos de D. João I mundo, feito por Gomes de Santo Estevão, um dos do^e que foram na sua companhia. Vejamos o texto : PORTUGUEZ Não ha numeração de capítulos. Os momentos successivos de via- gem vão porém indicados por meio de rubricas, que são dezoito. a) De como o infante D. Pedro de Portugal partiu da villa de Bar- cellos, para ir ver as sette partidas do mundo. Sae de Barcellos com doze com- panheiros, em lembrança dos doze apóstolos, e vem á corte despe- dir-se d'elrei que lhe dá doze mil peças de oiro. Vae a Valladolid. O rei de Cas- tella dá-lhe vinte e cinco mil peças e o lingua Ramires. b) De como o infante chegou á cidade de Veneza e alli nos embar- cámos. Vão por terra a Veneza onde embarcam para Chypre, visitando a corte de Nicosia e a rainha que tinha o marido prisioneiro dos tur- cos. c) De como partimos de Chypre, a fa^er reverencia ao gran Turco á cidade de Mandua. Vão á Turquia, a Mandua, e de lá a Patras, onde acham o Sultão. Pagam duas peças de oiro de tri- buto, e partem para Constantino- pla, ameaçada então pelos caval- leiros de Rhodes. De Constantinopla, por terra de gregos e macedonios, atravessando desertos d'onde avistaram Jerusa- lém, chegaram a uma ermida, onde viram mirrados os corpos de reis e príncipes. CASTELHANO Está dividido em dez capítulos numerados de 1 a x. CAPITULO PRIMERO Como el infante D. Pedro de Portugal se partió de la villa de Barcelos á tomar la bendicion de su padre, con desígnio de ver todas las partes dei mundo, y de como dió principio á su jornada. O texto conta como D. Pedro, desejoso de ver mundo, saiu de Barcellos, onde residia, e foi á corte despedir-se de seu pae, que sau- doso lhe deu bons conselhos, vinte mil dobras de oiro e uma porção de jóias, abençoando-o. Partiu D. Pedro para Valladolid a despedir-se do rei de Castella D. João II, que lhe mandou dar cem mil escudos e um interprete chamado Garcia Ramirez. De Valladolid vem a Lisboa onde embarcam para Veneza. De Veneza vão a Chypre, visi- tando a corte de Necaim, vendo o soberano da terra. De Chypre vão a Damasco, ca- pital do Grão-turco, e, pago o tri- buto de dois escudos de oiro por cabeça, passam a Tróia, d'onde partem para a Grécia por um de- serto aspérrimo. No caminho visitam um mostei- ro, onde vêem em roda das paredes os esqueletos dos reis e príncipes da terra. j [ppendice 37i CAPITULO II O ermitão diz-lhes que não vão para a esquerda por ser a terra de Noruega, onde os dias são de qua- tro horas apenas. Tomam dromedários e jorna- deiam pelos desertos. d) De como fomos a Babylonia fajer reverencia ao grão Babylão. Vão a Babylonia, vêem o filho do sultão, a quem communicam o desígnio de ir ao Preste João. e) Como partimos de Babylonia para visitar a Terra Santa. Foram á província de Centurio. Macrocephalia. Atravessam a terra dos Alarves, e indo ao Jordão, pas- sam a Nazareth. f) De como o infante D. Pedro entrou na cidade de Jerusalém. Exame dos santuários. Excursão ao Tabor. Como cl infante pasó a Noruega, â Babilónia e despues á la tierra Santa. Despedindo-se dos ermitões to- mam dromedários para a viagem para Noruega, onde chegam ao cabo de oito dias de viagem. De lá vão prestar homenagem ao grão Babilão, filho do sultão do Egypto, ao qual indicam o desí- gnio de visitar as terras do Preste João das índias. D'alli saíram para a cidade de l'rian, região dos centauros; e de- pois atravessaram a Arábia Feliz, chegando ao Jordão. Foram a Nazareth, ao castello de Emmaus, a Belém; visitaram o valle de Josaphat, entraram em Je- rusalém examinando todos os to- gares santos. Foram ao sepulchro de Adão, no valle do Ebron, ao monte Tabor, e seguiram para a Arménia. CAPITULO III g) Como partimos de Jerusalém para a Serra da Arménia, onde está a arca de Noé. Descripção da serra. Vêem a Arca de Noé sobre as montanhas. h) De como o infante foi J "a jer reverencia a elrey de Arménia e visitou a casa de Santa Maria Egy- pciaca. Visitam o rei da Arménia e a sepultura de Santa Maria sobre o Jordão. i) De como fomos onde estava o gran sultão do Egypto em Baby- Como el infante D. Pedro llega à la Arménia, donde se presentó ai rey, pasando despues á otras pro- vindas. Entrando nas serras aspérrimas da Arménia, vêem a Arca de Noé sobre as montanhas. Visitam a cidade da Arménia e participam ao rei o destino da via- gem. Elle dá-lhes quinhentas peças de oiro, e largam para Babilónia, no Egypto. Ahi encontram o sultão, natural de Villa Nueva de la Serena, pre- sente do rei de Granada ao de Fez. 372 Os filhos de D. João I Vêem ao Egypto e tratam com o sultão, de Villa Nueva de la Se- rena, captivo de Granada dado ao rei de Fez. Assistem ao supplicio de um mouro atravessado em um pau, posto em alto, por ter esbofe- teado um peregrino. D'alli vão a Penora, a Sabrança, ao gran Cairo, a Assião, a Fanta- leão onde corre o rio Frison que vem do paraizo terreal. í) De corno o infante foi fajer reverencia ao gran Mor ate, e d'alli passamos onde estava o gran Ta- maroleque. Passaram a Capadócia d'onde os repelliu o gran Morate; e atraves- sando o deserto de Ninive, foram á cidade de Sa?nasa onde os rece- beu o granTamaroleque. Rojam-se três vezes por terra. Descripção da corte e ceremonias religiosas. Através de um deserto chegaram á cidade de Tarfo, quatorze léguas de Sodoma e Gomorrha. Descri- pção. Assistem ao supplicio de um mouro, enterrado até ao pescoço pelo crime de haver dado uma bo- fetada n'um peregrino. O infante implora o perdão, mas o sultão nega-o. Partem d'alli para Perona, de lá para Sobran^a, para Asian, para Torna e Pasiban por onde passa um rio nascido no paraizo terreal. CAPITULO IV Como el infante D. Pedro con su acomp anamiento pasó á la ciu- dad de Capadócia y se presente ai gran Mor ato, de quienfué mal re- cebido, e despues tomo el camino para visitar ai grande e supremo Tamerlan. De Pasiban foram a Cappadocia e, mal recebidos pelo vice-rei Mo- rato, partiram para Ninive onde vão á presença de Tamerlan, ro- jando-se três vezes por terra. Des- cripção da corte, das ceremonias religiosas e das festas do soberano que chamava seu filho ao rei de Leão. D'alli foram a Seta, e de lá a Trasis, quatorze léguas distante de Sodoma e Gomorra. Descripção. k) De como chegámos á Arábia e fomos aos montes de Gelboé. Vão ao reino da Arábia, cidade de Sabá, onde vêem os cynoce- phalos. Compram dromedários e atravessam os montes de Gelboé, onde morreu Saul. I) De como chegámos ao monte Sinay. CAPITULO V Como el infante D. Pedro e su compania pasaron á la Arábia, lue- go a Zagaur, monte Cálboe y des- pues ai de Sinay. Vão a Sabá onde vêem os cy- nocephalos; partindo de lá para a Arábia, cavalgando em drome- dários, e da capital da Arábia para Zagitar em cujo campo mor- Appcndicc 3-3 Está ahi o corpo de Santa Ca- tharina. Descripção do santuário. reu Saul com todo o seu exercito. De Zaguar, com licença do go- vernador e mediante espórtula, fo- ram ao Sinay, onde havia um con- vento com quarenta franciscanos. Ahi ficaram dois mezes. Na falda do Sinay está a pedra que Moysés feriu com a vara, e d'onde fez brotar agoa. Perto ha uma grande penha chamada de Santa Catharina, no alto da qual moram dois eremitas franciscanos. Visitam o santuário. m) De como fomos á terra do gran Roboão e vimos a casa de Meca. Roboão manda-os com dois mou- ros a Gudilfe, senhor da casa de Meca e rei de Jerusalém, que os tem presos dez semanas. Soltos, vêem o sepulchro de Mafoma «pendurado no ar entre seis pedras imans d'uma egualdade e movimento d'oiro.» n) De como fomos á terra das Amazonas da cidade de Sonterra. Partem para a terra das Ama- zonas e chegam á cidade de Son- terra. Costumes das amazonas. o) De como fomos a uma pro- vinda de judeus que são sujeitos ao Preste João. Vêem o rio das Pedras. «N'esta província não fazem os judeus as barbas e trazem-nas grandes, por- que perderam a terra da promis- são». CAPITULO VI Como el infante D. Pedro y su comitiva pasaron á las ciudades dei gran Roboan, la de Meca, Son- terra, y en Judea a la de Cananea. Do Sinay partem para Roboan cidade em que entram, sendo pre- sos pelo pachá e mandados a Meca ao califa de Bagdad, senhor da Santa casa de Jerusalém. Solta-os o califa, e vêem a Santa Kaba: «en cada uno de los ângu- los de la capilla, que son ocho, hay una loseta de piedra iman, y como cada uma llama igualmente para atraer-se el acero dei engaste de Zancarron, es la causa que se sus- tenga en el aire, sin inclinar-se á ningun lado, lo que atrybuen á milagro aquellos miserables faná- ticos». De Meca vão á terra dos pigmeus que torneiam indo a Sonterra, das amazonas. Seus costumes. D'alli vão a Cananea na Judea. CAPITULO VII p) De como o infante D. Pedro Como el infante don Pedro e de- passou pela terra dos Gigantes e mas de su acompanamiento passa- foi á índia do Preste João. ron á la ciudad de Luca, d' onde 374 Os filhos de D. João I Foram á provinda dos Gigantes, d'onde entraram nas índias, pa- rando na cidade de Carçola, que parte com a província dos Gigan- tes. Disseram-lhes que encontra- riam o Preste na cidade de Carleo. Foram á cidade de Alves, e alli o acharam. Descripção da cidade, onde es- tiveram quatorze semanas. Viram o corpo de S. Thomé. q) De como- elegem o Preste João das índias. Ritual da eleição. Para alem ha uma terra em «que são sepulturas os filhos dos pães e os pães dos filhos porque comem uns aos outros». Partem. Atraves- sam a cidade de Edicia e vão até ao Paraizo Terreal. Vêem os qua- tro rios: «pelo Tigre saem ramos de oliveira e cyprestes; pelo Eu- phrates saem palmas; pelo Gion saem homens; e pelo Pison saem papagaios em ninhos pelas agoas». Vão á província dos Pintos «que são uns homens muito pequenos, como meninos de cinco annos e teem grandes guerras com os pás- saros». Voltam á corte do Preste. r) Carta que mandou o Preste João das índias em que conta cou- sas d'aquella terra. «Preste João das índias, rei de muitos reinos, etc. Fazemos saber que nós cremos em Deus Padre, Filho e Espirito Santo, Três Pes- soas e um só Deus verdadeiro. A todos os que desejaes saber que cousas ha em nosso senhorio vos habitan los gigantes e desde alli d la ciudad de Albes, residência dei Preste Juan. De Cananea vão a Luca: foram os quinze dias mais perigosos da viagem. De Luca chegaram a Albes «donde habita el Preste Juan». Descripção da cidade onde esti- veram três mezes. Vêem o corpo de Santo Tomás. CAPITULO VIII Del ceremonial que se observa para eligir ai Preste Juan, y de como el infante D. Pedro y los suyos hicieron una excursion por una tierra donde los hombres tie- nen el acento como el ladrido de los perros. Ritual da eleição do Preste. Vão ver de longe a terra dos idiotas em que os filhos comem os pães quando chegam a uma edade avançada. Vêem montanhas altís- simas, e ao pé d'ellas povoações circumdadas por quatro rios : o Tigre, o Euphrates, o Guion e o Fison que todos saem do paraizo terreal. Voltam á corte do Preste. CAPITULO IX Carta dei Preste Juan de las índias para el rey D. Juan el se- gundo de Castilla, en la que se le dá cuenta de los ritos y ceremonias de su reino y costumbres de los ha- bitantes que le pueblan. «Poderoso y cristianísimo rey D. Juan, salud en Nuestro Senor Jesucristo. Os hago saber que nues- tra ley es la de gracia, creyendo Appendice 375 dizemos que temos sessenta reis nossos vassaUos, e aos pobres de nossa terra os mandamos manter de nossas rendas. Haveis de saber que nossas partidas são três, índia menor, Abexins, e índia maior, e n'ella está o corpo de S. Thomé Apostolo. «Sabei que n'esta terra nascem os elephantes, camelos, leões e grifos, os quaes tem grandes forças que levam voando um bezerro, para que o comam seus filhos. Es- tes animaes, e outras espécies de serpentes andam no deserto, e os dromedários e camelos, quando são pequenos, os tomam nossos vas- sallos, e os fazem mansos para la- vrar a terra, e andar caminhos. Temos gente em uma província, que não tem senão um olho, e ou- tra gente, que tem dous olhos dian- te, e dous atraz, e quando algum morre os parentes o comem, são chamados Gostes e Mangostes, vi- vem detraz d'umas serras mui al- tas; dizem que nunca d'allí sahirão até que venha o Anti-Christo, e então sahirão com grande fúria: e são tantos, que os não poderão vencer as gentes do mundo, mas só DeUs mandará do céo, com que serão abrazados por suas cruelda- des. Em outra província ha gente, que tem um pé redondo, não são para pelejar, mas são bons lavra- dores. E ha outra geração, que não são maiores os homens, e mulhe- res que meninos de cinco annos, e não tem trabalho senão quando hão de segar o trigo, porque vem uma manada de grandes pássaros, e sahe o rei d'elles á batalha, e aquellas aves não se querem ir até que ma- tam muitas d'ellas. E perto d'estes fiel y verdaderamente en Dios Pa- dre, Hijo y Espíritu Santo, três personas distintas e un solo Dios verdadero. Y por cuanto si apeteceis saber las particularidades de mis exten- sos domínios, os manifiesto que tengo bajo mi autoridad 64 reys; me obedecèn 12 arzobispos, 3o obispos y 4 patriarcas. El dominio de mis tierras se extiende a dez mil léguas cuadradas, en las que tengo dos províncias muy impor- tantes, llamadas índia mayor é ín- dia menor, en las que se crian mucha variedad de animales y aves de tan grandes fuerzas, que sin perder el vuelo arrebatan dei suelo las reses y se las llevan ai nido para que comam sus hijuelos. Con los dromedários, elefantes, camel- los y unicórnios se labran los cam- pos e hacen las labores que nece- sitamos. «Tengo en mis Estados un terri- tório cuyos habitantes no tienen mas de un ojo en médio de la frente; quando muere alguno se lo comen entre sus parientes, á los cuales llaman gomeos; habitan en- tre dos sierras tan ásperas, qui ni pueden llegar hasta nosotros ni nos- otros á ellos por la profundidad dei valle en que se crian: siendo en tanto número los que hay, que si Dios no hubiera permitido que es- tuvieran encerrados alli por la na- turaleza, podian cubrirmucha parte de la tierra : habiendo tradicion que no saldrán de aquel sitio hasta que venga el Ante-Cristo. «Hay otra província con una classe de gentes que tienen los pies redondos; son pacíficos, y se ocupan nada mas que en labrar 376 Os filhos de D. João I ha outros, que são homens da cin- tura para cima, e da cintura para baixo são cavallos, comem carne crua, vivem de caçar, e moram no deserto como animaes. Mandámos trazer alguns d'estes, para que es- tejam em nossa corte. «Temos mais em nossa terra cem castellos mui fortes, e em cada um quatro mil homens d'armas, que guardam os paços e fronteiras d'aquella nação cruel de Got, e Magot,quesesahissemfórad'aquel- las serras destruiriam o mundo. «Quando nos vamos banhar, fa- zemos levar diante de nós uma cruz : porque nos lembremos d'a- quella em que foi posto Nosso Se- nhor Jesu Christo, e levam diante de nós uma tumba de oiro e vae cheia de terra. «E sabei que ninguém ousa men- tir onde está o apostolo S. Thomé, porque logo subitamente é casti- gado por milagre, e nas outras partes logo o damos por desleal, porque Deus mandou que cada um amasse ao próximo em boa lealda- de, e não fizesse engano com os que fazem fornicio, que se os prendem d'este peccado logo os matamos. «Outro sim nós íamos cada anno visitar o sepulchro dos Santos Pro- phetas antigos; e íamos a Babylo- nia em castellos feitos sobre ele- phantes (por causa de muitas ser pentes, dragos, leões, tigres e onças que ha no deserto) a visitar o se- pulchro do propheta David. «Também senhoreamos uma pro- víncia de Gigantes, que nos pagam tributo, e são homens tão altos como lanças, e se assim como são grandes elles fossem bellicosos e guerreiros podiam conquistar o sus tierras. En otra islã tengo una generacion, cuyas gentes son de la alzada de una vara, com corta di- ferencia, pêro son muy belicosos. En otra província hay unos cerros muy elevados, en los que se cria gente que de cintura arriba son hombres e de cintura abajo son caballos, y lo mismo las mujeres: estos pelean fortemente com los Sagitários, de los que hago traer algunos á mi corte por curiosidad especial; los demás nunca salen de sus montes. Tengo una província habitada por gigantes de la altura de dos hombres los que no me pa- gan tributo, aunque están á mi mando; si así como son de gran- des fueran belicosos y guerreros, pudieran conquistar el mundo; pêro son tan pacíficos, que solo se ocupan en labranza de tierra; sus antecesores fueron los que for- maron la torre de Babilónia. «Cuando tenemos que salir á campana no usamos otro estan- darte ni bandera que la Santa Cruz. Todos los anos vamos á visitar el cuerpo dei propheta David; y para pasar los desiertos arenales de Babilónia, vamos en castillos de madera puestos sobre elefantes para libramos de las muchas ser- pientes, dragones y otros anima- les que hay com siete cabezas, los cuales son muy voraces. «Cuatro meses en el ano vivimos com nuestras mujeres, y pasados, nos separamos hasta otro ano : esto se entiende los que somos sacer- dotes, pues los seglares viven siem- pre juntos: en las festividades de la Natividad de Nuestro Senor Jesu- cristo, Pascua de Resurreccion, Ascension y Natividad de Nuestra Appendice 377 mundo: mas Nosso Senhor lhes poz tal emhargo, que não se entreteem senão em trabalhar e lavrar a terra, isso lhes veio, porque queriam fa- zer a torre de Babylonia; dizendo que por ella subiriam ao céo. Des- tes temos alguns na nossa corte, para que os vejam os estrangeiros. «Os nossos paços são da maneira que os figurou o Apostolo S.Tho- mé a elrei Gudilfe: as portas de cedro do Libano e as janellas de crystal. Ante o nosso paço, temos um terreiro d'onde se escaramu- çam nossos donzeis. No aposento onde dormimos arde uma alam- pada de bálsamo, porque dá bom cheiro, e os leitos em que dormi- mos são encastoados em saphiras : isto fazemos por castidade. Em nossa casa assistem ordinariamente 12 reis, 12 arcebispos, 12 bispos, 12 patriarchas, e temos tantos ab- bades em nossa capella quantos dias tem o anno. Cada um diz missa por ordem em seu dia, e de- pois que a tem dita vão para um mosteiro, em razão da honestidade e recolhimento porque em cada sacerdote deve haver humildade. Sabei que em dia de Natal, Resur- reição, Ascensão e Nascimento de Nosso Senhor estamos em nossa corte, temos coroa mui nobre nes- ses dias; e fazemos pregação ao povo e outras solemnidades que duram quasi todo o dia; e á noute saímos tão abastados como se co- mêramos todas as viandas do mun- do. Estes milagres e outros muitos faz Deus por intercessão do bema- venturado S. Thomé. Estas cousas escrevo eu aos d'essas partes para que saibam o que se passa n'estas índias.» Senora, predicamos ai pueblo en público, exhortándole ai cumpli- miento de la divina Ley, y animan- dole á que resista las tentaciones dei commun enemigo. Administra- mos e guardamos muy recta jus- ticia, castigando a los maios y pre- miando á los buenos. «En esta forma, caro y amado hermano, gobierno estas provín- cias y en la misma creo dirigis las vuestras: así lo cree dei ceio Cris- tiano com que os juzga poseido vuestro hermano =El Preste Juan de las índias. 378 Os filhos de D. João I CAPITULO X s) De como o infante se despe- De como el infante D. Pedro se diu do Preste João e se tornou para despidio dei Preste Juan y se vino Hespanha. á Espana com su acompaíiamiento. Por Casopia, terra do Gudilfe, Do reino do Preste passam a vieram ao mar Vermelho, e de lá Capadócia «que pertence á Tur- foram ter a Fez d'onde finalmente quia», saindo d'ahi para o mar passaram aCastella,terminando-se Vermelho, atravessando o Egypto, a viagem. e embarcando em Alexandria para Hespanha, onde o infante foi ver seu primo elrei D. João, a quem entregou a carta do Preste. Da comparação das duas lições, a castelhana e a portugueza, vê-se o fundamento da suspeita enunciada por Innocencio, de que a primi- tiva redacção do livro fosse castelhana. Vários argumentos ha para isso. Na versão portugueza 'ommitte-se o nome do supposto destinatário da carta que é o rei de Castella, hypothese tão inverosímil n'uma lição originariamente portugueza que os traductores, a tel-os havido, teriam supprimido o nome de D. João II. Por outro lado os itinerários, na parte em que a viagem não é evidentemente phantastica, como é para alem do Sinai, são em geral mais completos e bem indicados na versão castelhana. Finalmente, n'esta constantemente se chama aos viajantes vassallos de Leão e Castella, denominação imprópria para um auctor portuguez escrevendo acerca de um infante de Portugal, e que syste- maticamente é eliminada na versão portugueza, onde só uma vez ou duas apparece. Por tudo isto, nós somos levados a corroborar a suspeita formulada pelo nosso bibliographo, e, acreditando na veracidade de parte da nar- rativa, não estamos longe de pensar que o primitivo texto, ou tradição, de Gomes de Santo Estevão, fosse reduzido a escripta por um redactor castelhano, o qual procurou chamar para o seu paiz a honra de viagens que em todo o mundo deram brado, e impressionaram a imaginação dos peninsulares, por forma a manter ainda hoje na tradição do povo a historia romantisada das sette partidas do infante D. Pedro. (O DOAÇÃO DA MARKA DE TREVISO AO INFANTE D. PEDRO Os diplomas transcriptos em seguida foram mandados extrahir, em 1872, por copia, dos Registros do Santo Império romano (Reichregis- tratursbúcher) que se conservam em Vienna, pelo cav. dArneth, a pe- dido do sr. M. dAntas, hoje ministro de Portugal em Paris, de quem o A. houve os traslados, e a quem n'este logar os agradece. Estes diplomas mostram que a doação do imperador Sigismundo foi feita em 141 8/9 em Constância. A primitiva doação, cuja carta au- tographa se encontra no Arch. nac. (Casa d'Evora, gav. 17, m. 6, n. 1) está transcripta no segundo dos diplomas agora publicados, que é a confirmação da doação de 1 4 1 8/9 feita pelo imperador Frederico III em Neustadt, em 1443. O primeiro diploma é datado de 27 de feve- reiro de 141 8/9: é a carta pela qual o imperador Sigismundo, um mez depois da doação da marka de Treviso ao infante D. Pedro, para si e para os seus descendentes, concede ao mesmo infante a pensão annual de vinte mil ducados ou florins de Hungria. Na doação de 1419 figura como logar tenente do infante Álvaro Gonçalves de Athayde; e na ratificação de 1443 apparecem os embai- xadores João Telles, cavalleiro da casa do infante, e Braz Affonso, ba- charel em direito canónico; ficando o primeiro em Treviso, como go- vernador, e regressando o segundo a Portugal, portador de uma carta de yEneas Sylvius, que depois foi papa sob o nome de Pio II, conforme se diz no texto. Duas palavras agora, quanto á data das concessões de 1418/9. A lira de Christo variou por muito tempo entre os paizes europeus, conforme o systema que cada qual adoptava, já para datar o anno do principio ou do fim, já para o começar no dia da Annunciaçao, no de Natal, ou no primeiro de Janeiro que veio a prevalecer. (Cf. Art de 38o Os filhos de D. João I vérifier les dates; prim. parte, § n ; e J. P. Ribeiro, Dissert. chron., n, 6.) Na Hungria usavam o anno do Natal, atrazando assim uma unidade na contagem do tempo, durante os nove mezes que separam os dois dias iniciaes. O anno de 1418, que nós dizíamos desde janeiro, diziam-no elles somente a partir de 25 de dezembro. Janeiro de 141S na Hungria corresponde, pois, a janeiro de 1419. Assim se explica o facto de D. Pe- dro estar no Algarve em 1418 (moda portugueza) e na Hungria em fe- vereiro da mesma data : é fevereiro do anno seguinte. (141 8.) 27. Februarius Sigifmundus etc. Notum facimus etc. Satis nobis cedit ad gloriam et Régie dignitatis faftigia fublimamus, Si ad Régie celfitudinis negocia confiliis utique promouenda non cafibus viros preclaros eligimus eos prefertim quos naturale fedus nobis non finit esse suspeitos, in quibus fanguinis ydemptitatem agnofcimus, et fidei puram conftanciam inve- nimus quorum quoque deuocio non folum preftitis placere cupit ob- sequiis, fed fperatur inantea, pocius placitura preftandis. Attendentes igitur inuiolabilem fidei et deuocionis puritatem quam Illuftris princeps petrus infans, Serenifíimi principis Carifíimi fratris noftri Regis Portu- galie, et Algarbii Secundogenitus Marthio Taruifinus, dux Cohimbrie et dominus Montifmaioris Confanguineus nofter Carifíimus erga nos conítanter nofcitur habuiffe, et habere se promittit in futurum, fibi animo deliberato fano principum, procerum, et fidelium noftrorum accedente confilio ac de certa noftra fciencia in recompenfacionem feruiciorum et complacencie noftro culmini exhibende per eum, Sum- mam Viginti Milium ducatorum feu florenorum Vngaricalium pro an- nua penfione de Camera noftra Regia fingulis annis perfoluendorum duximus deputandam et afíignandam deputamus et virtute prefentium graciofius affignamus, hoc videlicet modo et condicione interpofita, ut ab eo tempore et die quo idem Consanguineus nofter ad feruien- dum feu adherendum nobis, et eo animo de partibus portugalie verfus Curiam noftram Regalem, iter fuum conuerterit, quod extunc primum folucionem huiusmodi pense annue incipere, et eam fingulis annis foluere debeamus et teneamur, tam diu, quam ipfe in noftris feruiciis extiterit, aut in dicto fuo Marchionatu Taruifino tantam pofiefíio- nem bonorum et tenutam adeptus fuerit que fit fufficiens ad eandem Summam viginti Milium ducatorum feu florenorum aut partem eius aliquam annis fingulis perfoluendam. Qua poffeíTione apprehenfa feu adepta nos eidem confanguineo noftro ad foluendam abinde dictam fummam, aut partem eius iuxta ratam reddituum apprehenfe pof- feffionis feu tenute, efle nolumus obligatos nec aftriítos. Ita quod quantum ex redditibus poffeffionis huius modi perceperit tantundem nobis exfumma prefata minuatur feu defalquetur. Prefentium etc. Appendice 38 1 Maiestas. Datum Conftancie Anno etc. penúltima die februarii. — Ad mandatum domini Regis = Io. Kirchen. (1443.) SlNE DATA Fridericus dei gracia Romanorum Rex etc. Notum facimus tenore prefentium vniueríis, quod accedentes nuper noftre maieftatis prefen- ciam Strenuus Iohannes Tellez miles ac honorabilis Blafius Alfoníi in lure canónico Baccalarius Illuftris infantis petrj ducis Cohimbrie terui- fiijque marchionis principis et confanguinej noftri carifTimj procuratores et ambaffadores Serenitati noftre humiliter fupplicarunt quatenus cer- tas litteras per diue memorie Sigifmundum antecefíòrem noftrum tunc Romanorum Regem eidem Infantj Petro fuper marchionatu Teruifij conceffas approbare ratificare confirmare ac ipfum Infantem petrum de diíto marchionatu cum omnibus Iuribus et pertinencijs fuis de nouo inueftire graciollus dignaremur Quarum quidem litterarum tenor fe- quitur in hec verba In nomine fanâe et indiuidue trinitatis feliciter Amen Sigiímundus dei gracia Romanorum Rex femper Auguftus ac Hungarie. Dalmacie. Croacie etc. Rex Illuftri Infanti Petro Serenif- fimi principis Johannis Portugalie et Algarbij Regif fecundo genito duci Cohimbrienfi dominoque montis Maioris Confanguineo noftro ca- riffimo Salutem et amoris mutui continuum incrementum Auguftalis potencie monarchia cuius regiminj ex omnipotentis dej mirífica boni- tate quamuis insufRcientes prefidemus ad hoc noftrum animum follici- tudine cottidiana fatigat vt circa que facrj Romanj Imperij decus digni- tatem et gloriam felicibus incrementis. amplificam indefeffis laboribus et affiduitate continua meditemur. Ad hoc namque fauore altiffimi no- bis diuerse funt credite Naciones ut non folum eis Imperando preeffe fed eciam eas fouendo prodefle felicius delectemur. Inter alias igitur occupacionum curas quibus flucluantis pelagii more pro salubrj ftatu fubditorum nofter fpiritus cottidie fatigatur, occurrit cogitacionibus noftris Marchionatus Teruifinus principatus Imperij antiquus obse- quiofus et utilis pars eius preciofa qui Marchionis principis cura et re- gimine necefiaria fibi ab aliquamdiu Iam carens per inimicorum Impe- rij violentas preíTuras in dominiis Iuribus rebus et perfonis iniurias fusftinuit non módicas atque dampna Suntque ibidem lura imperij multipliciter diminuta Ne igitur talentum nobis traditum negligenter abfcondere videamur qui villicacionis noftre racionem fumus in examine diftridi Iudicis redditurj Ad hoc conuertimus aciem mentis noftre ut ad procurandum ftatum pacificum marchionatus ipfius follicite proui- sionis inltancia intendamus Quia tamen circa alias partes imperij ne- ceflario detinemur dignum arbitramur et confonum racioni ut qui circa plurima verfantes diftrahimur ad complementum felicis et debiti Regi- minis noftri príncipes nobis fociemus ydoneos, et in partem noftre foi- 382 Os filhos de D. João I licitudinis euocemus vt ibi vices noftras íuppleant et perfonne noíhe effigiem representent, vbi nos loci diftancia vel negociorum nobis in- cumbencium varia multitudo períbnaliter et continue adeíTe non per- mittit. hac igitur coníideracione communitj dum Marchionatus predictj et incolarum eius iniurias preiTuras et dampna ante óculos cordis noftri reducamus, nil confulcius nobis occurrit agendum quam ut ex omni- bus quos fide et virtute probatos nouimus ydoneum ei et utilem Mar- chionem deputemus Cumque circa permiiTa intentj vota noftra in di- uerfa meditando dirigimus uite tandem tutiffime quietis anchoram figimus quem miniftra natura viciniorem nobis idemptitate altj fangui- nis deputauit a quo eciam generofus ortus Regalis profapie omnem fcrupulum finiftre íufpicionis repellit, hijs igitur et multiplicibus alijs tue virtutis moti insignijs, tibi confanguineo noftro cariffimo quem in rerum gerendarum ftrenuitate confpicuum fingularibus donis graciarum omnium largitor deus fulciuit Quique cultor Iufticie et rebellium es Imperterritus debellator non per errorem aut improuide Sed animo deliberato. Sano principum comitum Nobilium noftrorum et Imperij facrj fidelium accedente confilio. volentes magnificencie et liberalitatis noftre múnus impendere et fignum in te oftendere perpetue caritatis Cupientesque in eo condicionem Imperij et ftatum facere meliorem aucloritate Romana Regia et de plenitudine poteftatis et de certa fcien- cia eundem MarchionatumTeruifinum fi opus et vetuftas que obliuio- nis eft mater id expofcit in Marchionatum reerigentes nominantes et reputantes ac nominarj et reputarj decernentes. damus tradimus et donamus in feudum Illuftre et lure feudj tibj recipienti pro te, tuisque filiis et heredibus omnibus ex te eis deícendentibus mafculis dumtaxat et legittimis Marchiam Teruissanam prediclam Necnon prouincias ciui- tates, terras casftra et loca comitatus territoria et diftriclus eiufdem cum prouincialibus vniuerfis populis inhabitatoribus et aliis degentibus in eadem Cum omnibus fuis Iuribus Iurifdicionibus mero ac mixto Im- pério ac gladij poteftate ac omnimoda Iurifdiccione temporal) que per nos et predeceflbres noftros diuos Romanorum Imperatores et Reges feu Marchiones Marchie predicle haclenus exercitata fuerunt aut exer- cerj poterunt vel polTunt lure uel coníuetudine ipecialj priuilegio, aut ftatuto et omnia et fingula que dicla Marchia tenet et tenuit, oflidet et poíTedit, uel quafi et que nos et predeceíTores noítri uel marchiones ipfius pro tempore exiftentes tenuerunt et poffiderunt uel quafj, Quod- que tu filij heredefque tui mafculi et legittimi per te uel eos, aut tuos uel eorum officiales Reflores et gubernatores quos deputaueris et ipíi poflea deputauerint Marchiam prediclam aut prouincias terras Ciuitates Caftra villas vniuerfitates populos inhabitatores et Íncolas ipííus et ipforum falubriter et lub menfura Iufticie Regere gubernare protegere debeas atque pofíis debeant et poflint Nos enim tibi ex nunc poffeíTio- nem marchie predicle ac prouinciarum terrarum Ciuitatum Caftrorum villarum et locorum ipfius aucloritate própria alicuius licencia uel con- Appendice 383 fenfu per hijs minime requifitis apprehendj capiendj et retinendj plenam liberam et omnimodam concedimus tenore prefencium potestatem et tendentes quoque fidelia per eum obiequia predeceiforibus noftris preftita, et que per ipfum ac suos heredes nobis et Império facro in futurum prestarj poterunt. Huiusmodi precibus tanquam racionabilibus et honeftis grato concurrentes aíTeníu animo deliberato fanoque princi- pum Comitum Baronum et procerum noftrorum accedente confilio Eidem Infantj petro et filijs fuis ac ex eo et illis defcendentibus mafculis predictas litteras luper eodem Marchionatu conceflas et omnia in eis contenta in omnibuis fuis fentencijs tenoribus punclis et clausulis prout de verbo ad verbum fuperius quantum de lure potuimus et debuimus approbauimus ratificauimus innouauimus confirmauimus et de nouo conceffimus ac tenore prefencium de certa noftra fciencia, necnona u- cloritate Romana Regia approbamus ratificamus innouamus de nouo concedimus et de fpecialj gracia confirmamus. Et nichilominus admaius predictorum Robur Iohannem Tellez profatum Recepto ab ipfo ante omnia vice et nomine eiufdem Infantis petrj nobis tanquam Romano- rum Regi et fuccefforibus noftris Romanorum Imperatoribus feu Regi- bus legittime promittente et Iurante fidelitatis et homagij debita in forma que inferius annotatur iuramento Seruatis folempnitatibus con- fuetis pro ipfo Infante petro et infantem petrum per eundem Ioannem Tellez de dicto marchionatu Teruisij, eiusque íuribus et pertinencijs vniuersis inueftiuimus et tenore prefencium inueftimus forma autem Iu- ramentj per dietum Ioannem Tellez preftiti fequitur in hunc modum Ego Ioannes Tellez Nobilis et Miles domefticus dominj mei infantis petrj Por- tugalie ducis Cohimbrienfis Marchie Teruisane Marchionis et Montis Maioris dominj etc. orator et mandatarius ad hoc plenum mandatum habens prout ex inftrumentis apparet nomine marchionis prefatj et pro eo luro ad hec fanéta dei euangelia per me corporaliter hic taéla quod ipfe dominus meus ab hac die et hora inantea fidelis erit et obediens vobis gloriofiffímo ac inuictiffimo principi et domino domino friderico dei gracia Romanorum Regj femper augufto ac Auftrie ducj etc. domino fuo graciofiffimo necnon omnibus Romanorum Imperatoribus fiue Re- gibus fuccelToribus veftris et ipfi facro Romano Império contra omnem hominem Et quod auxilium uel confilium nunquam dabit confenciet contra clatum vitam perfonam aut falutem veftram, et quod honorem veftrum fuccefforum veftrorum ac facrj Romanj Imperij pro pofle fuo fideliter procurabit dampnum quoque et periculum ftatus et perfone ac honoris et succelforum veftrorum ac facrj Romanj Imperij auretet. proditoribus et rebellibus veftris et fuccefforum veftris et fuccefforum veftrorum non confenciet ymo maieftatem veftram et succelforum eo- rundem in talibus ubi fciuerit fideliter premuniet et defendet ac vobis et veftris fuccefforibus pro viribus affiftet ac omnia alia et fingula erga facram coronam veftram generaliter attendet et efficaciter obferuabit que fideles facrj Romanj Imperij Marchiones diuis Romanorum Impe- 384 Os filhos de D. João I ratoribus fiue Regibus fecundum facras leges et laudabiles confuetu- dines Iurare et preftare tenentur et que per antecelTores fuos eifdem in Robur et confirmacionem conceffionis predide Nobilem virum Alua- rum Gunfaluj de Tayde domus tue gubernatorem Recepto tamen ab ipfo ante omnia vice et nomine tuis nobis tamquam Romanorum Regi et succeflbribus noftris Romanorum Imperatoribus et Regibus legittime promittente et Iurante fidelitatis et homagij debito Iuramento et fer- uatis modis debitis de dieta marchia pro te et te per illum Inueftiui- mus et virtute prefencium Inueftimus et in fignum perpetue dileccionis et fidej ad ofeulum pacis admittimus. Volentes te marchionem predi- ctum filios et heredes tuos prediclos tamquam Imperij vaffallos legit- timos et ydoneos ad inítar aliorum Imperij principum Marchionum et vaiallorum circa Marchiam prediclam et lura ipfius in quantum poííu- mus manutenere protegere ac perpetuo defenfare Ita tamen quod tu filij et idem heredes tui occaíione marchie predicle noíbros et Romanj Imperij feudales et vafallos uos effe recognofeatis et fateamini mani- fefte et ad seruiendum ac adherendum nobis et facro Império in Italie partibus et alijs dicto Marchionatui conuicinis adverlus quofeunque re- belles, nobis et Império ac. alias ad noítrum et Imperij facrj honorem et decus adinftar aliorum principum marchionum et vafallorum requi- fitj teneaminj et paratj fitis Sine contradicione exeufacione aut fubter- fugio aliqualj et tociens et quociehs oportunum fuerit a nobis et fuecef- foribus noftris marchionatus predictj Inueftituram recipere et racione ipfius fidelitatis et homagij nobis Juramenta corporalia et confueta preftare teneaminj et debeatis dolo et fraude quibuslibet proeul motis Mandamus igitur vniuerfis et fingulis Comitibus nobilibus Militibus Clientibus prouincialibus vniuersitatibus populis communitatibus et in- habitatoribus dicte Marchie Teruifane quatenus tibi filijs et heredibus tuis mafeulis et legittimis antedidis in omnibus et per omnia obediant pareant et intendant ac obedienciam et reuerenciam debitam preftent et exhibeant Nec non uobis et officialibus Recloribus et gubernatoribus ueftris et a uobis deputatis de omnibus Iuribus oneribus et emolumen- tis refpondeant "que ibidem per nos predeceífores noftros Marchiones officiales Rectores et gubernatores marchie prefate percipj conluerunt lure confuetudine ftatuto fpeeialj ac priuilegio uel alio quouifmodo Pre- fencium fub noftre maieftatis Sigilli appenfione teftimonio litterarum Datum Conftancie prouincie Maguntinenfis Anno domini M° cccc0 de- cimoodauo Vigefimafecunda die Menfys Ianuarij Regnorum noftrorum Anno Hungarie etc. xxxj.° Romanorum vero oclauo Nr.s autetu, et fi vniuerforum fidelium quos imperij facrj latitudo compleefitur felicibus profeclibus grátis comodis et fperatis augmentis fauorabiliter intenda- mus ad illorum tamen profectus et cómoda diligentiorj ftudio clemen- cius inclinamur quos tum altitudo fanguinis. Cum meritorum magnitude Ceteris anteponit Ea propter confiderantes eiusdem Infantis petrj idem- ptitatem altj fanguinis qua nobiscum natura coniunxit ac generofum Appendice 385 ortum regalis profapie quem clare memorie Iohannes quondam portu- galie et algarbij Rex post primam fobolem in medietate progenuit At- Romanorum Imperatoribus fiue Regibus veftris predecefibribus Iurari funt folita et prestarj et que in Iuramento fidelitatis in corpore facra- rum legum inueniuntur expreíla íicut eum deus adiuuet et haec fancla eius evangelia Quocirca vniueríis et fingulis Comitibus Nobilibus mili- tibus Clientibus provincialibus vniuerfitatibus populis communitatibus et inhabitatoribus dictj marchionatus Teruifanj harum ferie mandamus quatenus Infantj petro predicto tanquam eorum vero marchionj eiuf- que filiis et heredibus fuis mafculis et legittimis antediílis in omnibus et per omnia Iuxta tenoriem preinfertum prefati Sigismundj litterarum obediant pareant et intendant eifdem Infantj petro et heredibus fuis prefatis ac eorum officialibus gubernatoribus et Recloribus obedien- ciam et reuerenciam debitam preftent de omnibus Iuribus oneribus et emolumentis dicYi marchionatus integre refpondentes, Imperij tamen facrj ac omnium praelatorum et quarumcunque ecclefiarum aliorum- que Iuribus in permiffis omnibus femper faluis Prefencium fub noftre maieftatis Sigilli appenfione teftimonio litterarum Datum in Nouaciui- tate Salczburgenfis diocefeos etc. (D) CARTA DO INFANTE DOM PEDRO ASSEU IRMÃO O Pr.* DOM DUARTE escrita de Bruges Por Vós me foi mandado em hum vosso regimento que depois que Entre an. 1.1:4 fosse em esta terra vos fizesse hum escripto davisamento tal como o e an- '42?- outro que me Vos destes; e amym parece Senhor que principalmente por três embargos eu sou muito torvado de o fazer. O primeiro pela auctoridade de Senhoryo que vos sobre mym avees e o segundo pela maioria da idade, e o terceiro pela melhoria da bondade e syso; mas porque som ensinado daquel Doctor cuja ensinança nunca fallece, que milhor he obediência que sacrifício per obedecer a vosso mandado var- laventeando contra aquestes embargos, e contra occupaçao doutros grandes cuidados que deprezente tenho, vos escreverei o que me pare- ce ; pêro Senhor, que eu esgardo em vos dobre três pessoas. A pri- meira he vos singularmente, a segunda he o Senhor Rei e vos com toda acomunidade de Vossa terra : quanto Senhor ao singolar ou não sei que escreva ; porque segundo era minha partida espero em Deus que sempre será milhorado ou mais veja de q. me maravilhar e que deze- jasse de seguir, que cousas que podesse para emenda avizar. Quanto Senhor ao Comu escreverei algumas cousas nas quaes antes de minha partida por vezes vos falei, e algumas outras que me pareceram depois que dela parti. Muy alto e muy honrado Príncipe e muito prezado Senhor, porque todo o mundo confeça que todallas mercês e galardões nos vem de Deus, e nem hum Senhor galardoa ao Servidor por comprimento de sua própria vontade mas por fazer aquelo que a seu serviço pertence ; [porem ser por dó] Deos galardoar adereçando bem todolos vossos fei- tos, deveis ter cuidado de emcaminhar aquelles que mais principal- mente são seus, e estes som os que pertencem a Igreja ou a Clerizia, e porque a bondade dos Prelados fas grande emenda em os súbditos e estes igualmente não são feitos em vossa terra senão por vosso senti- mento e autoridade; Pareceme Senhor, deveis de ter maneira como em vofa terra os aja bons e feitos direitamente: e de como eu entendo que 388 Os filhos de D. João I d) Segue-se se isto devia fazer vos leixey hum escripto (i), que fiz por vosso man- adiante. da j0. Pareceme Senhor que de em isto terdes bom geito fazeis grande serviço a Deos o qual não ficará sem bom galardão, [e não duvido que por parte de pena vos vir, que alguns daquelles que por em esto muito trabalhastes vos obedecem menos e hão de vos mais pouco conheci- mento,] e isto Senhor não se escreve polo do passado, mas por aviza- mento do que hade vir, e porque vos Senhor sabees quão pouco ser- viço de Deos he e grande embargo a vossa justiça os muitos Clérigos de ordens menores, asi com os Prelados que agora sam como com quaisquer outros que despois vierem deveis de ter maneira que nom desem ordem senão a homeem que quizesse ser Clérigo fazendo lhe antes que as ordens menores filhase certo que filharia as ordens Sacras, e se seus Prellados em esto não quizessem acordar, ao menos facão muito que nam dem ordens a nenhuma pessoa que nom saiba falar latim; porque segundo vi e ouvi dizer a outros para nas terras despanha he ávido por grande mingoa, [e mais pertencentes serem ordenados,] e para se os Prelados não escuzarem, que por mingoa de latinados não poderão ter esta ordenança ami parece que a Vniversidade de vossa terra devia ser emendada, e a maneira vos escreverei segundo ouvi dizer a outro q. nisto mais entendia que eu. Primeiramente que na ditta Vniversidade ouvesse dous ou mais Collegios em os quaes fossem mantheudos escolares pobres e outros ricos vivessem dentro com elles a as suas próprias despezas, e todos morassem do Collegio a dentro, e fossem regidos por o [muito?] que de- tal Collegio tivesse carrego : a ordenança [desto] he tal. Em a Cidade de Lisboa e em seu termo ha da Vniversidade sinco ou seis Igrejas e em aquestas se podião bem fazer outros tantos Collegios, e a cada hum que tivesse hum Vigário, que desse os Sacramentos, e dessem aeste manti- mento pertencente da egreja eo mais fosse. . .que para aquelle Collegio fossem deputados, e estes dormissem em hum paço que tivesse Cellas e comessem juntamente em bum lugar, e fossem çarrados de so huma clauzura. Aquestes, Senhor, despois que ouvessem dous annos em a Vni- versidade fossem graduados e lessem por juramento e avendo elles tal criação com ajudorio de graça de Deus serião bem acostumados ecle- siásticos, e ainda os Bispos com seus Cabidos poderião fazer cada hum Collegios para seus naturais e os Monges pretos outro só pêra si, e os Cónegos Regrantes outro, e os Monges brancos outro, e ordenassem estes Collegios por maneira desde Vxonia e de Paris, e asi crecerião os Letrados e as Sciencias, e os Senhores acharião donde tomassem Ca- pelães honestos e entendidos, e quando tais promovessem não serião desditos, e ate disto se seguiria que vos achareis Letrados para offi- ciaes da Justiça e quando alguns vos desprouvessem teríeis donde tomar outros, e elles temendose do que poderia acontecer servirião melhor e com mais diligencia: e destes viriam bons beneficiados que serião bons eleitores, e deshi bons Prelados, Bispos : e outros aquesto havia mester Appendice 38g bons hordenadores em o começo, e pareceme Senhor, que se avossa mercee isto quizesse mandar avería grande honra a terra eproveito por azo da Sabedoria que deve ser muito presada, que a muitos tirou e tira de mal fazer; mas devião ser tais ordenadores, que ja estiverão em as dittas Vniversidade, bons homens e avizados dos costumes, ou mandardes a alguém que vos escrevesse o regimento dos ditos Collegios. Pareceme Senhor que pois que por autoridade do poderio que vos Deos deu vos tendes poder de dardes administração de muitas alberga- rias e Capelas, que as deveis de dar a tais pessoas, que as ministrassem a Serviço de Deus, porque eu entendo que vos lhe fareis mor serviço em administrardes e regardes bem a poder vosso o que derão os que passa- dos sam, que de lhe dardes quanto de presente lhe não podereis dar; e em contrairo disto geralmente em vossa terra he costume de se da- rem aquém as destruía; e por não ficar cousa que gastar uzão mais em qualquer Lugar hu vos chegais onde haja albergarias ou outras seme- lhantes Casas, que a Deos pertenção, se dam avossa Cadea, e os prezos e os outros rompem a roupa e estragam todo o que ha em a Caza, em tal guiza que tarde se poderá emendar segundo antes era corregido. Senhor não deveis esquecer a muito principal parte das qualidades que hão os Religiosos, e em os quais vos ainda podeis ser mais Prelado que em outros Clérigos, e se elles não trabalhão por serem entendidos e honestos e sezudos, vos podeis mandar chamar seus maiores e dizer- lho, e se virdes que levão ofeito á decima e não curão hum Prelado, que vos o mandeis tirar, e dizer ao Provincial e Ministro que asi fareis a elle, ou que não tomais tal cuidado d'elles senão pela grande affeição que aelles aveis entendo que os corregeis bem asas. Dos Fraires, mandar que nenhum Fraire não coma em Camera se não for por notável necessidade, nem durma senão em comu dormitó- rio, e asi doutras cousas das quais alguns poderião informar vossa mercê. Prelado entre os Fraires nunca o seja, senão o que for inlecto, e se algum vier por carta não curem delo se não se prouver aos Fraires, e sempre senhor antre os Prelados me parece que devem ser mais pre- zados os velhos, que por grande tempo bem viverão, que os mancebos sobejamente honestos, que muitas vezes o Sol em seu começo fervente traze chuva, e o que he menos claro dura todo o dia. Antre os Fraires deve ser muy esquivada a ociosidade, que as oras não são muy grandes; pêro assas nom he ao mancebo de as rezar; mas podem escrever, ou se oceupar em outras cousas em guiza que a Vida não seja tão seguida de quem não cumpre. Senhor, de vos em estas couzas que a Igreja pertencem filhardes au- toridade, se o fizeseis com tirania ou temporal cobiça, eu não seria em conselho e averia por mal a quem quer o fizese e se o fizerdes com en- tenção de fazer serviço a Deos, e com accordo dos Prelados e doutros homens sezudos, que a vosso parecer sejão de boa conciencia, eu en- tendo que elle vos dará por ello bom galardão. 390 Os filhos de D. João I Falando Senhor nas cousas temporais a mi parece que o regimento de toda a Republica vem das quatro Virtudes Cardeaes, e destas algu- mas entendo que não são em esse Reino em boa perfeição. Primeiramente, falando da fortaleza, porq. os Reinos são defezos e acrecentados, ami parece que no nosso não tem delia cuidado, mas antes ha hi muitos azos porque detodo faleça, porque a fortaleça des- pois dajuda de Deos e dos bons corações, está em a multidão da gente e em ser bem corregida, e em quantos mestrias se buscam em vossa terra pêra os que em ella são se hirem pêra outra, e os que em ella não são averem muy pequena vontade dese hirem pêra ella, vos opo- dereis claramente conhecer, eisto mesmo quantos azos hão vofsos Va- salos e os acontiados pêra serem mal corregidos. E a maneira em breve, Senhor, como me parece que se isto pode- ria emendar, seria primeiramente esquivar a despovoraçao da terra es- cuzandoos perigos e os em carregos e trabalhos em que sam postas as gentes dela sem necessidade, e com grande dano, e tirando algumas ou- tras Leis ou ordenações, que a elles agravão, [que não seja grande e quanto de terra,] nem muito serviço ao Senhor Rei, e nosso. Do dano e empacho que faz a multidão sem ordenança dos Vassa- los avos o ouvi primeiramente razoar que a outro nenhum; e por onde Senhor ami parece que vos deveis ordenar hum certo conto delles em toda vossa terra repartindo os pelas Comarcas segundo entendeseis que a cada huma era compridouro, e desto não fossem acrecentados por rogo nem requerimento, que alguma pessoa podesse fazer: e porque Senhor elles soyão aver dous proveitos, hum era de serem previlegiados; e ou- tro era por averem contias, e assi tinham dous encarregos, um de terem armas e outro de terem Cavalo, ami parece que a cada hum proveito devia ser apropriado seu encarrego, e porq. vossa terra he muito des- feita de Cavalos e segundo o estado em que era quando eu de la parti, nom penso que ainda agora seja melhorado, eu entendo, que avos será mais pouco empacho de lhe gardares os privilégios, que de lhe dardes as contias ami parece que deveis ordenar que todolos Vassalos, que não são homens Fidalgos, nem forão nas guerras passadas, se quizerem aver os privilégios que tenhão Cavalos, e se lhe derdes as conthias, que tenhão armas; e se se podesse ter maneira como elles as conthias ou- vessem, entendo que faríeis muito de vosso serviço, e grande defençom de vossa terra, e não me parece que deve ser sem grande pena da vossa autoridade o bem que vossos Avos ha tão grande longo tempo orde- narão e se manteve ate agora, em vossos dias fallecerem. Sobre as armas e Cavalos que tem as gentes dos Concelhos são fei- tas tantas e tão boas Ordenações, que não saberia hy ai devisar se não que se tivesse maneira como se melhor executase e a maneira he esta. Pareceme Senhor que deveis ordenar aos Coudees do vosso, ou do Conselho, certo mantimento que fosse tal que elles ouvesem vontade de servir os officios ainda que delles não ouvessem outro proveito que Appendice 39 1 fosse contra vosso serviço; qua vos Senhor sabees bem que o q. em tal carrego ouver de servir, que tem assas de grande trabalho asy do Corpo como do entendimento, e os homens que sezudos são, e uzão de razão (que jandos devem ser aquelles aque tal encarrego derdes) non trabalhom de boamente sem esperança de ganho e proveito; e porque vos não ordenaes a esto ganho certo, elles os tomam desordenado quebrando e e passando vossas ordenações e regimento, com grande damno e gasta- mento de vosso povo : e ainda me parece que pêro em esto facão mal que tem razoada escuza dizendo que se o nom fizerem que se nom podem soportar com os encarregos que lhe vos dais, e dando-lhe man- timento não teriam razão de esto fazerem, e vos teríeis razom de os pe- nardes quando os achareis em erro. Sobre todolos feitos, que pertence a Coudelaria, e aos Coudeis, devíeis de dar carrego a hum homem em vossa terra segundo que creio que o tendes dado, mas devia deser tal que nom tivesse outro Carrego misturado com ele, e que o servise muy fielmente, e se o achaseis em erro passadas duas ou trez amoestações por grande pessoa que fosse, logo lhe tirardes o officio, e dardelo aoutrem. Outra parte Senhor da fortaleza esta no repairamento e garnição das Villas e Castellos e boa guarda dos Almazães; e açalmamentos que estão em elles e a regra q. eu athe agora vi ter em vosso Reyno sobre tudo isto he, que as obras necessárias são muitas vezes esquecidas e so- bre as voluntárias se dá grande trabalho ao povo e se faz grande des- peza, e ainda Senhor me parece que o trabalho que lhes he mandado que elles hajão de rilhar, se fosse por costrangimento razoado, que lhe seria de pouca pena porque as obras que se igoalmente fazem por vos- sa terra ao mais os homens, que hão de servir, são constrangidos hum dia no mez, e ainda que o sejam ou fossem dous dias no mez por al- guma cousa que fosse de maior necessidade, se os requeressem e cons- trangessem pêra elo asy como devem, certamente elles a não averiam por graveza grande, onde em vossa terra se acerta de a elles darem dous e trez dias a hum sojeito não lhe será empacho de os darem em al- gumas cousas, que sejão seu proveito, e defençom, e detodo o Reyno; mas a maior parte dos seus agravos nasse dos dezordenados constran- gimentos, que lhe fazem os Vossos officiaes e por ende Senhor, como dice dos feitos das Coudelarias, assy digo das obras e dos dezembargos, delias, vos deveis dar carrego a outro homem que fosse bom e de boa auctoridade, que os feitos meudos dezembargasse, e dos grandes vos fizesse recontamento pêra vos em elles dardes dezembargo segundo en- tendêsseis por vosso serviço. Quanto, Senhor, dos Almazães eu creo q. de poucos annos aca são muitos mais dos que eram antes mas eu não duvido que algumas for- talezas onde foram repartidos por mingoa de trez ou quatro taboas de que fizeram um almario em que estiverão guardados os açalmamentos, ou por outra tão pequena despeza, muitos delles serão agora perdidos, e o remédio desto e doutras muitas couzas seria guardarse bem o regi- 392 Osjilhos de D. João I mento que he dado aos danadores, que se chamam Corregedores das Comarcas, mas eu creo Senhor que elles vem também este Regimento como ouvy contar ao Senhor Rey que Gonçalo Peres vira hum que lhe elle dera, que nunca o tirou de uma arca ateque acabou de todo o que lhe elle mandara fazer. E outro muito especial proveito a todos os fei- tos de vossa terra cada hum anno ou ao menos de dous em dous annos andardes vos por todalas Comarcas dela, e levásseis com vosco boa gente, e nom muita e isto me parece que devia de ser avos e aos da vossa Corte desemfadamento, e aos bons de vosso reino proveito e pra- zer, e aos máos castigo e espanto, e os outros bens que se disto segui- riao me seria longo descrever. A Justiça Senhor que he outra virtude me parece que não reina nos corações daquelles que tem carrego de julgarem a vossa terra, a fora no do Senhor Rey e no vosso se mais são eu nom som certo : e ainda me parece Senhor, q esta Justiça que asy he em vossos Corações não sahe de la fora, como devia sahir, porque não somemte vos devíeis querer que em toda vossa terra se gardasse a todos direitura, mas ainda orde- nardes como se fizesse: e esto seria ordenado que os que ouvessem de ter carrego de vossa Justiça fossem bons e temessem mais a Deos que avos, e mais de perder a vossa mercê que de todalas outras affei- ções nem proveitos mal gançados; e quando estes servissem como de- viam, recebessem conhecidos galardões, e osq. fizessem o contrario e vos dello fosseis certo como agora sois e fostes dalguns outros, não es- caparem dalguma pena; ca bem sabereis Senhor que vos sois posto no mundo por autoridade do Apostolo pêra louvor dos bens e vingança dos máos, e se desto bem uzardes não sei mais outra sufficiente regra pêra melhoramento de todolos que ouverdes de reger. Pareceme Se- nhor que a Justiça tem duas partes: numa de dar a cada hum o que he seu, e a outra darlho sem delonga; e ainda que eu cuido q. ambas em vossa terra igualmente falecem, da derradeira som bem certo e esto faz tão grande dano em vossa terra que a muitos feitos aquelles que tarde vencem ficam vencidos: e eu vejo em vossa Corte muitos Officiaes de Justiça, e de todolos elles sayr poucos dezembargos, e pareceme que se pode destes e tal multidão dos Cortezaos de que vos diante escre- verei bem firmar o dito de Izaias Multiplicasti gentem sed non magni- ficasti laetitiam. Bem creo Senhor que se tivessem vontade de dezem- bargar e fossem diligentes em seu officio, que farião mais que sincoenta que tal vontade nom tem : e pareceme Senhor, pêra abreviamento dos feitos: aproveitara muito seguirse a maneira que o Senhor Rey ordenou sobre o Bartolo, com tanto que o livro seja bem ordenado e corrido por [decos vos] doctores afora aquelle que o trasladou, e isso mesmo de as Leis e Ordenações do Reino serem providas e atituladas cada huma daquelo a que pertence, e se antre ellas fossem achadas algumas que já fossem revogadas, que as tirem pois que delias não hão duzar, e as boas ordenações se guardassem nas cousas sobre que são feitas. Appendice 3g3 Da virtude da temperança e do que se faz, ou fizer contra ella deixo Carrego aos Pregadores e Confessores de o dizerem, porem que me parece que a respeito das outras terras que eu vi, ela he na vossa em milhor ponto que em huma das outras. Contra prudência que he mais principal eu vejo nella assas derros porq. delles escreverei poucos, e delles he principal huma dezordenança de que se seguem em vossa terra grandes empachos, que poderia ser bem remediada; e isto he da muita gente que tomam sem esgardo o Senhor Rey evos e nos todos vossos Irmãos pêra suas Cazas, e por este azo todolos outros Senhores da terra, e todolos males que se desto seguem vos não poderia escre- ver mas trazervos ey alguns. [O Senhor Rey e vos e nos outros todos sobreditos fazerem tão grandes despezas, que a terra o nom pode so- portar, e por esto se lanção peytas e outras imposições porque ella he que em qualquer Villa ou Lugar que vos pousais per azo da pousadoria a gente da terra perdem suas cazas e suas roupas, e nem as querem mais recobrar, e por esto em todo lugar os vossos são ja igualmente mal apousentados.] Outro he do perdimento das bestas dos lavradores, que se requerem muitas, quando andais caminho por este azo. Outro he a terra e todolos Fidalgos delia serem mal servidos por- que nenhum se contenta de aprender do Officio que seu Padre avia, nem de servir outros Senhores, se não lançaremse á Corte em espe- rança de serem escudeiros dei Rey ou nossos, ou de cada hum de nos- sos Irmãos, e ainda por isto eu vi alguma vez ao Senhor Rey e a vos tão gastados, que ainda que quisésseis fazer bem e mercês a alguns outros a que éreis theudos, ou fazer alguma outra boa obra, não tinhais tal geyto para o fazer; e se esta gente he tomada pêra bom gardamento e pêra vos fazerem serviço, amy parece desto muito contrario porq. por ela asi ser muita as couzas lhe não são dadas como lhes he mester, e porem ainda q. vos queirão servir e agradar nom o podem fazer, e se o fazem he com tamanha tristeza e aborrecimento que eu entendo que seu serviço he a vos mais de nojo que de folgança. Ainda Senhor que outros empachos nembrassem, por agora eu en- tendo que estes são tão grandes e claros que mais nom compre escre- ver. Senhor o remédio destes males seria o Senhor Rey e vos, e to- dolos que vivemos sob vossa Ordenança, não filhardes gente se nom aquella que vos era compridoira, e os que tomásseis por escudeiros fossem homens fidalgos e de boa linhage, e da outra somenos não fosse posta em este gráo nehum, salvo por algum estremado serviço que fi- zesse, e asy se teria cada um por contente de servir o que lhe per- tencese. Do que sentyra dos feitos de Cepta por alguma vez Senhor volo ra- zoei, mas a concluzão he que emqusnto asy estiver ordenada como agora esta que he muy bom sumidoiro de gente de vossa terra e dar- mas e de dinheiro, e segundo eu senty dalguns bons homens de ingra- 394 Os filhos de D. João I terra dautoridade e daqui deixão já de falar na honra e boa fama, que em asy terem, e falam na grande indiscripção que he em a manterem com tão grande perda e destruiçom da terra, do que amy parece que elles hão muito peor informação do que ainda he. O remédio desto Se- nhor por muitas vezes o falastes e o sabeis melhor do que vos eu po- deria escrever; pareceme Senhor que faríeis serviço de Deus e vosso ordenando sem delonga. Pois Senhor que aqui não ha novas de mudação de moedas porque he cousa que se costuma fazer em vossa terra, e vem delo grande mal a todolos aquelles a que vos sois theudo de fazer bem, e se segue delo grande proveza á terra: pareceme Senhor que deveis muito de requerer que se não faça. Senhor bem sabeis quanto presta o bom conselho que he theudo e ouvido em boa ordenança, e de homens bons e sezudos, por onde me pa- rece Senhor que todos vossos feitos asy e com tais devião ser sentencia- dos, e asy Senhor com este Conselho como na vossa relação me parece que devíeis ter homens de todolos estados de vossa terra asy de Clerezia como de Fidalgos e do povo por vos aconselharem que não ordenásseis cousa contra seus proveitos, nem em quebranto de seus bons privilégios ; que eu ouvi dizer que por mingoa de nom estar nenhum Fidalgo na vossa relação huma vez em Monte mor se ordenou tal couza, que, se pafsára, fora bem grande agravo aos Fidalgos contra suas Liberdades antigas. Senhor uma uzança vi em algumas cazas dalguns Senhores de vossa terra, e porque nom seja de mesturar com tão grandes feitos como es- tes já escriptos; porque me sempre desprouve delo e he contra o que sempre ca vy uzar volo escrevo : a qual uzança he que os Officiaes que mais chegados as suas pessoas são servidos de gente muy pequena e de muy pouca valia, e desto se segue que os bons e de grande estado se descontentâo de os servir como devião, e os pequenos se alterão pelo lugar que a efses dão. Bem sabees Senhor como em vossa terra ha muy poucos Cavalos, o que he grande mingoa a terra onde os não ha pêra os feitos da guerra ; e pareceme Senhor que seria bem ordenardes como os em ella ouvesse, e a maneira que em elo podereis mandar ter he esta: nas Comarcas previligiardes certos homens, que os tivessem e os lançassem a cavala- gem a algumas boas egoas, ou ao menos a alguns, que som acontiados em armas, e Cavalos, mandardes que tenham Cavalos e nom armas, e que os lancem as ditas egoas aos tempos que cumpre ; e estas ordenan- ças se devem Senhor fazer documento e nom com grave constrangi- mento por se a terra nom sentir por agravada, e todos terem vontade de fazer aquelo que lhe he mandado. Senhor de muitas destas couzas eu bem creo que atá agora fui grande parte ajudador; mas prouvesse a Deos que todos tivessem tal vontade de ser emendado, que eu tenho, e com a sua ajuda entendo que o seria em breve tempo; e se me dela party huma das razoes foi Appendice 3g5 por mais não ser em culpa delles, e ainda que eu bem sei que por azo da minha partida o Senhor Rey e vos tendes agora mais encarregos, se me Deos encaminhar bem e minha vida aqua ou ala tornar dasesejo, eu espero nelle de vos escusar daquclles que por meu azo tendes de prezente, e ajudar em toda outra couza que eu sentir que he vosso ser- viço, e emenda daquestes empachos. Se estas couzas que aqui escrevi nom som boas nem bem razoadas, eu vos peço por mercê que vos me nom ajais por culpado porque eu nom o sey melhor entender, e se o fiz foi mais por comprir vosso man- dado que por aver vontade de por agora falar em taes couzas. Vosso Irmão e Servidor. = Infante D. Pedro ' . PAPEL DE Q. SE FAZ MENÇÃO NO ANTECEDENTE E DO MESMO, ETC. J. H. S. A maneira que me amy parece que se devia ter pêra averem os Bis- Entre an. 1424 pos na terra que regessem o povo em espiritualeza seria esta: Primei- e an- '428- ramente os Senhores Rey e Infantes firmemente propoerem de nom promover nem darem consentimento a ser promovido a Episcopal di- gnidade algum por lynhagem nem serviço temporal, nem peditórios nem singulares affeições : propoerem mais e muito firmemente o terem que toda a pessoa ainda que digna pareça, se per sy ou per outrem movido pêra ele requerer Bispado, q. seja ávido por nom pertencente. Devem nesta mesma tençom e propozito ser os outros Senhores principais da terra e saberem muito certo, que sua petiçom áquelle porque for feita pode empecer e nom prestar; e ainda por tirar azo das importunidades das aficadas petições dos Senhores em esto cazo asy o devião ter por detriminado os Senhores Rey e Infantes de nunca darem beneficio a qualquer porque algum destes pedisse verdadeiramente, como se a pessoa pêra sy pedisse. Deviam defender a todos seus naturaes que nenhum supplicasse por Bispado nem Arcebispado, poendolhe a maior pena que podessem por a quem o contrario fizesse, e em fim por detriminado que ainda que fosse provido que lho non leixarom aver. Ainda que o Papa proveja algum de fora, ter a mais honesta maneira que podesse ser theudo e toda via não aja algum por outra maneira, salvo por esta que aqui será divizada. Tanto que se vagar algum Bispado ou Arcebispado, os Senhores Rey e Infantes escreva logo ao Cabido da Igreja vaga que elles entre sy estremem a mais pertencente pessoa, que souberem em seu Reyno 1 Arch. nac. — Collecçáo de cartas — N.° 6 — Tomo 6.°, pag. 253 a 272 (n. a lápis) Este documento e seguinte foi tirada de copia antiga, mas muito pouco correcta. 396 Os filhos de D. João I pêra aver aquella dinydade, e que lho escrevão nom fazendo solene in- leição, e que se avizem de nom estremar algum que por sy ou por ou- trem lhe requeira que o estremem. Se aquelle que estremarem os dittos Senhores for convinhavel pêra tal estado, escrever lhe hão que lhes parece pertencente pêra elo, e que facão em ele sua inleicão, e que elles, lhe darão suas suplicatorias pêra o Papa. Se a pessoa que primeiramente estremarem não parecer aos dittos Senhores pertencente, escrevão ao Cabido que aquela pessoa asy nom parece dyna, que estremem outro nom lhe nomeando algum ainda q. lhe por o Cabido seja requerido que lhe declarem sua vontade, e esta maneira tenha com todos os que estremarem, ata que estremem tal que segundo juizo de boa conciencia o mereça. E ainda que pola ventura mais dyno possa ser achado segundo hu- manai entender, se o estremado pelo Cabido parecer bom, não seja feita mais perlonga ou embargamento, por nom ser prezumido aver hy af- feição necessária. Para esto se bem fazer, devem se guardar os dittos Senhores de pro- metimento de palavra nem propoimento de vontade a alguma certa pessoa, porque ainda que fizessem a algum por sua bondade, em breve poderia ser achado nom dyno; e se promessa fosse feita nom falece- rião de dous inconvenientes, ou falecer do prometido, ou Comprir nom justa promessa, que era mayor mal. Onde a inleicão fosse feita com acordo dei Rey e dos Infantes elles dessem ao inlecto suas suplicatorias, e o Cabido as suas, e a Cidade as suas, e de razão nem de feito nom seriam refuzadas por o Papa ; e o Prelado que por tal porta entrasse poder se hia chamar bom Pastor, e non roubador, e Ladrom, como os que agora entram por sima das pa- redes com soadas de graças, peitas ou de rogos importunos. E porque a mudaçom dos Bispos faz que nom tem singular affeiçom aos Bispados, e por tal azo as Cameras e as moradas dos Bispos em mui- tos lugares sam mal adubados, nem os Súditos são bem castigados por que non fazem conta a ver corregido o q. pouco tempo esperão pos- suir, e por esto me parece que hum Bispo de Bpãdo pêra outro Bispado não devia ser mudado, porq. nom somente a esperança do bem eternal o homem indus a bem fazer, mas ainda a do temporal he em isto gran- de ajuda. Se algum Bispo pêra Arcebispo fosse requerido por sua bon- dade, sendo delo merecedor, fose lhe dado consentimento ainda que o requeressem de hum Bispado pêra outro mayor nom lhe fosse dado. Vosso Irmão e Servidor. = Infante Dom Pedro1. 1 Ardi. nac — Collecçáo de cartas — N.° 6 — Tomo 6.°, pag. 27? a 277. Tanto este doe. como o anterior foram trasladados por J. P. Ribeiro nas suas Diss. Chron. e crit., em app. n. c.wui ao tom. 1, p. 385 a 9. — As passagens entre parenthesis no texto náo foram reproduzidas por J. P. Ribeiro, e acham-se na copia agora trasladada. (E) CONSELHOS DOS CONDES DE ARRAYOLLOS E OUREM E DO BISPO DO PORTO A D. DUARTE (1433) Treslados dos mss. da bibl. da Ajuda I CARTA DO CONDE DE ARRAYOLOS Muy alto Eonrrado Poderozo Senhor. — O Conde da Rayolos em vio beijar vossas mãos e encomendar em vossa mercê aqual . . • creo que lembrada como me mandastes no Sardoal que vos emviasse o tres- lado dos escriptos que dera no concelho de Santarém e em compri- mento de vosso mandado o emvio a vossa mercê sem palavra adir nem mingoar porque me naom pareceo ser fermozo serem por mim grasadas; segue-se o primeiro do qual a questão que foi proposta pêra vossa mercê he esta: se era bem do Ifante Dom Henrique uosso Irmão aceptar a amigai compozissão que lhe era cometida (por) parte delRey de Castella e do m.e dalcantara com certas condições segundo a vossa mercê sabe da qual a Reposta que por mim foi dada se segue. Senhor em todalas couzas que o homem ha d'obrar ha deter o olho principalmente a hum fim e assim que eu destes feitos olhos he o Re- gno de grade (Granada) ser metido ao juguo da fé por muitas Razões, S. por ser hum grande azo tirado porque a Espanha perder-se podia e lhe virem outros muitos grandes males como já muitas vezes aconteceo e porque os daquelle Reyno são omicidas e roubadores, e se traba- lhão de tornas e tornão aquelles que som regenerados por agoa do bap- tismo aa seita muy falça de mafamede; e porque aquella terra por direita herança he da Espanha aqual elles tem forçozamente e con- quistando-se seria caminho porque muitos delles se tornarião ao co- nhecimento da verdade e onde se agora fas deserv.*0 a Deos nosso ?(|S Os filhos de D. João I Senhor prazendo a ele lhe seria feito muito serviço; e segundo me parece o melhor meo porque podemos a este fim vir assim he o Ifante Dom Anrrique hir em ajuda delRey de Castella ao Requerimento que lhe manda fazer Christo muitas Razoes por levar muita e boa gente que farião grande avantaje ; e por a vontade que ele averia da couza se acabar, a aquelo encaminharia EIRey de Castella como tivesse vontade nom averia hi quem o tomasse nem achasse por as costas que em o Senhor Ifante Dom Anrrique teria; e demais que o dito Senhor Ifante lhe fez primeiro o dito Requerim'0 e delle fermosamente se nom pode escuzar, e porque o principal fundamento porque EIRey de Cas- tella se move daver companhia do dito Senhor Ifante Dom Anrrique a sy he por aver segurança dos Ifantes daragon aqual melhor non pode aver que aver o m.e dalcantara a seu cordo enõ poendo o Senhor Ifante Dom Anrrique em esto máo EIRey de Castella o podia aver por outro caminho, e como tiuese esta segurança dos Ifantes o Senhor Ifante Dom Anrrique seria pouco dezejado em Castella e de muitos grandes bens que estão aparelhados grande mingoa averia hy despois delles; por- ende a my parece que he bem do Senhor Ifante Dom Anrrique ace- ptar esta amigável composição que lhe d'ambalas partes he requerida com tanta sua honrra com tal resgardo e . . . que a elle despois non venha empacho e das seguranças que se sobre este devião fazer eu non o entendo descrever porque ... e poderia mal cuidar as ... que se poderião obrar e ainda o tempo me não deu lugar pêra o poder escrever e leixo o Senhor a vossa mercê que tenha sobre elo muy grande concelho; porque a dita amigável composição aceptada seria aso porque o Senhor Ifante Dom Anrrique va a Castella e com muito mayor poder porque toda a cavalaria dalcantara e a gente do m.e e da terra do mestrado serão a seu serviço e todo los Senhores de Castella averão vontade de o servir esperando que por ele serão tor- nados a seu estado quando lhes tal cazo acontecesse como ao m.e e despois que ele la for, prazendo a Deos este feito, vera o fim que espe- ro e por vosso serviço de sua hida muitos bens se poderião seguir, s. o cazamento de vossa filha fazer-se a vossa vontade e o Senr. Ifante Dom Anrrique aver o Reyno de grada (Granada) du grande parte de Cas- tella e os feitos do Reyno em sua mão, e as Ilhas da Canária que deze- jais; e porque ouvy otro arazoar que indo o Senr. Ifante Dom Anrrique em ajuda delRey de Castella ou poendo mão nos feitos do mestre dal- cantara seria em prejuízo dos Ifantes, a mim parece que esto non he contra os tratos, ainda que jurassem isto que he Requerido, porque ainda non he senon por conquista de grada e porem couza tanto de serviço de Deos e de vossa honra e proveito nom o deveis deixar por o que doutrem he incerto e de mais que eu entendo que ainda do Senr. Ifante Dom Anrrique será proveitozo aos Ifantes porque despois que la for poderá falar em seus feitos eos tornar a seu estado e que nom tornassem, segundo Senr. me parece, melhor era e mais vosso ser- Appendice 399 viço ser o Regimento de Castella em mão de vosso Irmão que de vossos cunhados a qual couza vos traria grande amizade e perpetua segurança de hum Rey tão poderozo e tanto vosso parente que quer fazer todalas couzas a vossa vontade e nom he de refusar. Aqui se acaba o primeiro asento; segue o 2.0 no qual he contheudo a Reposta doito questões que a vossa mercê fez e em começo de cada hum capitulo he escripta a questom e em tal capitulo hy ha duas por- que em ele se conclude a Reposta dambas; porende Senr que estas questões suso escriptas, e a sy a do asento primeiro são muy em breve pêra as aver dentender quem desto nom soubesse parte, mas porque a vossa mercê bem sabe eu as non quis poer mais por meudo se não a sy como me forão dadas. — Item o Recebimento dos Ifantes e Ifante e Mestre, e ... se entrasse em Castella e fazerem guerra. Senhor, a my parece que vos deveis fundar vossos feitos principal- mente a serviço de Deos porque se o asy non fizerdes voso syso e po- der pouco vos prestara como a sy seja que tal recebimento a Deos a meu parecer, porque em estrevimento dele os Ifantes faraõ guerra a Castella e por o contrario nom seria feita a guerra antre os Christãos; mal he e demais com tal querella, e pois este mal vos podeis escuzar de o nom escuzardes antes dardes azo porque se faça, creo que ante Deos non nos podereis bem escuzar de culpa nem aquelles que volo concelharem a sy que por fertores e consentidores igual pena merese; e quanto ao Mundo eu me nom avia por bem amiguo daquelle a que podesse escuzar seu mal e nom o fizesse e ainda indo os Ifantes a Cas- tella, quando tornassem, cuido que nom quereriaÕ sayr tão cedo de Por- tugal, porque emburjesando a guerra antre estes Regnos cuidão elles, segundo entendo, ser todo seu bem e se lhe consentysseis a estada hi- reis contra os trautos, e se os quizesseis fora lançar constrangidamente eu creo que quanto bem e ajuda eles de vos réceberon seria pouco nembrado; e portanto pois nom he serviço de Deos nem couza que vos traga honra nem proveito ante pode trazer empacho com a fermoza escuza q. tendes por ser amigo delRey de Castella amy parece que nos deve escuzar de tal Recebimento nom ser outorgado. Item que posa aver viandas posto que facão o que dito he. Senhor pareceme que he bem que se vejão sobre esto os tratos e se nom he defeso bem se pode levar segundo se fas pêra as outras par- tes de Castella com tanto que nom seja algú. constrangido ao fazer. Item que recebam seus gados em estes Reynos. Item que lhes dem favor contra os do Conselho delRey de Castella. Senhor a mim me parece que nenhuma destas lhe deve ser outor- gada; quanto aos gados vos vistes já por esperiencia o que eles hão do- brar trazer os que roubarem de Castella de mestura com os seus e quanto ao favor que fosse contra os do Conselho a sy seria contra EIRey : como estas couzas ambas ante Deos e o Mundo serião fermo- zas nom he pêra razoar. 4oo Os filhos de D. João I Item se será feita liga com os Reys daragon Navarra e Ifantes. Senhor em Almeirim foi falada desta liga somente que fosse a re- posta de Mosé garcia ouvida sobre o que lhe a vossa mercê ja dantes tinha falado e a meu entender non foron perguntados por vozes do que dela parecia e foi leixado pêra este concelho eo que me S.or parece he que qualquer liga que seja feita por juramento he a fim de, quando fosse quebrada ante Deos, a parte que a mantevesse tiuese direita que- rella como asy seja que os Reys daragon e navarra tem feita pas com- nosco aqual nom podem britar senom em ajuda delRey de Castella com o qual a vos tendes firme que non pode ser desfeita a sy que ante Deos nom pode ter justa querella contra vos se nom fizerdes porque; e pois a liga nom he aoutro fim e a vos tendes a sy forte que a qual- quer tempo que por outra parte for britada a querella será por vos, amy parece que he descusar, pois ela trás tal empacho alem do desa- vyamento de tantos bons feitos como he avervos EIRey de Castella sospeiçon naqeste escuzamento seja a fim de liar com EIRey de Cas- tella contra elles nem dalguma outra cobiça, senom somente porque ella nom he necessária e pode por duuida e escândalo antre vos e EI- Rey de Castella de que se podia seguir muitos males e mais tornar tantos bens especialm.le os feitos degrada (Granada) q. he tanto serviço de Deos a meu parecer e porq. alguns poderiao cuidar q. tornando os Ifantes a seu estado poderiao quebrar esta pas, amy non meparece de razon porq. despois q. hum Rey, tendo em seu liure poder pêra huma pas com os do seu concelho e com todolos grandes que aquelle tempo som em seu Reyno, nom pode ser por outrem britada; e se asy fosse q. estes podessem hir contra ela, muito mais o poderia fazer seus herdeiros del- Rey de Castella e tal pas non seria firme ; mas razon non me mostra q. o dedireito pode se fazer nem q. tivessem justa querella ante Deos e prazendo a ele se o começassem non creo q. lhes a bem viesse seu feito: porende S.or non embargante estas razoes se podesse ser achado caminho agora ou outro tempo p. q. se a liga fizesse sem desprazer a EIRey de Castella, eu o haveria p. bemfeito, e de mosé garcia vos deveis p. agora escozar, segundo meu parecer, sem determinação final poendo em espaço so esperança e non deve aver reposta ata vinda dalv.0 pez. p. q. o recado q. trouver poderes aver melhor avizamento do que aveis. Item que fim daron ao concelho principal. — Item se agardarom Alv.° perez. Senhor eu vos disse ja duas vezes que ta que non fosse determinado este concelho se era bem e serviço de Deos de se fazer ou non q. al- guém vos non poderia bem conselhar p. q. aquelo q. acordastes de di- zer a EIRey nom foi fim de conselho se nom p. tomar espaço; e pois Senr. pois onon perguntais e he forçado sobrelo faço pergunta amy se he bem e serviço de Deos non se fazer ou fazer-se a guerra de benamary (Marrocos) e dou em resposta q. non; p.q. ainda q a guerra de Mouros seja ávida por bem se homem non olhar com o olho simples e claro de Appendice 401 discrição ata fim nas couzas que ouver dobrar muitas vezes, o seu juizo será escuro e as razões porq. menon parece bem em hum escripto q. tenho feito dias ha he, contheudo oge n'este. Senhor, ou se isto fas por serviço de Deos ou por faina; se p. ser- viço de Deos amy parece ser seu desserviço porq. ainda que a primeira face pareça bem asim he muito contraria q. hi teríeis as couzas a vossa vontade e poderíeis conquistar o Reyno de fes (Fez) e elle conquis- tado nom vejo hi algum serviço de Deos p.q. ainda q. em vosso tempo se mantivesse p. os tempos prolongados serião contrariedades; e visto como non ha hi tanta gente nem dinheiro q. podesse abastar a defen- são de dous Reynos, perder-sehiao ambos especialm.te destes Reynos, e o trabalho de balde; e se non quizesseis filhar se non os lugares da- beira do mar, tanto peor, porq. eles filhados non se poderion manter e vista a perda q se ante faria o proveito seria mao, e que se podesse manter seria mal por este Reyno p.q aquelles poucos lugares serion azo de se destruir tudo de mais, visto a idade delRey nosso Senr e a sua disposição e amingoa que aveis de todalas couzas q. pêra esto fa- zem mister de poer . . . em aventura donde se pode seguir o contrario de todo o que cuidardes, nom me parece que seria serviço de Deos. Se se fas por fama, nom a vejo aqui tal que aproveite porque couza começada por vã gloria, que he peccado mortal, forçado he q. a sim seja semelhante a seu começo; e q. viésseis a aquello que dezejaes e o nom podesseis manter, cada hum acharia q. tinha muito perdido e co- nheceria entom bem q. honrra sem preveito prestava pouco, e quantas Razões acho pêra esta guerra contrarias, muitas mais me parece q. ha pa- ra louvar a de grada (Granada). — Se seguindo minha tençon digo q. pois non hebem de se fazer . . . seja dito, e EIRey porq. q.'° mais for adiante esperando o q. ha de fazer, tanto a vontade conformara mais a fazelo em tal guisa q. q.''° o quizerem mudar daquilo será com grande que- branto da sua vontade ou muito a tinha non quererá e q. lhe digão q. se non pode fazer elle buscar a tais caminhos p.q. quererá q. se facão os quaes poderão trazer de serviço de Deos e grande perda a este Reyno especialm.te se for tanto adiante ata tirar o pedido; p.q Portugal he tal como os homens de grande idade q. encobrem o pazam.10 dos dias sem se muito parecer nelles amingoa e nos derradeiros dos annos cae, e a sy será a este Reyno p.q. ainda q. pareça q. o tirar dos pedidos o non destruem, nos derradeiros se descobrira sua queda; e pois tirar o pedido pêra a guerra de benamary non he serviço de Deos a meu pa- recer q.to mais tirar se pêra com ele non obrar algua couza sendo pe- dido ta grande mal come o contrario das obras de mizericordia q. son tanto encomendadas gardar, e p. as quais nosso Sor promete a sy grande galardon, e o contrario aquelles q. as non guardarem, e pois o pedido tão grande mal he de se lançar, pareceme q. he muy boa razão huã q ouvy dizer a vossa mercê q. non havia homem p.q. enganar seu enten- dimento sób color abasta q. pois mhe mal non ha homem p.q. buscar 26 402 Os Jilhos de D. João I caminho p.q. se faça senão q.''° for serviço de Deos ou proveito comum, e porem S.nr pois delRey hir p. este feito adiante se podem seguir gran- des males en hu. bem, pareceme será bom terdes concelho como o po- desseis logo mudar desta vontade q. fosse a seu prazer, e non lhe deve ser falado ata vinda Dalv.0 pês p.q. poderá trazer tais partidos q. sobre isto será escuzado de mais razoar non embargantes q. se esta guerra non aja de fazer deses todos preceberem darmas he muy bem p.q. durão para sempre fazem pequena custa em caza são proveitozas ao Reyno. — Item q. maneira se terá com os feitos delRey. — Sor pareceme q. he bem andardes m.t0 chegado a ele e se podesse buscar-se caminho q. fosse a seu requerim.t0 seria melhor, se tanto q. ele non sinta o p.q. andaes e de como haveis dobrar; peço a Deos q. vos encaminhe a seu serviço e o mais S.or leixo avossa descriçon; porende S.or seria bem trazerdes al- guns do concelho com vosco p.q. segundo me parece q.t0 este Reyno he abastado de concelho pêra as couzas q. com os de fora hãde ser trau- tadas, tanto he hi grande mingoa dele das q. se de dentro hão dobrar; as quais ainda q. sejão pequenas podem trazer grande destroiçon p.q. segundo creo poucas vezes se tem sobre esto concelho o qual he muito necessário; e porende S.or eu creo q. seria bem de o trazerdes sempre e q.do prazendo a Deos os feitos fosse de todo em vossa mão de a vossos Irmãos repartirdes certos tempos do anno q. andassem q. seo, em tal guisa q. a vossa corte nunca fosse sem algú delles : grande bem seria a meu parecer; escripto em Torres Vedras xxii dias dabril era 1433 annos. — O Conde. II CONCELHO DO CONDE DOURE Senhor, posto que eu em estes feitos fosse escuzado polo prezente de falar, até ser determinado ... de qualquer guisa que de ser ou- vesse, por certas Razões, que ja a vossa mercê disse, porque desque finalm.le ordenado fosse de se a guerra fazer, bem estava a cada hum de dizer todas aquellas maneiras porque entendese que se os feitos melhor podessem encaminhar, porque as guerras que non são de ne- cessidade mais se cometem a meu entender por pouco movimento e vontade dos principaes, que por concelho dos seus naturaes; porende pois me a vossa Senhoria de todo manda que fale, direy aquelo que me parece. Item ao primeiro ponto, se mandaron a EIRey de Castella sobre a guerra de grada (Granada) e quem ira a ele e como o Requererão, a my parece que he bem mandarem a elie requerendo . . . e como a vontade vossa he de servir a Deos em guerra de Mouros e por esta guerra de grada que elle tem começada ser mais . . . trazida a fim que vos, sou con- Appendice 40 3 tente de guerrear o dito Reyno por mar ou por terra como vos me- lhor entenderdes que possais em elo aproveitar; e esto ora o guerree ele em pessoa, ora non, que lhe rogais que elle seja delo contente, e por que ele e todo o mundo entenderem que vos non fazeis esta guerra por mais outra gloria se non simplesmente por serviço de Deos que non quereis da dita guerra nenhuma couza salvo o serviço que a Deos fizerdes, antes vos pras que todalas fortalezas que ganhardes sejão pêra ele e pêra seu Reyno, e que esto lhe rogais muito que vos non denegue; porque sabendo todo o Mundo que vos ele esto denegava, fazendo-lhe tantas avantajes, cuidaria e era pêra crer q. se non fazia se non mingoa de boa vontade, o que vos non cryeis antes pensais que vos ama como primo e amigo, e como vos amais ele e seu estado ; e esto podem bem ver por esto que lhe requereis qual posto que vosso principal movi- mento seja por serviço de Deos que bem pode entender o proveito que lhe desto vem; oqual soes muy contente de lhe vir por vos assim em esto como em qualquer outra couza que bem podesseis; e porque aqui se poderá dizer que seria grande simplicidade de gastardes as gen- tes e os averes de vosso Reyno por acrecentardes o poder e honrra daquelles que non sõ bem nossos amigos, amy pareceo sempre que a vossa principal tençon de fazer guerra aos Mouros foi por serviço de Deos, e porem todas outras coizas deste mundo deveis de leixar atras por serviço delle, as que tais forem como estas que som pesados de enveja e de soberba, o qual serviço aqui podereis fazer melhor que em outra parte, porque, segundo meu entender, a melhor couza que se segue da guerra dos Mouros he que se louve Deos onde se aqui louva, e o que se aqui ganhasse pareceme que he couza que de Razon devia de durar em poder de Castellãos e, durando, sempre o nome de Deos seria hy louvado, o que se non poderia assim fazer em nenhuma outra parte de Mouros que eu saiba e fazendosse seria comprida e destroimento manifesto deste Reino; e que se diga que non ha hi proveito em esta guerra de grada he verdade . . . sabudo he que pêra este Reyno non he proveito nenhumg guerra de Mouros, nem a vossa senhoria non semove a cia por elo como em cima disse, eposto que o hi non aja, ha menor perda que em nenhuma outra guerra de Mouros; e em razão de quem yra a EIRey de Castella pareceme que vossa senhoria deve emviar as mavores pessoas que nunca a elle emviastes, e eu diria que eron boas meu Padre e meu Irmão e o Bispo do Porto pêra propoer, porquanto he embaixada que he de serviço de Deos e pareceme homem bem ou- zado e razoadamente Letrado, e porque eu digo ser boa a sy esta Em- baixada muito grande he por três razões: a huma he por ser mais noti- ficado a todo o Mundo asy ao Papa como a todolos outros Príncipes Christãos este vosso requerimento tão santo que mandais fazer o que me parece que he grande vossa honrra; a segunda porque sabendo o dito Rey de Castella e seu Concelho esta couza e aver asy destes no- tificada averia empacho denegar cousa tão justa; a 3.* porque geralm.lc 404 Os Ji lhos de D. João I as grandes pessoas se bem entendidas são arecadão mais asinha as grandes coizas que as outras pessoas somenos por algumas razões que se em isto podem dar; e ainda em este feito aproveitaria muito porque sentiron que pois tais pessoas emviais que grande tençon tendes n'aquillo a que os mandaes. No segundo ponto se a vossa Senhoria se despoera prazendo a Deos pêra o anno que vier, non embargante a disposição delRey, pareceme S.or se a vos guerreardes e hi non ouver ontro empacho se non este que o non deveis deixar por elo, porque a Deos graças tão bons eleves vassallos vos deu que non aveis que duvidar, posto que na terra non sejaes e esso mesmo vossos Irmãos; tais os fes que qualquer delles que deixásseis vos daria bom recado do que lhe emcomendasseis e a obrar nas couzas ele poderia obrar comoV.S.3 qua vos lhe leixarieis vosso mesmo poder; e delRey non querer obrar por seu concelho como polo vosso, eu creo que ficando ele por sua ordenança que o que non obrasse por ele non obraria por outro nenhum, e porem eu non posso em esto certo falar ca nunqua conhecy a condição delRey. Item ao terceiro ponto se lançarão pedidos pêra estes feitos e quan- tos ou se mudarão as moedas, que me parece grande mal de lançarem pedidos a este Reyno nem esso mesmo de mudarem a moeda se tanto damno se ... do mudamento delia como se mostrou quando se fes esta que agora corre; salvo se fosse por grande necessidade, porem nesa, se com os clérigos se pêra a guerra de Mouros, se podem fazer com conciencia cada huna das sobreditas couzas, e disto eu leixo car- rego a el, e a vossa descriçon pode melhor prover sobresto que nenhum porque sabereis melhor o estado do Reyno. Ao quarto ponto se o Infante Dom Anrrique avera lugar pêra se hir a Cepta com sua gente sem lançar pedido, ou se hira poderozamente por a cercar Tanger ou Arzila, que me parece que do Ifante Dom Anr- rique ir poderozamente, ou somente com sua gente, que melhor he de hir avossa senhoria porque poderozamente ouver de hir com entençon pode atender todo o poder de belamary (Marrocos) o qual combatudo avendosse a quella vitoria que eu espero que se averia, seria taõ grande honrra como avossa mercê bem pode entender, aquém vos devíeis antes de querer pêra nos que pêra nenhum; e indo elle somente com sua gente, postoque lhe ora pareça que o poderia manter com suas rendas, eu vejo que ele non trás ora em sua caza a quarta parte da gente que la terá aqual escaçamente pode manter com suas rendas como fazem todos seus Irmãos, pois eu non sey como eles polas ditas rendas ouvesse de manter tão grande custa; e non o podendo soportar, avos era por força de o ajudar, aqual couza non poderíeis fazer sem o avendo de vosso povo; porem pois que o aveis de gastar, melhor era de o ser por algum grande feito que por o gastardes com vosso Irmão com tão pouco po- der como o qual elle non poderia muito fazer, e alem disto seguindo que o Senhor Infante Dom Anrrique que he grande coração non estava Appendice 40 5 em Cepta sem cometer grandes feitos, os quais cometendo os com pouco poder era grande duvida, e vindo-lhe alguma contrariedade, o que Deos mandasse, avos era por força de lhe socorrerdes com todo vosso poder, e pois o que despois aveis de fazer por socorrer, melhor seria agora por cometer guerra, me parece que he mayor honrra : e porem minha tençon he que vos vades, podendo se bem fazer, e non hindo que non va outro nenhum quanto a guerra de belamary. Ao quinto ponto em que forma se dará a resposta a EIRey e por quais, ou se todos, eu Senhor nunca conheci bem seus geitos, e porem me parece que a vossa Senhoria e vossos Irmãos sabereis melhor como lhe aveis de falar, porque o aveis mais praticado; escripto em a Cidade de Lx.a a q.tr0 dias de Junho de 1433. III CONCELHO DO BISPO DO PORTO Rey mui alto e muy glorioso Príncipe e Senhor, porque algumas vezes li que nas criações e alevantamentos dos novos Reys e altos Se- nhores os Prellados e grandes homens de seus Senhorios lhe devem dizer palavras amigáveis e concelhos saudáveis a elles e a seus regi- mentos. Por tanto eu, vosso orador, Bispo indigno em vossa terra q. Deos faça digno pêra por vos dignamente orar, alegrando-me desta vossa glo- rioza assenson, estando ante avossa Real Magestade me ocorrem estas palavras que som escriptas dani. 3.° Rex in eternum vive. O Rey pêra sempre vive, em as quaes palavras confiro a vida e regimento do Rey que tais devem ser, digo que a vida e regimento do Rey deve ser muito vertuozos s. em justiça e verdade e em mansidão e piedade : em justiça que seja visto nas obras, e em verdade que seja verdadeiro nas pala- vras, e em mancidon e piedade que seja manco e piedozo no coração. E por quanto a Santa justiça he Raynha das virtudes e he chamada cõmunis virtue porque aquelle que a consigo tem todalas outras virtu- des tem, porem, Senhor, pêra serdes em todalas outras virtudes virtuozo, esta deves amar, esta deves sempre com vosco abraçar, ya esta he aquella pola qual os Reys Reinão eos Príncipes son Senhores. Proverb, viii. Esta he aquella aqual nenhumas requezas son destimar, ya segundo o que se le no livro do regimento dos Príncipes a justiça do Reynante mais proveitoza he aos súbditos que a abastança dos naturaes; esta he aquella que mais reluze e resplandesse no Príncipe que outra nenhuma virtude porque ella he tão clara e tão resplandecente que nenhuma outra claridade, nem resplandor, nem o da estrella da manhã non se pode a ela igualar, nem comparar. 406 Os filhos de D. João I Esta he aquella que livra o homem dos perigos da morte e por quem lhe da vida — dani. vj. que dis enviou o meu Deos o seu Anjo e sarrou as bocas dos Liões, e non me pode empecer, e isto foi porquanto em mim foi achada justiça. Esta he, Senhor, aquella sem a qual os Reys caem tão grandes que- das que non se podem levantar das quaes quedas cheos são os livros e vulgares sõ os exemplos e por tanto as quero calar. Esta he aquella sem aqual os Estados asy divino como humano non se podem soster nem governar, ca tyrada ela da terra convém que se encha de ladrões e roubarias de furtos e rapinas, de homicidos e adultérios, destupros e incestos, de despovoações e divizões, e doutros infindos damnos e irreparazeis males, tantos e taes que longuo seria contar. Gareceron, Senhor, os homens da sojeição e jugo do Senhorio e a liberdade que he bem Celestial que lhes Deos deu nunca a renunciarão de sv nem se sujugarão a Reys nem a Príncipes nem a outros poderios, senon porque cada hum tomava ousança e licença de mal fazer; e os males passarão sem pena e os bens sem galardão, o que era em grande e bem evidente damno de toda a natureza humana. E porquanto constrangidos por necessidade renunciaron a liberdade e elegeron Reys Príncipes ... a fim que os regessem e governassem em direito e justiça, e asy conveo a liberdade sojugar-se a justiça e obe- decer ao juizo. E porem Senhor, pois o fim pêra que os Reys forão enlegidos he justiça, praza vos amala e prezala e regerdes vos por ella, que se vos por ella regerdes os vossos súbditos se regeraom bem, ca escrito he regis ad exemplum componitur orbis — deshi se temperão e regem os seus po- vos e súbditos — Portanto dis Cipriano que a justiça do Rey he exem- plo e pas dos povos, defendimento da guerra, liberdade das gentes, cura dos enfermos, prazer dos homens, limpeza do mar, abastança da terra, solaz dos pobres, herdade dos filhos, e a elle mesmo esperança da vida perdurável. E porem Senhor quanto esta tão excellente virtude vos he necessá- ria o vosso alto entender o conhece e sabe bem. Se justiça em vos for, o vosso coração que he cede dalma será na mão de Deos q.° escrito he 3.° Regú" xxi cor Regis in manu dei est et quo- cunque voluerit vertet illud — o coração do rey na mão de Deos he e pêra onde quer o levara; e se justiça em vos non for, o que Deos non queira, Deos se alongara de vos e non Reynares por ele nem vos conhecera que ele falando q.° propheta Ose disse contra os Reys que mal regem, eles reynaron, e non por mim e Príncipes porb. e eu non os conhecy; e porem Senhor amais justiça e Deos vos conhecera e amara e reyna- res por ele. E nembrevos Senhor que o Conde Dom Anrrique, vosso octavo avo, fazendo doente em Astorga sua cidade de dor daqual morreo, chamou Afpoidicc 407 seu filho Dom Afonço Anrriqs. vosso vii avo, o primeiro Rey de Portu- gal, e antre as couzas que lhe especialmente encomendou, foi que fosse companheiro aos fidalgos e lhes desse todos seus direitos assim grandes como pequenos, e que por rogo nem por cobiça nunca sua justiça . . . que se hum dia deixando de a fazer a afastasse de sy hum palmo, em outro dia se afastaria de sy e de seu coração huma braçada ; e que porem tivesse sempre justiça e a amasse em seu coração que o amaria Deos e as gentes, e que non consentisse em nenhuma guiza que seus homens fossem sobre vossos nem atrevidos em mal, que se o nom ve- dase perderia o seu bom preço. E porem Senhor, por a santa justiça ser tam alta virtude e tanto aos Reys necessária e ser tão aficadamente encomendada por vosso vii avo a seu filho, et p. conseques. aquelles que dele decenderon como vos decendeis, vos aves de soceder por benção e erança a sv com vosco so- cedes parte daquella terra e . . . que seus foron, e amala e abraçala com vosco a sy estreitamente que nunca se parta de vosso coração, e que vos por mingoa delia non percais o vosso bom preço. Deguysa que todo o vosso povo possa dizer de vos o que o spirito santo disse a David, porque tu amaste justiça e aborreceste maldade por esso te ungio . . . Rey antre todos os de tua linhagem; e justo he EIRey nosso Senhor pois amou justiça e ygoaldança esgardaraom os seus olhos, e onde o a sy fizerdes o que esperamos que fareis, revna- reis sobre as couzas que a vossa alma dezeja, segundo que he escripto 3.° Regú Cxi. e em esto Senhor honrrareis as Igrejas ps.a e ministros delias e lhes gardareis suas liberdades e franquezas, e os fidalgos acha- ron em vos mercês, gazalhado e acrescentamento, e os povos favores, defenson e criamento. E nos todos vos acharemos graciozo de mente, manco, benyno e piedozo, tal quem o pastor deve ser as suas ovelhas, e quem vos Senhor queríeis que vos fosse algum Rey se o sobre vos tivésseis; e em tal maneira nos deves tratar que todos vos amemos porque aquelle Senho- rio perpetuamente dura o qual amor dos súbditos firma e estabelece e que todos nos possamos dizer Rex in eternum domi Rex Israel e que com pura vontade e coração perfeito roguemos a Deos por vosso es- tado, vida e saúde e de vossos filhos e molher, e que vos de graça que rejais estes reynos em tanta paz e justiça, em tanta folgança, tranqlidade e a sesego que por o santo e bom regimento que em eles fizerdes me- reçais viver pêra sempre nos Reynos dos Ceos, os quais vos o Senhor Deos queira dar e outorgar. Ame; escripta em Santarém, sinco dias de Dezembro, era 1433. (F) CARTAS DA REGÊNCIA DE D. PEDRO (Arch. nac; Coll. de Cortes; tomo v, pp. 1 33 a 175) I Carta do Inf. D. Pedro á Cam." de Coimbra sobre a recondução do Alcaide pequeno da mesma Juizes e homeens boons da noble cidade de Coimbra o iffante dom A. 1439 pedro duque dessa mesma uos enuyo muyto saudar como aaquelles Fev- 20 que queria ueer muyto honrrados, bem sabees como outro dia me screpuestes huma carta em aquall antre outras cousas me fezestes saber como per forall e costume antigo essa cidade esta em posse de aquelles que ham de seer postos por alcaydes pequenos seerem natu- raes delia e ainda per hordenança dei rey meu S.or e meu padre cuja alma deus haja e confirmado agora nouamente em Cortes seerem pos- tos de três em iij anos e porque agora gill Vaasquez acabaua o d.'° tempo, que me pediees que eu mandasse que elle fosse fora dalcaide pêra auerdes de poer outro e esto non por sentirdes delle que errasse em seu oficio, soomente por seguirdes a d.,a hordenaçom, e eu convyrey sobresto e hey por bem feito desse fazer assy; mas porque uos sabees bem como os boos homeens som muy mãos dachar e estremadamente taaes como compren aesse oficio e o d.t0 gill baasquez me parece homem de bem e pêra ello a bastante eu entendo que em esto uos po- derees teer húa maneira daquall amym plazera e he esta que o d.'° gill Vaasquez fosse fora dalcayde por huus dias e depois nouamente seer posto por alcayde e desta guisa uos non quebrarees uossa hordenaçam e serees fora de fadiga de buscar outro o quall peruentuyra ainda nom conheçees nem sabees como husara do d.t0 oficio edeste creyo que ja saberees pouco mais ou menos queiando he e quando elle fezer oque nom deue, eu o castigarey segundo uir que compre e prazendouos de esto assy encamynhar eu lhe enuio esse aluara meu no quall lhe mando que elle faça todas aquellas cousas que lhe uos outros rrequererdes de 410 Os filhos de D. João I seu oficio que razoadas seiam segundo per elle uerees porem uos en- comendo que me escrepuaaes sobresto nossa tençom escripta en pe- nella xx feu.r0 Steuam pez a fez i43Q. = Iffante Dõ p.°=. (Maço de papeis Ant.05 da Camer. de Coimbra IVo 29 seg.9 II Carta Regia ao Con.co de Coimbra sobre as innovaçoes, q tinhão praticado em prejuízo do rendim.0 das sitas A. 1440 Juizes uereadores procurador e homeens boons da nobre e leal Mai 2 cidade de Coimbra. O Iffante dom p.° regedor e defeemsor por meu S.or el Rey destes regnos e senhorio uos enujo mujto saudar, façouos saber que amym he d.t0 que vos não querêes com sentir que sse com- pram os artygos das sisas nom embargando degouuirdes da merçee que uos é feita dos uarejos e descamynhados ante daaes uoz e fama que todolos d.,os artygos ssom anjchelados e outras nom boas rrazóes que dizees a alem dos liuros das sisas que mandastes leuar aacamara sem teendo autoridade de esto asy fazerdes eu o ey por muy mal feito que sabem muy bem os procuradores que a as cortes enuiastes que nom lho disse eu assy nem avos nom uollo screpuy per tal guisa ante encomendey a elles e escrepuy a vos que pois uos el rey meu S.or taaes liberdades daua que fezesses per tal maneira e desees todo o bom aazo que podesees perque suas rremdas nom desfalecessem e azases que fossem muy bem rrecadadas e que ell ouuese inteiramente todo oque lhe delas de dir.t0 pertencesse equando asy fezesees que se- ria grande ajuda pêra uossas liberdades uos seerem conpridamente guardadas esse pello contrairo seria necessário de o d.t0 S.or proueer oque por sseu seruiço enttendesse pois que estas sisas ssom a mylhor cousa que tem para manteer seu estado e mynha gouernança edemeos Irmaãos; e sse vos sentirdes que os oficiaes do d.t0 Sor fazem oque non deuem em suas rendas screpueemo e eu tornarey a ello pertal guisa que eles ajam escarmento e seu seruiço seja compridamente guardado. E porem coompre que uos avisees que nom tomees moores liberdades das que vos ssom outorgadas as quaes ssom os uarejos edescamynha- dos e em todo o ai compraees e leixees comprir todolos artygos e hordenaçóoes que ssobre as d.tas sisas ssom feitas seg.do sse em elas contem; e leixees screpuer todalas mercadarias e cousas que a essa cidade veerem e assy quando sse venderem pêra todo vijr aboa reca- daçom e ser pagado todo o dir.to delas . . . que sse auenham aquelas pessoas que soyam seer avyndas equando o assy fezerdes farees amym grande prazer e seruiço e avos mujto bem e homrra esse polo con- trairo creede que o d.t0 Sn.or auera todo oque lhe de suas rendas fa- Appendice 411 lecer nom per todolos desse conselho mas por certos de vos outros que eu souber que aesto dão principal aazo de sse fazer. Outrosy bem sabees.que he artygo que sse nom tire pescado da barca sem pagarem primeiro a disima; e ora me diserom que nom curom dello e o leuom assuas casas sem nehuu mandado e dizem que o uaaom lia dizimar sse quiserem, e porque o d.1" S.',r screpue afer- nam uaasques comtador que faça comprir as penas em aordenaçom comtheudas aos que o contrairo dela fezerem. porem uos mando que lhe nom dees aello torna e o ajudees afazer o qual lhe assy he man- dado. Outro sy me diserom que uos nom querees consintir que sse pague dizima noua do pescado que matarom no rio dessa cidade o anno pas- sado nos xv dias que a feira durou, e porque uos sabees que desta cousa nem doutras semelhantes nom liberda a d.ta feira, porem uos mando que leixees recadar ao rendeiro a dizima noua que delo ha dauer e asy aos que a teuerem rendada daquy en djante ou a recada- rem pelo d.10 S.nr sem lhe poerdes sobrelo enbargo e sse esta dizima assy ffor a dizima uelha que amym perteençe também anom pagarom e tal cousa bem veedes uos que nom he rrazom. Outro sy me diserom que uos posestes ora nouamente ordenaçom que nenhuum nom uendesse pescado grande saluo a peso eque esto nunca foy e porque esto he em grande perjuizo da sisa do pescado dessa cidade, uos mando que logo leuantees tal hordenaçom. E que daquy em dyante nom ponhaes outros que sejam em prejuízo dessas sisas e direitos que sabees vos que hordenaçom do d.'° S.or he que uos nem os outros concelhos do regno nom façam ordenaçooes nem pus- turas que sejam em prejuízo das sisas e dir.tos do d.t0 S.or Escripta em ssantarem ij dias de majo. ruy uaasquez afez. Ano i440=-]-Ifante D5 p.° (Maço de Pap. Ant.os da Camer. de Coimbra N. 2 e v°). III Carta da Rainha aos Fidalgos, cavaleiros, e Con.co de Coimbra participando-lhe achar -se jâ em concórdia com seu Irmão o Inf.e D. Pedro Ffidalgos Caualleiros Juizes ureadores procurador e homêes bõos A. 1440 da muy nobre Leal cidade de Cojnbra. Nos arraynha uos enuyamos Jun- l muyto ssaudar como aquelles pêra que queríamos myita honrra, fare- mos vos saber que pella graça de nosso Sehor Deus de que procedem todollos beens nos com o muyto honrrado Ifante dom pedro meu muyto amado e preçado Irmão somos apaçificados oqual entendemos de honr- rar e preçar con prazer assy como a Irmão que muyto amamos segundo 412 Os Jí lhos de D. João I per obras entendemos de mostrar porquanto semelhante maneira en- tende ell de teer comnosco e com todas nossas coussas ssegundo ue- rees per os trelados de dous escriptos assynaados per nossas maãos que uos na pressente enuyamos esto proposemos de uos notificar per nossa carta e per consolaçom nossa encomendandouos que assy o es- crepuaaes a esses lugares comarcaaos enujando lhe o trelado desta nossa carta edos d.t0" scriptos scripta em almeirim oprimeiro dia de Junho. Luis eanes afez anno do Senõr de i440. = a triste raynha. (Maç. de Pap. Amigos da Camer. de Coimbra N.° 75) IV Carta do S.r Inf. D. Pedro Duque de Coimbra ao Cone." da mesma sobre as duvidas q* tinhão com o Jui^ da d." Cid.e A. 1440 Juiz Vereadores procurador Regedores e homeens boons da muy A8- 22 noble e leal cidade de Coimbra. O Iffante dom p.° duque dessa meesma regedor e defensor por elrey meu Snor. de seos Regnos e Snorio uos enuio muyto saudar como aquelles que queria veer muito honrrados. façouos saber que vi a carta que me enuiastes e quanto he ao que me escreuestes sobre nossos oferecimentos ameu seruiço : eu vos agradeço mujto uossas boas uoontades. e pêra uos outros nom he necessário meu auisamento porque hej em uos tal confiança, que a todos tempos que uos rrequerer per o seruiço do d.'° Snor. e meu serees prestres com uerdadeiros e leaes coraçooes. Quanto he aos agrauos que dizees que hauees rreçebidos de fran- cisquo ahes por aazo do encarrego de juiz que este ano per meu man- dado tem em essa cidade ao quall daaes culpa que elle se ueyo amym e me deu de uos alguas enformaçooes nom boas pondo jnfamia sobre uos que todos mal uiuees, eu uos certifico que tal cousa nunca me disse e se maa enformaçom hej de uossos feitos dante uos outros meesmos sayo a fama delles, e de uos nem elle vyrdes amy sobrestes debates menom praz porque som bem certo que quanto em elles mais andardes, tanto semais descubriram uossas minguas, e aminha tençom em estes feitos nom he outra senom aquella que sabees que uos ja per uezes falley e encomendey que todos trabalhassees por uiuer bem e em boa paz huuns com os outros; temendo deus amando sua justiça eboo rregim.10 dessa cidade eo seruiço delrey meu S.or e fazendoo assy farees grande uosso louuor eamy stremado prazer eseruiço eassy uos rrogo eencomendo que ofaçaaes e eu tenho scripto aod.'° fr.c0 afies que setrabalhe dehusar dreitamente de seu julgado, oqual me praz que tenha por este ano seg.do minha hordenança e se eu achar que elle faz o contrairo eu lhe da;ra)rey aquella pena que merecer. Appendice 41 3 Polias cousas que passadas som uos encomendo que ante uos e elle nom haja rancores nem maas entençoens antes o ajudaae e encami- nhaae quanto em uos for por se fazer dr.'° ejustiça. E quanto he aoque screpuees que elle diz agora que poera amaaom pella cabeça a cada huum epilhara vingança dos que contra elle forom. Detal ameaça uos nom empachees, porque ell nom seera ousado de uos poer a maaom pella cabeça temendo que achara aminha mais pesada doque uos po- dees achar a sua. Ao que dizees que od.to francisquo afies mandou chamar todolos procuradores das freguesias em rrellaçom, asi como antes sem embargo do que hordenei sobre os d.to8 ofiçiaes, se elle esto fez sem algúa grande necessidade eu onom hèj porbem feito, e me praz que se compra eguarde minha hordenança, e asi lho screuo, saluo vyndo taaes cousas aque seia forçado os sobred.109 seerem chamados em rrellaçom equando estes das freguesias asi forem chamados asi o deuem seer os regedores emtal guisa que huuns sem outros nom vaaom arrellaçom. Em rrazom dos ofícios do f.° de fr.c0 anes minha uoontade he que todauia lhe seiam tornados segundo ja scripto ao Corr."r e quanto he ao dizees que elle tem feitas taaes cousas perque merece de os perder; se lho uos entenderdes de priuar alia sta o corr or e quanto demandaaes presente elle e faruosha dr.t0 pêro eu entendo que esto he mais por entençom que por merecimento. Scripta em Santarém xxy dias dagosto. = stm. pez afez i440 = + Iffant dó p.° (Maç. de Pap. An.los da Camer. de Coimbra N.° 17 e v.°) Carta regia ao Cone." de Coimbra agradecendolhe o pedido que lhe tinhão outorgado Juizes uereadores procurador e homeens boos da nossa leal cidade A. 1440 de Coynbra nos elrej uos enujamos mujto saudar, fazemos uos saber 0it- 2-* que francisquo anes nos screpueo, como nos outorgastes huum pedido em logo do seruiço que uos enujamos requerer, e de nolo asy com muy boas uontades oferecerdes nos uolo gradesemos muyto eteemos em grande seruiço ebem confirmaaes agrande lealdade que em vos sempre houue eha em seruirdes nos tempos das necessidades aos S.res Rex meu auoo epadre que deus aja e esso meesmo anos pola qual nos creçe aboa uontade pêra ssempre denos receberdes merçee ehon- rra emtodo que bem podermos scripta em Santarém xxiiij dias dou- tubro per autoridade do S.or Ifante dom p.° titor ecurador do d.t0 S.ur rej regedor defensor por el de seos regnos e S.ri0 paaj. rroTz afez 1440 = Ifante dó p.° (Maç. de Pap. Antigos da Camer. de Coimbra N.° 23.) 414 Os ji lhos de D. João 1 VI Carta Regia ao Cone." de Coimbra sobre a formalid* comq se cobraria o pedido q lhe 'Unhão outorgado A. mio Juizes uereadores procurador ehomeens boos danossa cidade de oit- -a Cojmbra. Nos elrey uos enujamos mujto ssaudar, fazemosuos saber que anosso seruiço compre desseer logo tirado o pidido que nos ou- torgastes emlogo de seruiço oquall uos mujto agradecemos, porem uos rogamos e encomendamos que offaçaaes logo tirar poendo tantos requeredores moores ssacadores e scripuaaes que o ssaibam ber ífazer eque ossem delonga tirem escolhee amtreuos huum dous homêes que conhoçam dos agrauos e os determjnem que onosso contador nom ha dauer conhocimento delles, effazee entregar os drr.06 delle a gill affõm. Scudr.0 do Iffamte dom p.° meu tio morador en essa cidade que orde- namos que os receba dos ssacadores que o tirarem pressemte onosso scripuam donosso almoxariffado dhy pêra todo screpuer em sseu liuro evyr aboa rrecadaçom emandaae aaquelles que lhe entregarem os drr.os do d.t0 pidido que cobrem conhecimento ffeito per o d.10 scripuan esynaado per ell eper o d.t0 recebedor pêra suas guardas, enujaae re- querer affernam uaasquez nosso contador em essa comarqua que uos de o trrelado dos Muros do pidido dessa cidade e seu termo e a horde- naçom porque sse os d.tos pididos tiram pêra uos pêra ela rregerdes e ell uos dará todo que nos assy lho teemos mandado nos quaaes liuros acharees as comtyas que tem aquelles que nopedido pagam e quanto cada huum hade pagar da comtya que teuer saluo sse despois que opi- dido ffoy tyrado ouue mais bées dos que tynha ou lhe mjngarom delles esse o nom achardes bem decrarado nos liuros proueede ad.,a horde- naçom eper ella seeres emuerdadeyro conhocimento detodo eporque poderá sser que neesse lugar auera algumas pessoas tam proues que nom teenrom porque paguem o d.to pidido saluo veendendolhe alguuns bées eencomendamosuos, que nos em que tal mjngoa epobreza em- certo sentirdes que releuees sua pagua per tall maneira que nos ajamos oque ham depagar ssem lhe sser vendido ho sseu e sse detodo tam probes em gados fforem que ho no possam pagar nom os mandees costranger que paguem por que nos os relauamos dello eesses que taaes fforem poeende em sseu titollo arrazom porque ssom scuzados pêra despois ssabermos oque em estes taaes monta e esto leixamos em vos- sas booas descriçõoes pêra oemcamjnhardes segundo vyrdes que melhor será. Escripta em ssantarem xxiiij dias doutubro perautoridade do Snõr Ifíante dom p.° tetor ecurador do d.(0 SnÕr rey rregedor deffenssor por ell deseus regnos eSenhorio Joham lourenço affez 1440. =— Iffante do p.° = (Maç. de Pap. Antigos da Camer. de Coimbra N.° 16 e v.°) Appendice 4 1 5 VII Carta do lnf. D. Pedro aos Cidad.' de Coimbra p.a estarem prom- ptos, visto q* a Rainha apesar da Concórdia $ com elle tinha feito, tinha passado m.'"5 cousas p.a Castella, e partira p." Almeirim com gentes d' armas. Cavallcyros fidalgos scudeyros concelho e homeens boos da cidade A. 1440 de Coymbra. O Iffante dom pedro Regedor e defensor por meu S.or ísov- ! elrey de seos Regnos e senhorio uos enuyo muyto saudar como aquel- les que queria veer muyto honrrados; bem sabees como arr.a fez co- migo concórdia damizade seg.° que conpridamente per cartas suas e minhas uos noteficado foy e per os escriptos que se passarom antre nos formado foy; deus sabe que eu a amey e prrezey, e lhe catey aquella obediência que deuya amolher que foy delrey meu S.or que orahe cuja uida e estado deus acreçente; e assy como seella minha madre fora, e ella desejando bem o contrayro doque eu desejaua, encubertamente como melhor pode, despoys da amostrança que amym fazia da d.,a concórdia, mandou passar aos regnos de Castella aquellas cousas que lhe mays prouue; porque eu nom lhe mandaua embargar aquello que ella queria enuyar leuar e trazer, nem esso meesmo recados que lhe viessem nem ella enuyasse por lhe guardar aquella amizade que de- uva; eora em esta noyte que passou amanhecendo oje dia de todollos santos ella se partio dalmeyrim sem lecença delrey meu S.or com gente darmas; e porque tall hida mostra que ella querrera encaminhar dis- córdia antre os Irmaãos seos e nos portall de enuorilhar estes regnos dei rey meu S.ur sseu ff.0 per guerra ao quehe comprydoiro proueer, eu uos rrogo eencomendo que com aquella . . . que sempre emuos tiue etenho ; que como leaes e uerdadeyros portuguezes sejaaes auisa- dos eperçebidos pêra quando conprir uos acharem prestes pêra ser- uiço do d.t0 nosse S.or elrey e meu ebem de seos regnos eguarda de uossas honrras. scripta em Santarém primeyro dia de nov.ro vicente afez 1440=-}- Iria nte dõ p.° (Maç. de Pap. An.(osda Camer. de Coimbra N.° 77.) VIII Carta do lnf." D. Pedro á cidade de Coimbra sobre a sua defeca, vistas as sinistras intenções com q a Rainha mostrara partir d' Almeirim Caualleiros fidalgos seudeiros homeens boos e poboos da muy no- A. 1440 ble eleal cidade de Coimbra. O Iffante dom p.° Duque dessa meesma — Isov- 2 416 Os filhos de D. João I regedor a defensor por meu Senhor elrey de seos rregnos esenhorio uos enuio muito saudar como aaquelles que queria veer muito honrra- dos. eu uos screpuj como a Raynha era partida dalmeyrim ecomo sua partida nom mostraua outra cousa senom cuidado e tençom demeter estes rregnos em diuisom e lhes basteçer e azar guerra com Castella, e porquanto a seruiço delrey meu Snor esegurança desua terra, he muito compridoiro amym eatodos aquelles que leaes e uerdadeiros portuguezes som proueermos acerca das cousas que som necessárias porbem e defenssom dos d.t08 regnos, eu escrepuo adom alu.° bpo dessa cidade que se venha logo aella e com uosso acordo e consselho encaminhe como a d,a Cidade seia guardada de todallas cousas que lhe compridoiras forem assi e pella guisa que o era nos tempos da guerra, porem uos encomendo emando que trigosamente e comtoda boa dilligencia obrees em esto todo oque com conselho do dito bpo e vosso acordardes e uos elle por seruiço dei rey meu Snor ebem e de- fenssom dessa cidade requerer. E todo boo encaminham.'0 que a esto derdes uos gradecerej mujto e teerei em seruiço scripta em Santarém y dias de nou.ro stm. pez. afez. (Falta-lhe o atino que è 1440) -f Iffant dõ p.°= (Maç. de Pap. An.tos da Camer. de Coimbra N. ai.) IX Fragmento de húa carta Regia p.a q. certas ordens q fossem expedidas, tivessem toda a authoridade sem assignatura, levando certos sellos com q. esta m.ma carta vai sellada A. 1440 . . . elrey meu ssenhor e Jrmaoom cuja alma deus aja começou de Nov. 19 reignar. . . sseu reignado, entrou com paz eassesego eem sseendo Ifante costumaua de assynaar todas cartas. . . por auer melhor conhocimento decomo sse as cousas passauam asynaua todallas cartas e desenbargos que per sua merçee deuiam passar eeu depois que pergraça de deus o rregimento destes reignos delrey meu senhor tenho ataa aora. Custu- mey a maneyra que od.to senhor rej meu Irmaoom tynha e em ella pesseuerey ataa opresente em que tam grandes epesados feitos me sobreueem como bem ueedes eporque a meude sse rrecreçe que eu aja descreuer geeralmente pertodo orreigno e esto a as uezes compre com tam gram trigança que por rremediar aoutros negócios em muitas ma- neiras de partidas nom ssam em ponto de todallas cartas proueer easy- nar e por rremediar aesto pensey que cartas de auisamentos geraaes eoutros mandadeyros que muito necessário nom he leuarem firmeza de meu signal ou que osseja podem muj bem passar per seellos delrey meu Senhor e meus emlogo de signal. tiue consselho sobresto eem elle acordey que passassem asy per os d.tos sseellos. porem uollo note- Appendice 4 1 7 fico assy eem esta presente enuyo amostra de huum sinete das armas delrey meu Senhor que eu trago comigo eo outro darmas e cimeira oqual traz lopafom seu secretario etres sseellos meus e huum sinete deminhas armas oqual eu comigo trago e outro he das mjnhas armas com elmo eçimeira eoutro he sinete da minha diuisa daballança os quaes tem o Doutor esteuom afom do conselho delrey meu Senhor meu chançeller e scripuam da minha puridade eeste uos faço saber por dardes fie aas cartas assediadas com cada huum dos d.10* seellos como sse fossem asynaadas per my scripta em a uilla de Santarém xix dias de nouembro. Rui pez godinho afez ano 1440 = -)- Itfante dõ p.° = L. de Sinco sellos de chapa = (Maç. de Pap. An.,os da Camer. de Coimbra N.° 8.) X Carta Regia ao Cone.0 de Coimbra p." se acharem armados athe 21 daquelle meq p." partirem com o Inf.e D. Pedro p." o Alemtejo opporse ás intenções hostis dos castellanos Caualleiros fidalgos escudeiros. Nos elrey uos emujamos muito sau- A. 1440 dar. Bem sabees como per aazo do moujmento darrainha e do perçe- Dez°8 bimento de guerra que algúus castelaãos fazem em quererem vyr pode- rosamente contra estes nossos reignos uos enuiamos rrequerer que uos fezessees prestes de corregimento de guerra pêra hirdes seruir onde per o Ifante dom p.° meu muyto amado e prezado tyo nosso titor ecurador rregedor e defensor de nossos reignos fosse mandado tanto que sseu recado vissees eporque ssegundo as nouas que de pre- sente auemos os d.'0" castelaãos entendem vyr mui cedo asy poderosa- mente, hordenamos que o d.t0 Ifante dom p.° aja dhir contrariallos em nossa defenssom ede nossos reignos eporque elle entende departir prazendo adeus pêra acomarca daalemtejo ornais tardar ataa os xxj dias deste mes e mais cedo sse taaes nouas ouuer porque sua partida mais cedo sseja conpridoira, eporque anosso seruiço compre leuar comsigo amais gente quel el poder uos mandamos que logo ssem de- longa uos partaaes efaçaaes em tal guisa que sejaaes onde o d.t0 Ifante for antes do d.t0 dia corregidos todos e prestes deguerra e sseede certos que de o assy conprirdes nos farees estremado seruiço . . . que nos faremos merçees. Scripta em Santarém viij dias de dezembro per autoridade do Ifante dom p.° tetor, ecurador do d.to S.or Rey Regedor defensor por el de sseos reinos senhorios. Ruy pez godinho afez ano 1440-f Iffante dõ p.° = (Maç. de Pap. Antigos da Camer. de Coimbra N.04Ó.) 27 4 1 8 Os Jilhos de D. João I XI Carta Regia ao Con.c0 de Coimbra p." lhe enviarem dous procuradores, comq pretende deliberar sobre o abatim.10 a q*. se reduzirão as sisas, depois de relevados nas cortes de Lisboa os varejos, e descaminha- dos, e outros neg.os do seo serviço. A. 1441 Juizes e Vereadores eprocurador e homeens boos epobos da nossa M?0 !4 cidade de Coimbra. Nos elrey uos enujamos mujto saudar, bem sabees como nas derradeiras cortes que fezemos em Lisboa, nos rrequerestes que uos releuassemos que nas nossas sissas nom ouuesse uarejos nem descaminhados e per os nossos oficiaes da fazenda aque nosso rreque- rimento falamos nos foy d.t0 sse uollo asy outorgasemos que as vendas das syssas ualeriam menos o terço ou mais enom embargando que uolo asy dissesem por uos aprazermos ao que nos rrequerestes uos relleuamos delo e uos encomendamos logo que fezesees per tall guisa e desees taaes aazos perque nossas rendas nom mjnguasem por ello do que suyam de rrender, e vos uos obrigastes ateer taaes maneiras que nossas rendas esteuessem com aquelle boo estado emque eram esegundo orrecado que ouuemos dos nossos contadores e almoxarifes as d.tas sissas mjnguarom tanto o ano passado também as rendadas como as que sse per nos recadarom que he muyto eeste ano presente lançom tam pouco em alguCías que querem arrendar que he gram perda de rreçeber os lanços que nellas fazem e ajnda esto fazem em muy poucas rendas, assy que asmais do do regno ficam por rren- dar dizendo os que rrendeiros sooem deseer que nom ham porque lançar neellas pois que o aazo principal porque aujam de seer bem re- cadadas he fora e por tall mjngua de nossas rendas nom sintimos boo camjnho nem aazo per ohonde possamos soportar nem manteer nosso stado nem gouernança dos Ifantes meos Jrmaãos e tyos nem donde sse façam as despessas que sam necessárias para gouernança e defensom de nossos regnos porque esta era a prinçipall emais certa rrenda per que todo rremediarmos, porem uos encomendamos que escolhaaes antre uos dous homeens boos entendidos ediscretos edeseiadores do nosso seruiço e do bem da nossa terra e os enujees anos honde quer que esteuermos aos xxv dias do mes dabrill primeiro pêra esto eoutras coussas que conprem a defensom denossos regnos com elles falarmos, e com seu acordo eboo conselho detremjnarmos como se todo poderá rremediar escripta em Lamego xiiij dias de março per aoutoridade do Senhor Ifante dom p.° tetor ecurador do d.t0 S.or rey regedor e defens- sor por ell deseos regnos e senhorio a.° estêz afez 1441 + Ifante dõ p.°= (Maç. de Pap. An.,os da Camer. de Coimbra N.° 20.) Appendice 419 XII Carta regia sobre o augmento do valor dos leaes de prata Dom Affomso per graça de Deus Rey de portugall e do Algarue e A. 144 1 SnÕr. de çepta. A uos meend afóm nosso corregedor na comarqua de M' '-' estremadura e auos alu.« anes elourençe anes e allõm uaasquez nossos comtadores em a d.u comarqua, Bem creemos que sooes em conhe- cimento que as moedas foram feitas pêra se per ellas trautarem as mercadorias eas outras cousas que se compram e vendem ese nos rregnos e terras ha auondança demoeda trautamse mais mercadorias eos moradores deles som por ello mais rricos eaterra auondada do que lhe faz mester; e porquamto el rey meu Snór epadre cuja alma deus aja mandou a esta fim laurar grande soma de leaes de prata e horde- nou que cada huu ualesse dez rs brancos, eper sentirem neeles tanta bondade que ualem mais os guardarom e leuarom pêra fora de nossos rregnos e ajnda fundirem alguus deles deguisa que poucos parecem agora nem correm e fazem por ello mjngua naterra, e pordarmos aazo que se corram e trautem e aqueles que os teem façom com elles seu proueito, determjnamos que cada huum dos d.,os leaaes ualham doze rrs brancos, porem uos mandamos que assyo mandees logo apregoar per os lugares e Julgados dessa comarqua deque teemdes cargo, e quetomem edem cada huum dos d.los leaaes empreço de doze rrs bran- cos em pagas de nossas rrendas edir.'0" edoutras quaaes quer diuedas emercadarias, ecousas que comprarem evenderem sem poerem so- brello nehuu embargo, e nos lugares prinçipaaes dessa comarqua, fazee rregistar esta carta no liuro da Camará do Concelho pêra se por ella rregerem. Dada ema cidade de Lamego ix dias de março perautoridade do SnÕr Ifante don pedro tetor e curador do d.to Snõr Rey rregedor defensor por el de seus regnos e senhorio ruy uaasquez afez Ano de nosso S.or Jhú x.° de mjll iiijC xLi=-f-Iffante dõ p.° (Maç. de Pap. An.'os da Camer. de Coimbra N.° 71.) XIII Carta do Sr. In/. D. Pedro ao Con.M de Coimbra participando-lhe ter-se desposado EIRey com sua Filha Caualeiros fidalgos scudeiros homêes boõs e poboo da nobre eleal A. 1441 cidade de coymbra. O IfTante dom p.° rregedor defemsor por meu Snõr Ma>' 2Ô elrey de seus rregnos e senhorio, uos enujo mujto saudar, como aqueles 42 o Os fi lhos de D. João I que queria ueer mujto honrrados, bem creo que serees lembrados, como nas cortes que se fezerom em a muy nobre emuy leal cidade de lixboa per uossos procuradores me rrequerestes, que me prouuese casar elrej meu Snor com a Senhora rraynha minha f> oque uos mujto gradeçy etiue em seruiço por me rrequererdes cousa tamto da- crecentamento de mynha honrra e agora eu dise aos procuradores das cidades e vilas destes rregnos, que atorres uedras veerom que forom chamados por cousas que perteençem aa fazenda do d.t0 Snor como nom poderá encamjnhar ataa ora este casamento por os grandes ocupa- mentos etrabalhos que sobreveerom aestes rregnos eamym muy prin- cipalmente e eles merresponderom que mepediam por merçee que o fezese logo ornais cedo que bem podese e eu por comprir o que me per elrey meu Snor e Jrmaão cuja alma deus aya foy encomendado esatisfazer aos desejos dos que amaaes seruiço delrey nosso S.or emeu ebem deseus rregnos, ontem dia daaçenssom com outorgamento do santo padre eprazer do d.t0 rej meu S.or que ofez com muy boa uon- tade eacordo demeos Jrmaaos edos outros aque pertencia; od.to rej meu Snor esposou com a d.ta Senhora rejnha mjnha filha, e porque som certo que uos prazerá de osaberdes, uolo escrepuo. Dada em o bonbarral xxvj. dias de mayo ruy uaasques afez i44i. = -|-Iffante dó p.° (Mac. de Pap. An.,os da Camer. de Coimbra N.° 4.) XIV Carta Regia ao Con.co de Coimbra sobre a moderação nas penas com tf se tinha outorgado cobrar-se a sisa, de cuja graça não devião abusar A. 1441 Juizes vereadores procurador e homêes boÕs. Nos Eli Rey uos en- May 3' ujamos mujto saudar, bem ssabees como em as cortes que fizemos em anossa muy nobre emuy lleal cidade de lixboa nos foy requerido por parte do poboo per os procuradores das cidades evillas destes nosos regnos que a ellas vierom que ffosse nossa merçee mandarmos que em nosas sisas nom ouuese varejos, e descamjnhados porque nossos offe- ciaes e rendeiros que tynham carego deas recadar lhes ffazyam mujtas ssogeiçóoes, eante que déssemos determinaçõees sobre seu requeri- mento falíamos com os nossos veedores ecom os outros ofyciãaes de nosa ffazenda que nos disessem oque era oque lhes desto parecya os quaes todos nos afirmarom que ssehy nom ouuesse os d.tos descamj- nhados evarejos effossem tirados era fforçado de as rendas desfalece- rem mujto porque este era o prinçipall remédio que lhes fora achado per os reys meus senhores auoo epadre cujas almas deus aja porem ssem embargo dello por o grrande amor eboa voontade que teemos a Appendice 42 1 atodollos naturaaes de nossos senhorios, dessy porque nos pormete- rom os procuradores das d.tas cidades e villas que elles ffaryam em tall maneira que nossas rendas non desfaleçesem e entendendoo que ssee- ria asy lho outorgamos ssob esta condiçom cujdando que sse terya em ello tall maneira que nossas rrendas nom mjgariam o que sse seguio pello contrario porque em este tempo que lhe esta merçee ffoy feita os mercadores eoutras pessoas que conprauam e veendiam obrarom em allguuns logares de tall guissa que nossas rrendas desfaleçerom em ta- manha cantidade que era cousa fora derrazom e ajnda nos parecia que leuauam camjnho pêra sseerem perdidas detodo, enos veendo tall perda conhocida e por o corregermos ante que em ello mais dano se offerese escreuemos aas cidades e alguuãs villas principaes destes re- gnos que emviassem a nos sseus procuradores porque lhe entendya- mos de fallar acerca deste corregimento osquaaes os enviarom e per nos lhe ffoy d.to ossusso escripto, e alguuas outras rrazõees amostrran- do-lhe odapno que ssedesto poderia recreçer anosso estado ebem do regno sse nom ffosse emmendado, porque nos prazeria mujto seer ffirme o que ja per nos fora outorgado de nom aver hy os d.'0' varejos, e descamjnhados, comtanto que elles buscassem taaees rremedios per- que nossas rrendas rendessem outro tanto como ssoyam atee que lhes taaees liberdades ffossem dadas, e elles sse trabalharom quanto bem poderom de ueer sseos poderiam achar, e nos disseram algúus que a eles parecia seerem boos os quaees nos sentimos seerem taaes que posto que se dese aaeixucuçom nom vyriam nossas sisas a seu uerda- deiro rrendimento segundo amte soyam edalguus outros rremedios que nos achamos que lhe forom notificados nom cairom em elles por- quanto lhes pareçerom taaes que seriam mais oudiosos aopoboo queos d.tos uarejos edescamjnhados e asua conclusom foy que nom sabiam mjlhores rremedios pêra sse nossas sisas bem rrecadarem como dese- java eopoboo viuer mais fora desojeiçom que mandamos tirar as d.ta» sisas per os artygos perque sse recadarom nos tenpos dos rreix meos senhores auoo epadre cujas almas deus aja, por tal guisa queos poboos sejam docemente trautados esem aspereza e que toda cousa que se custumou seer perdida quando descaminhaua que se pague sisa em dobro per aprimeira e per asegunda uez que descamjnhar epor ater- ceira em tresdobro epasadas as d.tas três uezes nom sequerendo qual- quer que em elo fosse achado emmendar que o leixauam em a nosa rreal conçiencia emandasemos em elo como visemos que fose mais nosso seruiço e emproueito de noso poboo, e toda outra cousa per- que alguum fosse theudo de pagar sisa em dobro que por aprimeira uez nom pague saluo sisa direita como secomprase e uendese. pedin- donos por merçee que asy lho outorgasemos porquanto entendiam que todolos outros rremedios erom mujto doujdosos e taaees deque o poboo seria mais descontente eanos aprouue de lheassy seer feito, posto que bem sentisemos que era muy grande guarda de ter nosas 422 Os filhos de D. João I rrendas auer hi descamjnhados deseperder toda amercadoria oque nom quissese dela pagar nosos dir.tos easy a sisa emdobro dos que passasem nossas hordenaçóoes porque nosa teençom he de lhe seermos sempre fauuorauees emtodo o que bem poder. Porem uos rrogamos e enco- mendamos que consirees bem em como nos nom teemos outra tam boa cousa perque noso estado e demeos Jrmãass tios eprimos possa seer mantheudo e gouernado saluante sse he oporque rrendem as ssisas e aynda em como todolos fidalgos e outras pessoas grandes do rregno e outros mais somenos denos ham teenças e mantjmentos que os gouernam y ayudam asoportar os quaees nom as auendo era forçado seerem descontentes e nom teerem maneira pêra nos bem poderem seruir aos tempos das necesidades as quaees em cada húu dia podem acontecer segundo obem que nos querem algúas pessoas dos rregnos anos comarquaãos, e tenhaaes maneira emcomo nossas rrendas sejam bem trautadas eque rrendam oque comrrazom deuem, ese sentirdes que alguus querem fazer o contrairo que lho nom consentaaes, esse em esto bem quiserdes consirar acharees que desse asy fazer sesegue jeeralmente atodolos moradores de nossa terra mujta honrra eproueito edefensom, enos screpuemos ao noso contador que com rregardo de nosso seruiço se trabalhe quamto bem poder que acerca dos d.tos ua- rejos e sisa em dobro eem as outras hordenaçóoes quesom feitas sobre o arrecadamento das nossas sisas setenha tal tenperança que ellas sse rrecadem onestamente nom consentindo seer feito ao poboo cousa nom deujda scripta no bombarral xxxj dias de mayo per autoridade do Snõr Ifante dom p.° tetor ecurador do d.'° Snõr rey rrejedor edefemsor por el deseos regnos e senhorio ruy vaasquez afez 1441 = + Iffante dõ p.° (Maç. de Pap. An.108 da Camer. de Coimbra N.° 67 athe 68.) XV Carta Regia ao ConS0 de Coimbra convocando cortes p.a euora A." 1441 Juizes Vereadores procurador ehomêes bõos nos Elrrej uos enuja- Dez° ig mos mujto saudar fazemos uos saber que anos he conpridoiro fallar- mos e detremjnarmos com acordo dos poboos de nossos regnos al- gúuas cousas muyto compridoiras a nosso seruiço bem e defenssom delles eporem uos encomendamos emandamos que escolhaaes doos homêes boõs que amem nosso seruiço eobem e homrra de nossa terra e nollos enujees com uossas procuroçõoes d'euora essejam hy aos xxv dias deste mez de Jan.ro que ora uem ao quall tempo prazendo a deus nos seremos em a d.ta cidade e aesto nom ponhaaes embargo nem tar- dança e teruoloemos em seruiço escripta em santarem xix dias de dezbr.° per autoridade do Snõr Ifante dó p.° titor ecurador do d.t0 Appendice 42 3 senõr rej rejedor e com aayuda de deus defensor por ell desseus rre- gnos e senhorio. rr.° afies afez 1441. E eu Lop afóm secretario do d.'° Snór rej que esta carta mandej fazer eaqui so escrepuj =^-f- Iliantc dõ p." (Maç. de Poq. An.1»" da Camer. de Coimbra N.° 45.) XVI Carta Regia ao Con.c0 de Coimbra p." se acharem sempre apercebidos p." aguerra Cauleiros escudeiros e homêes boós. nos elrej uos enuyamos muyto A. 1442 saudar, bem sabees como todos os de nossos reinos per uezes forom _ D ' Dez. 20 rrequeridos assi da nossa parte como dos Ifantes e o conde de barçe- los meus muyto prezados e amados tios edos condes meus bemamados primos que estiuessem percebidos pêra quando fosse compridoiro a nosso seruiço eaobem e defemssom de nossos regnos epor auer dias que esto foy, poderá sseer que o pooerees em esquecimento e porque tal caso sse pode seguir que nom dava espaço auos mandarmos outras cartas de perçebimento encomendamos uos emandamos que vos estees pretes S. os caualeiros escudeiros homêes darmas cada huum como lhe perteêçer eos beesteiros com suas beestas e almazeês eassi os ho- mêes de pee e as outras pessoas na maneira em que cada huu deue de seruir pêra tanto que virdes nosso rrecado poderdes sseer onde uos mandarmos por nosso seruiço epor bem e defenssom de nossos regnos e de o assi fazerdes uollo teeremos em grande seruiço e receberees por ello de nos merçee. escripta em a cidade deuora xx dias de dez.0 per autoridade do Senõr Ifante dom p.° titor e curador do d.'° senõr rey regedor com a ayuda de deus defensor por el desseus rregnos e senõrio rr.° anes afez 144 - E eu lop a.° secretario do d.'° Snõr rey que esta carta fez escrepuer e aqui lo escreuj.= -f-Iffante dõ p.° (Maç. de Pap. An."" da Camer. de Coimbra N.° 47.) (G) ALFARROBEIRA, NAS CHRONICAS DA BORGONHA « Et le duc, quand il sentit venir le roy, se cloyt et fit un camp cios de fossez et d'artillerie, et mit ses gens en bonne ordonnance : et à ce que rrfont plusieurs nobles hommes portugalois (qui furent présents) certifié, le duc ne le faisait en autre intention sinon cuidant faire par- tir de son camp aucuns des plus notables, pour aller au roy en grande humilité, pour soy recommander en sa bonne grace, et sçavoir les cau- ses pourquoy il estoit meslé avec sa royale magesté, soy escuser par humbles voyes, et lui ramentevoyr les services qu'il entendait avoir faicts au roy en ses jeunes jours et à 1'utilité du royaume en concluant qu'il luy ofírait som serviçe. Mais il advint que les arbalestriers du roy de Portugal approcherent du camp en grand nombre et se commença une escarmouche par meschans gens, d'un costé et d'autre, tellement que d'un trait d'arbaleste, le duc de Coimbre au milieu de ses gens fut atteint en la poictrine, dont il mourut en celle mesme heure, et n'ay point sceu qu'un seul homme de nom fust blessé, ou atteint de celle escarmouche fors le duc seulement. . . Ainsi fust le duc de Coimbres OCC1S ». Les Mem. de mess. Olivter de la Marche, (m.* ed.) 291. Circa haec têmpora obiit Edwardus, rey Portugalliae pater Eliza- beth, ducissae Burgundiae, qui reliquit Alfonsum infantulum; et per consilium nobilium fuit ordinatum et conclusum est quod Petrus avun- culus ipsius infantulum regem gubernaret. Unde indignati fuerunt fratres seniores ipsius Petri. Unus recedens a regno se recepit apud magnum magistratum Hispaniae cujus filiam cepit uxorem; alter Henricus nomine parum intromisit se de regno. Videntes autem principes regni quod Pe- trus ad projectum suum potius de regno disponeret omnia, persuase- runt infantulo quod peteret ab eo computa reddi. Qui juvenis rex, pluribus convocatis nobilibus, curiam primam celebravit quasi coronam accepturus. Interrogavit autem avunculus de statu regni. Qui confusus 42 6 Os filhos de D. João I hac vice non tradidit rationem villicationis commissae, sed indignato animo recessit nec ad jussum rediit. Tandem pace media, de summi pontificis licentia, factum est ut juvenis rex filiam avunculi sui Petri assumeret in uxorem. Quo facto, nec adhuc idem Petrus ausus est ve- nire ad regem, sed timens invadi, fortificavit se contra regem. Nichilo- minus quandam ambassiadam misit ad regem, sed rex capi fecit ambas- siatores. E contrario Petrus cepit servitores regis et publica exorta est guerra inter regem et avunculum suum; et perventum est ad pugnam; sed regi cessit victoria. Retraxit autem se Petrus in fortalitia sua et non multo post cum omni potentia sua campum elegit, secum ducens duos filios suos gemellos, Jacobus vocitatos, et in auxilium ejus frater ejus venire promisit. Similiter et magnus magister Hispaniae promiserat de- cem milia pugnatorum in succursum ejus dirigere. Rex vero cum omni potentia sua perrexit ei obviam; et conserto praelio, non succurrenti- bus illis Petro qui venire promiserant ad dictam assignatam, prostratus est et interfectus praefatus Petrus avunculus regis. Et filio ejus sub dumo reperti sunt plorantes et lacrimantes, qui per quosdam amicus de- lati sunt in Flandriam ad ducissam Burgundiae, materteram eorum, una cum sorore ipsorum, quae postea matrimonio conjuncto fuit do- mino Adulfo, filio ducis Clevensis, sed a quodam Johanne Consteyn, Ut fertur, intoxicata. Adrien de But, Chron, (ed. Bruxellas, 1870), 258. (H) QUATRO DISCURSOS PROFERIDOS EM ÉVORA PELO DEÃO DE VERGY, J. JOUFFROY, ENVIADO DO DUQUE DE BORGONHA, A EL-REY D. AFFONSO V em defeca do infante D. Pedro e de seus filhos (l449-5o) [9] Ad Alfonsum Quintum, Portugallie atque Algarbrii regem eum- demque adolescentcm validissime indolis, ut rex ipse a suis patruelibus agnatis iniustissimam cca.amita.tem et iniuriam quam multi nobiles re- gni, amissis fortunis omnibus, acceperunt, abducat, in eosque transferat suam clementiam Ioanms Ioffridi, decani de Vergeio, sanctissi?ni Do- mini nostri Pape referendarii, et illustrissimi ducis Burgundie oratoris, oracio incipit, dieta Elbore VIa decembris AP CCCC" XLIX". Temperanciam sane difficilem, et que, Rex inclite, rarior sermones incurrit, commissionis nostre múnus efflagitat. Congratulandi namque tibi, quod adsint tanta semina laudis, et deplorandi monstrum infame quod familiam tuam concussit, contrarie nobis partes adsistunt: adeo fortuna nos magno voluptate permulcet, et ex adverso nos summus do- lor exagitat. Nempe quia in te iuvene cernimus veteris gravitatis exem- plar; quia te, quem Nostro Principi atíectum scimus, índoles boni tanta collustrat ut omnes virtutes in te vigere fama sit, quas in reliquis regi- bus multis singulas admiramur; denique quia, ut Salomon loquitur, in facie prudentis sapiência lucet, nobis tibi congratulandum, Principi Nos- tro gaudendum, nobis ad omnia bene sperandum esse persuademus. At contra in Portugallie vetustissimam gentem, sive fama rerum gestarum, sive omni commendacione humanitatis, quum Furie cecide- rint ille que omnium hominum furores exsuperent: profecto, Rex Ma- xime, sicut emuli tue Maiestatil obtrectant, sic amicissimum tibi Prin- cipem Nostrum dolere necesse est. Altam enim nobilitatis stragem, cognaciones régie calamitates, fugam, exilium, prófugos próceres cer- nere in tuo regno gemitus, lacrimasque tuorum posset excutere, quan- 428 Os filhos de D. João I quam leviora hec ex consuetudine malorum facta paciência facit. Ve- rum, o viri Portugalenses, qualia creditis esse murmura vulgi? Quales extranearum regionum rumores? Vos vestrummet sitivisse cruorem, vos vestrorum mortibus álacres uti, vos hilares acuisse ferrum in eum prin- cipem qui familie régie splendor, qui decus Hispanie, qui vestre patrie solamen erat ! Denique vos vestri regis fratrem, vestri regis patruum triduo feris alitibusque reliquisse! Heu dolor! Nec tanto principi digna etiam mediocribus viris solempnia, nullasque largitas exéquias ! Audivimus, o viri, audivimus hec alta vestre fama vulnera. Audivi- mus in his afflictum patrie Portugallensis honorem. Quid estigitur, Rex Serenissime, ubi nos frangit tanta perplexitas, quod aut citra cuiusquam offensionem opportune dicere, aut fide non violata, reticere possimus? Quid, cum tristicia animum nostrum debilitat, quod dignum tuis auri- bus aut probabile nostra oracio possit afferre? Profecto illud nos reficit et recreat quod in hilaritate vultus regis est vita, ut Salomon loquitur, et qui sapiens est audit consilia. Neque nunc aliud apud te nobis conandum est quam regii animi tui, non nostri ingenii, tue sapiencie [10] , non eloquencie nostre spectare portum. Nempe gloria est hec illustris et pervagata regni tui Portugalensis, quod e fontibus virtutis manans, e liquido etiam prudencie fluxit. Ferunt namque Herculem, qui Gades in Oceano exstruxit, in tuo regno ste- tisse; ferunt et illum, quem apud Homerum regum rex Agamemnon sapientem et bellorum finitorem appellat, Ulixem, urbem precipuam regni Portugalensis Ulixbonam stabilivisse. Itaque alter in tuo regno fortitudinis et magni animi semina iecit, alter prudencie et mansuetu- dinis impressa vestigia imitanda tibi reliquit. Quo uno, que nobis opor, tunitas potest oportunior esse ? Quid elegancius ad tibi congratulandum- quam te imperitare gentibus optimis atque magnanimis? Quid equius ad levandam iracundiam animi tui, quem te virtutis, non voluptatis Herculis, atque proborum, non conviciatorum ódio, cupiditate, pertiná- cia, hominum sequi exempla i Denique quid vehementius ad crudelita- tem cohercendam quam ipsius Ulixes affabilitas, dulcedo, comitas atque prudência. Hic Agamemnonis atque Achillis iram restrinxit ; hic pro patrie gloria etiam ancillarum convida pertulit. Hic in Nestorem, quam- vis inimicum affinem, tamen cuivis notam non permisit insimulari; hic mansuetudinis atque clemencie nervos cor esse regiarum virtutum, et robur regni cuiuslibet arbitrabatur. Hec est igitur clemencie in tuo regno non scripta sed nata lex, quam tuis auribus incutit tuba celestis, quam cithara regia pulsans, Memento, inquit, Domine, David, et omnis mansuetudinis eius. Quid ita ? quia man- sueti ipsi hereditabunt terram. Quo pacto? Quia mansuetudo ex vili pastore David sublimavit in regem, acerbitas vero vindicte, ne atroci- tas, Saulem ex vértice deiecit. Et sane, quamvis propter summam pru- denciam tu, Rex Clementissime, consilio multo non eges, quia tamen Scriptura admonet, Da sapienti occasionem et addetur ei sapiência, doce Appendice 429 iustum, et festinabit accipere ; vis scire misericordiam régie dignitatis propriam esse virtutem? Siquidem reges vice Dei populos dirigunt, si misericórdia eius super omnia opera eius, haud secus quam Deum pa- rere et considere generi humano reges decet. Nempe sicut fremitus leonis, ita ira regis, et sicut ros super herbam, ita et hilaritas eius. Atque ut nihil in republica deterius quam ad summum imperium na- ture acerbitatem adiungere, ita in rege clemência, nature bonitas, mi- sericórdia fulget ut aurum, splendet ut gemma, coruscai ut sol. Quid- quid igitur dicemus, Optime Princeps, ad unam summam referri volo, vel humanitatis, vel misericordie, vel clemencie tue. Nam quamvis existimem quosdam tuis clementissimis auribus incul- casse severitatem, teque dehortari in tuos esse misericordem, tamen ne tuum brachium cum suis ossibus conteratur, ne super pupillos eleves manum tuam, licet superior, ut Scriptura loquitur, in porta sedeas, et titulus forsan iuste cause adsistat, legati venimus. Verba impiorum, in- quit Scriptura, insidiantur sanguini, os iustorum liberabit eos. Deside- rium iustorum, inquit Salomon, omne bonum cst, prestolacio impiorum furor. Itaque si tu non Circe blandícias, sed velut vulpes prudens a Nostro Príncipe sapiencie monita, et non tam suavia quam utilia tibi auscultas, tu ducis Colimbri familiam illustrem restitues bonis, fortunis, rebus, honoribus; tu eiectos nobiles, qui ducem Colimbri secuti sunt, iterum [11] colliges in sinum tuum; tu sepulturam maiorum patruo tuo non denegabis, quam nullus illustris hostis hosti denegavit; tu denique omnia vulnera belli curabis; tu victor victorum elucens potius animum vinces quam animus te. Primum igitur, Clementissime Princeps, ut eversam patrui familiam ipse restituas exemplum te divine legis hortatur; secundo potentissimo- rum et laudatorum regum monimenta incitam; tertio fundamentum virtutum omnium pietas in parentes impellit. Legisti ne Iudicum libros? Admiserat gravissimum facinus tribus Beniamin; certaverat contra reli- quum Israel; prélio contra ipsam CCC M hominum armata sunt et, summa clade accepta egit penitudinem universi Israel, dixeruntque maiores natu : Summa cura et ingenti studio nobis providendum est ne una tribus deleatur in Israel. Quis ergo tibi consulere sapienter au- debit ut illustrem familiam Colimbri, spem magnam tui generis, decus et florem sanguinis tui extorrem pátria, spoliatam paterno domínio, profugam et per exteras regiones nudatam fortunis omnibus, fedum dictu, fedius prospectu videas? Anne redundam iste tempestates acer- bissimo luctu? Vis tibi ante óculos unumquemque clarissimorum fama regum pro- ponam? Lucius Paulus regem Persem sensit hostem acerrimum, eum prélio vicit, prostravit, fudit cepitque : tamen ad pristine fortune habi- tum restituit. Pompeius Tigranem regem vicit, fregit, contudit cepitque : sed omnibus restitutis, duxit eque pulcrum victos de novo facere prín- cipes atque vicisse. Marcum Marcellum laudat antiquitas quod eius vir- 43o Os Jilhos de D. João I tutem hostes, misericordiam victi prospexerunt, quod urbem pulcher- rimam, Siracusas, vi captam, non solum incolumem passus est esse, sed ita reliquit ornatam ut esset idem monumentum victorie et clemencie sue, cum viderent homines quid expugnasset, quibus pepercisset, que reliquisset. Dies me diíiciet, R. L, si in hec exempla quasi in infinitum pelagus vela immittam. Quis acerbior hostis in Cesarem quam Cato fuit? Et tamen ipse idem Caius César liberis Catonis patrimonium incólume servavit, nichil oblivisci solitus preter iniurias. Si ergo illud fuit Cesari, victori orbis, omnibus suis victoriis longe illustrius quod extraneis et infestissimis hostibus parcere didicit, noli, Rex Clementissime, noli obse- cro dubitare, parcendo sanguini tuo similem illi laudem velle acquirere. Nichil habes vel fortuna maius quam ut possis, vel natura melius quam ut velis servare et augere plurimos. Audi eloquencie verticem Tullium : «Animum, inquit, vincere, iracundiam cohibere, victoriam temperare, adversarium nobilitate, ingenio, virtute prestantem non modo extol- lere iacentem, sed etiam amplificare éius pristinam dignitatem, hec qui faciat non ego eum, inquit, summis viris comparo, sed simillimum Deo iudico». Satis multa hec esse debent hominibus non iniquis, nimis vero multa tibi, quem equissimum fore confidimus. Accedat ergo nunc tibi, Rex, animoque occurrat tuo que ira, quis dolor, que mesta insígnia, qui fietus amicis tuis ingesti sunt, ob istam cognatorum tuorum calamitatem. Co- gita de Nostra Principissa illustri. Ey michi, quomodo ipsius cor cala- mitas ista funditus vertit ! Heu furie, dum fratris meminit in corpore telum horribile ! Heu dolor, [12] heu alti gemitus, et muta suspiria, dum sui generis partem permaximam, mos cognatos, Rex, quasi per fulgur illapsum, fugatos audit ex patriis laribus ! Videre sibi videtur gloriam mansuetudinis, quam tuus pater et tuus avus pre ceteris regibus sor- tiu erant, depulsam esse a tuo regno. Cernit animo sepultum patrem, Portugalensem honorem, dum sui fratris mansit insepultum cadáver; versat ante óculos aspectum flebilem sororis sue Colimbri, et cum fe- mineos cetus tanquam virginum plangentia agmina, tum fugam nobi- lium, tantique sanguinis mendicitatem. Da veniam aflicte, o Rex, et co- gita quotiens sibi ad cor reducitur nobilissimi principis cedes, cruor germani, trucidatio fratris; cogita quantus suis ossibus horror, et quis color in vultu suo deprehendatur ! Hec, siquidem quamvis te veneratur et amat, non litteras ad te, sed gemitus mittere potuit; hec nos disce- dentes tangens aspersit lacrimis, et pre dolore loqui nescivit. Cogit igitur pietas ipsa, et tuus honor, Rex Clementissime, ut obse- cremus et obtestemur ut bonitati, clemencie, humanitati tue tu obse- quáris. Cuius enim alterius bonitas quam tua a nobis imploranda est? Quem exorari facilius posse sperabimus? Avus tuus, R. I., qui agris et urbibus ac summa gloria hoc tuum regnum adauxit, ut illustrissima do- mina nostra recenset, regi claríssimo tuo genitori propagandam in te Appendice 43 1 doctrinam prestitit, cum propinquis cognatisque ut convenires, servarcs unionem et pacem, regni tui gubernacula per misericordiam, non per severítatem, per clemenciam, non per crudelitatem constabilires. Lux ea fertur Solonis»: Si quis parentes cognatosque neglexerit, is igno- bilis et obscurus esto. Benejacit anime sue, inquit Scriptura, vir mise- ricors; qui autem crudelis est, propinquos abiicit, qui conturbai domum suam, inquit Scriptura, possidebit ventos. Qui consanguineorum, inquit Apostolus, maxime propinquorum, curam non habet, malus est et est cette injideli deterior. Vincat igitur, Rex Clementissime, animum tuum tot racionum con- cursus. \'incat honestas que se legitimo iuri conglaciat. Dominus certe Iohannes, filius ducis Colimbri, propter etatem teneram, dici non po- test in te peccasse. Dominus Petrus, retroactus ab hoc tumultu, quid, obsecro, facinoris admisit ut patrimonium sibi sustuleris et beneficiis citra sententiam depuleris? Quid tihi nobiles qui tuum institutorem se- cuti sunt eousque fecit infensos ut eis non parcendum indicet? Omitto quod longe fideliores existimandi sunt qui in causa ducis Colimbri se- mel suscepta, quanquam errantes, perseveraverunt, quam qui ample- xati eam partem deseruerunt. Dixisse namque fertur Themistocles eos qui semel una signa erant amplexi nulla exinde spe deduci oportere, nullo metu terreri quin adversus etiam Iovem pugnarent. Sed esto de- liquerint: laudatur profecto apud Plutarcum Philippus, Alexandri pa- ter, quod qui consulebant in Athenienses victos amarius esse utendum, eos insanos dicebat, quia regem ipsum, qui omnia paciendo agendoque referret ad gloriam, per severitatem glorie theatrum iuberent abiicere. Est Titus Livius autor Scipionem gloriari solitum in omnibus se maiora, clemencie benignitatisque quam virtutis bellice monimenta re- liquisse. Ergo tu, Rex Clementissime, qui glorie segetem sulcas, memi- nisse debes clemenciam convenire regibus, imitarique debes Moisem qui, post mille iniurias acceptas a subditis, pro ipsis deprecabatur, pro ipsis mori optabat. Imitari Ioseph qui etiam fratrum invidia venditus, illis ultro pepercit, eosque beneficio sublevavit; imitari Periclem qui moriens [13] gloriabatur quod nullus vel admodum pauci ob se nigro induti essent, ac doluissent : quippe qui scias ovem reversam, drachmam perditam, prodigum filium cum leticia esse receptos. Atqui, o rem mirabilem, quando quidem multi instruunt parcere ne- mini, ymo vero negare patruo sepulturam patrum suorum : siquidem Alexander Macedo Darium prélio vicit, mortuum flevit, et funere am- plíssimo extulit. Fecit hoc David, quem licet Saiil persequeretur, et ad ipsius necem totum studium animi collocavisset, tamen flevit occisum et in sepulcro patrum sepeliri precepit. Fecit hoc Scipio, qui Hannoni acérrimo hosti non dubitavit exéquias celebrare. Sic Siphaci Munde in- i Nota legem Solonis. (Nota de JoulTroy. i 432 Os filhos de D. João I tra cárceres mortuo Romani, sic Emílio Annibal apud Cannas funus amplissimum extulisse leguntur: sic Thobias Dei gratiam meruit mor- tuis fratribus tribuens sepulturam; sic denique César super Pompeii ca- put effundens lacrimas maiorem ex misericórdia quam ex victoria glo- riam nactus, docuit regem in hostes esse debere lenissimum. Quis igitur tibi consulere audeat ut domestica severitate labores? Quis non intelli- git quod omne dedecus, omnis infâmia illata patruo tuo duci Colimbri ad te, veluti sanguinis regii fontem, redundat? Lex divina iniuriam, de- decus, notam illatam uni ad totam regnacionem producit. Hoc item lex civilis, hoc mos obtinet et institutum nobilitatis. Non igitur pudor, non pietas, non macula familie, non hominum fama, non coniunctorum tibi principum dolor, non Nostre Principisse luctus et meror, et cotidie fluentes per maxillas lacrime, hos tue iracun- die motus tandem sedabunt? O Regum Portugallie lúmen, rex Iohan- nes, tuas victorias míseras ! O flebiles labores pro Portugallie regno sus- ceptos! Quid non óculos in tuum regnum reflectis? Quid non cohibes prophanum et intra venas, intra víscera regis familie fedum certamen? Idcircone, obsecro, Illustres Próceres, rex Iohannes tociens duces Mau- rorum contudit? Idcirco adversus Castelle robur suum regnum victor deffendit? Idcirco opidum Septum inexpugnabile Portugallie regno su- biecit? Potentíssimos reges, claríssimos orbis príncipes per affinitatem huic regno illaqueavit, ut sui carissimi filii corpus, non solum violatum manu, sed ferro atroei confectum insepultumque cernatur? Et cuius virtute, armis, felicitate vos clari, vos magni estis, eius nepotes pergatis obterere? Extorres nempe sunt ab isto regno nepotes illius regis qui vos ornamentis pacis instruxit, qui vos bellorum sorte deffendit; non tantum in suo palatio regis Iohannis proles clemencie reperit, quantum apud eas gentes quibus rex ipse fuit dudum terrori. O misera têmpora, o rem deflendam, viri Portugalenses! Régie stirpis três príncipes per alienas domos misericordiam assequi, quam inter suos habere nequeunt ! Adeone gloriam contempnitis, exosi patriam et regis Iohannis dulce no- men, ut pulcrum ducatis infaustas manus polluisse sanguine régio, ut Castelle saturare velitis risus ob vestre gentis mendicitatem ! Proiicite hec odia ex animis: Deus enim istis furoribus obstat et contradicit. Tu vero, Rex depelle cunctos belli tumultus, et generis mi- serere tui. Obsecramus nempe ut saltem nobis Principissam Nostram in leticiam ex acerbissimo luetu restituas. Obsecramus per avi tui glo- riam, per iura sanguinis que violari non possunt, ut tui cognati, tui no- biles, patruus tuus [14] aliquando misericordiam capiant tuam: et si non propinquitatis, saltem etatis; si non cognatorum tuorum, saltem Principis Nostri iuvenis domini de Charolois, cognati tui, tue amite, re- gii nomines racionem habeas, ut quam estimacionem, quam honestatem in domo Portugallie et audierunt, et sunt amplexi, eam ne dedecores iniiciendo in tuum patruum turpissimam maculam, et ne ignominia fra- tres tuos patrueles afRcias provide. é \ppendice 433 Nunquam in sanguine régio Portugallic, ad hunc usque dicm non modo crimen auditum, sed nec turpitudinis ulla suspicio; fortes, stre- nuos, summe fidei, altissimi animi príncipes domus Portugallic semper produxit; paucos Portugalenses vel avo tuo, vel sui riliis ducibus, cum innumerabilibus copiis hostium signis collatis sepe pugnasse; plusquam reliquos christianos príncipes hostium et inimicorum ridei nostre prorli- gavisse, inexpugnabilia Maurorum opida virtute suscepisse cecinit fama. Ubicumque quispiam tui sanguinis princeps aderat, ibi fidem, ibi con- stantiam, magnanimitatem, benefieentiam, ibi nobilitatis lúmen adesse semper audivimus. Vultis ergo vos qui regem circumsistitis, vultis hec omnia pollui et confundi? An vos gloriam probitatis et fidei per tot vul- nera et labores, per arma ostensa in periclis, a progénie Portugalensi semper retentam eversum ibitis? Etiam vultis ut vester rex hanc sui sanguinis laudem precipuam sibimet extorqueat? Cyrsilum quemdam suadentem quod utile esset, parum honestum, Athenienses, ut Cicero autor est, lapidibus obruerunt. Augere forte regis patrimonium vultis? et três ipsius regis fratres patrueles ubique per orbem prófugos facere? Mauros deinceps immunes habebitis, consanguíneos regis extorres: quid sibi sperent reliqui príncipes regni, si avaricia iraque fuerint in hoc re- gno pietate potentiores? Pace Dei dixerim, acerbissime mortis ducis Colimbri fiat oblivio, quoad liberos capiat tandem pietas pectora nostra, nisi miserum non est iuvenes príncipes deturbari fortunis omnibus. At infortunius, miserius, quod innocentes [sunt.] Nonne acerbum est, Rex Clementissime, tuos cognatos exagitari procellis? At acerbius est a te, domino, rege, cognato. Nonne calamitosum eos omnibus bonis everti? At calamitosius, si cum dedecore. Tui sunt, o Rex, cor tuum et caro tua pro quibus preces effundimus. Tui qui rogant: namque frater patruelis tuus dominus de Charolois, soror patris tui nostra Ducissa, has tibi supplices, has pias, has primas preces effundunt, ut sepulcrum avitum patruo, patrimonium profugis, cognatis bona, honores, rem, dignitatem restituas. Adsistit et Noster Princeps, et quidem non unus e vulgo, sed qui Burgundie, Lotharingie, Frisie olim tria rlorentissima regna possidet; qui ducatuum quinque dux, viginti et unius dominiorum vel marchio vel comes, supplex effla- gitat quod debes ultro largiri. Si ergo eidem Nostro Principi, propter ipsius in te observanciam, multa; si Domino de Charolois, propter sua- vitatem sanguinis, plurima; si Deo immortali, dimittite clamanti et di- mittetur vobis, omnia debes: tu qui alioquin hostibus parceres, miseri- cordiam tuo sanguini non denegabis. Finit. [15] Ne Rex Magnanimus Portugallie atque Algarbii aut leve aut turpe ducat mutare deliberata severitatis injilios Ducis Colimbri consi- lia et ne, suis agnatis sueque familie notas adscribens, suammet laudem 434 Os filhos de D. João I offendat, Iohannis Ioffridi, decani de Vergeio, sanctissimi Domini nos- iri referendarii, secunda oracio incipit, dieta Elbore, in concilio proce- rum, XIII" die decembris M° CCCC" XLIX0. Sive ingenii nostri hec imbecillitas tulit, Inclite Princeps, sive fortuna id-egit nostra ut, per tot pericula missi non abiecti principis nomine, supplices advoluti pedibus tuis, ne unam quidem ex rebus multis factu facilibus, iustis etiam et honestis, inpetraverimus : non est tamen cur sibi quispiam congratuletur de te spem bonam nobis interclusisse. Ni- chil nempe timor ne importuni dicamur, nichil quorumdam vultus et ora, nichil repugnantium concursus et numerus nos a cepto deterrent, quia gloria virtutis eorum tu es, et in beneplácito tuo exaltabitur eo- rum nomen. Es namque cum omnibus fortune donis ornatus, tum óptimo animo, summo consilio, singulari prudência ita instruetus preditusque per na- turam, quod omnium qui te circumsistunt tu solus virtutem virtute su- peras. Quousque igitur obicere tibi glaucum ob óculos, restringere aciem animi tui, acuere iram in tuos, oppugnare decus istius regni, robur régie stirpis evellere sibi aliquis posse confidat aut gaudeat? Cur non omnes intelligunt repetere próprios queque recursus, et suo reditu gaudere sin- gula? Numquid te ferreum aut letárgico somno depressum semper fore sperandum est quum tu, quasi ex cuiusdam noctis somno sic ab omni tandem ira emergens, pulcherrimam florentissimamque progeniem re- giam e facibus tante calamitatis eripias, conserves atque restituas. Si- quidem adduci nequeo ut credam quin tandem regium pectus accipias et hec tanta furiarum verbera refutes. Contrisctam enim nunc teneri tuam benignitatem videmus, et colligatione multarum rerum sopitos ci- neres cotidie ventilari, excuti flammas, novosque ignes Tue Maiestatis exasperato animo subici. Scimus quod commota semel atque excussa mens ei diu servi affe- ctui a quo impellitur. Scimus, ut Ecclesiasticus loquitur, quod ira mise- ricordiam non habet, et impetum concitati spiritus ferre quis poterit? Scimus denique nichil invito persuaderi. Sed preter spem bonam ex te, quem metum vicit tua moléstia? Circumspicio, cum omnis provincie, regna, terre mariaque áspera aut fessa bellis sint, neque tibi, neque cui- quam regum, etsi cetera suppeditarent, aut esse aut satis amicorum un- quam fuisse; neque tibi esse consilia eius principis, qui tibi amicus plus quam tui indigus est, fastidire preces et aspernari crediderim. Quippe qui sciam te ita bonum ut, instar Medee, tuos agnatos, tuum genus spar- sum iri per orbem non tandem perferas; ita vero prudentem ut non tam amicos spernere nolis quam, dum omnia turbine iactantur et flucti- bus, allicere temptes pocius principum voluntates alienas, partas reti- nere, placare turbatas. Superbas namque te profecto aures habere ser- monibus variis iactabunt homines [16] si, cum domini servorum preces exaudiunt; si, cum importuna mulier rogans auditur, tu quod Noster Appendice 435 Princeps ex pietate caritateque sanguinis obsecrat, tandem contempse- ns. Equidem seis quibusdam esse leticie nos frustra esse cognatos; sed quomodo nudius quartus Tue Maiestatí dixi, segetes in terram misse non statim solent sui fruetus ostentare proventum; nec nostro labore súbito potuit tantus in tuo regno animorum ardor extingui. Verum te cum emollire, Rex Clementissime, et florentissime familie mala sedare temptemus, certe quod conatus noster parturit aliquando pariet. Nempe, obsecro, Assueri cor et Nabugodonosor animum súbito nonne Deus ex ira in lenitatem deflexit? Nonne cor regis in manu Dei est, et quousque voluerit inclinabit illud? At non est integrum, inquiunt; constancie columen est rex; non so- let aut debet mutare sua consilia. Litteras adversus infamem don Pe- trum scripsit, regibus misit, orbem impressit. — Hec profecto, Princeps Excelse, lépida sunt memoratu, eadem in usu atque ubi periculum fece- ris, ut Plautus loquitur, aculeata sunt. Quid enim non potest esse in- tegrum sapienti? — Non ausim dicere te errasse, Rex, quamvis cuiusvis hominis sit errare. Sed cum posteriores cogitaciones, ut Cicero asserit, sapientiores esse solent, tum, aiunt veteres, non esse turpe cum racione mutare consilium, nec levitatis discedere ab errore cognito. Atque equi- dem in hoc te gratulor presidem esse : nam quod Esiodus optimum di- xit, tam docili nature bonitate precellis, tam prestas ingenio ut per te noscer queas aliud pervicaciam esse, constantiam aliud. ília nempe fertur apud Homerum péssima ex inferni furiis, ista vir- tutum omnium culmen est. ília furorem et iram continet, ista dissolvit e evehit. ília furorem putat esse consilium, ista ubi officit ira eam ve- luti pestem refellit. ília semper idem dicere et agere vult, hec semper bonum pro fine spectat, non idem semper facit aut dicit, nec in una sentencia statuit esse manendum conversis rebus vel rebus novis alla- tis. Audi que ex Platone decerpta Marcus Tullius in epistolis familiari- bus retulit: «Nunquam, inquit, prestantibus in gubernanda republica viris laudata est perpetua in eadem sentencia permansio. Sed ut in na- vigando tempestati obsequi artis est, etiam si portum tenere non queas; cum vero id possis incitata velificatione assequi, stultum est eum cum periculo cursum tenere quem ceperis, potius quam, eo commutato, quo velis tunc pervenire; sic cum omnibus in republica administranda pro- positum esse debeat ocium cum dignitate, non idem semper spectare debemus1». Quamobrem, Princeps Virtuosissime, cum tibi nichil magis propo- situm esse debeat quam quod Aristippus exoptabat a diis, amicitias au- gere, honorem ad parentes habere, pro pátria patrare aliquod egregium facinus, non est inconstancie si notas infames quas inussisti patruo per i Cie. Ep. fam., lib. 1,9. 436 Os filhos de D. João I tempus intestini furoris abducas nunc, et in tuos agnatos referas glo- riam que veluti lux luci magne coniuncta, Tuam Maiestatem illustret. Ut enim pulchritudo stellarum in Scriptura dicitur esse gloria celi sic regnum quodlibet preclaris principibus non exhausum ire, sed auetum si tu eniteris, et eorum errata texeris, eosque tenueris et ornes, si [17] principibus tue stirpis non dedecus inferatur per te, sed dignitas salus- que pariter, tantum profecto Tue Majestati luminis affert, ut sive ad honorem, sive ad gloriam, laudis nichil sit altius. In hoc te figere óculos, o Rex, ad hoc reducere cogitatus tuos con- stância instruit. Ab hoc instituto, si tu, quamdiu exarsit impetus ire quam ex bello velut fulgur elapsum collegeras, aberraveris, coherere tempes- tati diucius et alere, corroborare illaque producere que per sediciones turbulentas deliberasti, profecto non constância docet, sed pervicacia, que nimis indigna est inseri moribus tuis, o Rex, ad omnia preclara ge- nite, quam extingui iubet Democritus ut ardentem rogum, a qua cedes, incendia, interitus regnorum aluntur, inveterascunt, corroborantur. Que ergo pertinácia, pervicaciaque est, ea tibi constância videri non debet. Quod aut Litteras scripsisti, quibus, queso, scripsisti? Nonne Prin- cipibus vários casus expertis scripsisti? Quod si ad paucos adhuc Littere delate sunt? — Delate. — Quid si perpaucis grate? — Grate. — Quid si ab amantissimis cui ne viderentur occluse sunt? Sed tamen scripsisti, Rex. Iste profecto locus videtur nobis repugnantibus magnus Achillis et clava Herculis, ego vero cassiculos aranearum quas tantopere Mi- nerva semper oderit dicere ausim. Si enim bene Pitachus, unus ex se- ptem sapientibus Grecie, dixit tocius sapiencie magisterium esse noscere tempus: quo tempore, queso, scripsisti? Nempe vel per belli procellam, vel continenter recenti adhuc vulnere belli. Siquidem bello fiagrabas, neque tibi turpe scribere fuit ; neque nunc dum omnis dissensio fracta est armis et equitate Tue Maiestatis extincta, tu, armis positis, animum retinere debes armatum, aut Litterarum prosequi cepta. Ut enim Deus tonitrua, coruscationesque in terram mittit, percutit paucos, omnes ex- terret, deinde suecedit tranquillitas plácida, horride vocês non audiun- tur: ita in bello conviciorum vocês, opprobria, insectationes verborum emitti solent et scribi. Quis vero, pacatis rebus, vel auetoritate tua com- pressis, tam inhumanus est ut obsequi Litteris datis per belli tumultum sic malit, quam reparare que defluxerunt a dignitate regni? « Non fuit, inquit Cícero pro Marco Marcello, non fuit recusandum in tanto ci- vili bello, tanto animorum ardore et armorum, quin cassata respublica, quicumque belli eventus fuisset, multa perderet ornamenta dignitatis et presidia stabilitatis sue, et multa uterque dux faceret armatus, que idem togatus fieri prohibuisset. Que quidem tibi nunc omnia belli vul- nera, César, sanando sunt, quibus, preter te, mederi nemo potest1». i Cie. pro Marcello, n. 25. Appcndicc 487 Vides ne, Rex prudentissime, et scribi multa solere tempore belli et dici posse que pax tranquillitasque succedens prosternit et confutat? Romanorum profecto etiam in urbis exórdio, dum bellum contra Sabi- nos gererent, Sabinorumque in Romanos Littere responsaque fuerunt atrocissimis referta conviciis, quos tamen federatissimos postea fuisse constat, nec decrete Littere, missaque feda responsa impedimento fuere quin resipiscerent. Atque Princeps ille discipline militaris, regum gloria, tuus avunculus, Aragonum rex per simultatem [18] cum duce Mediolani Litteras scripsit quas ego legi, et amicitia huic inde orta postmodum Litteris per eum scriptis abscessum est. Quid multa? Quin etiam sancti quos colimus, cum non de temporalium rerum domínio susceptant, sed in problematibus Scripture dissident, graviter invicem invehi solent. At, ut sunt repugnantibus asperi, ita cedentibus iidem placabiles. Verum suspicor ego statim quosdam dicturos te non in bello, sed confecto bello scripsisse. At qui negant non poterunt infidas ire quin statim scripseris post miserum illud fataleque prelium, nondum expleto calore qui arma tibi prima induerat. Ut enim ventus validus longiori motu deducitur si se adversus densissimam silvam non explicet, ita tui cordis altitudo et ira concepta restingui aut sese explere non plene po- tuit, tam paucis in pugna fusis, tam cito victis. Restabant ergo, Rex, animo tuo reliquie quedam doloris dum tu scripsisti. Necesse erat in tanta concursione perturbationis omnium rerum, in tanto animorum ardore, temporibus pocius parere quam moribus. Erant in tam nova, tam inaudita re, tam incredibili, excitandi animi hominum in tuas partes ac retinendi. Erant, quod in bello civili fieri solet, inflamandi ardentes obtrectationibus forsitan partis adverse. Cedendum ergo iracundie fuit in recenti vulnere et, nondum politis rebus, multa scribere, dicere, enun- ciare impetus ipse coegit. At, rebus compositis, o Rex, hic dies, ut Terencius loquitur, aliam vitam, alios mores expostulat. Nempe, Serenissime Princeps, ne quis error effundatur tibi sub stoice secte obtentu, quasi consilia mutari non deceat, illud equidem apud Titum Livium didici, non homines rebus, sed res hominibus prestare consilia. Propter quod Plautus versipellem inquit hominem esse oportet pectus cui satpi; utcumque res sunt, ita animum habeat. Illud nonne litteris aureis Apollinis templo fuisse in- scriptum fertur, parcere tempori. Ego certe non solum consilia solere mutari, sed leges conditas addu- cere multas potis sum temporibus mutabiles, et, ut dicam, mortales fuisse cum tempore: ut legem Oppiam quam per bellum Annibalis senatus tulit, pax sequuta sustulit; legem agrariam, quam per belli tumultum tribuni plebis rogaverunt, têmpora pacis abrogaverunt. Ita que in pace feruntur, non consilia modo, sed leges, bellum plerumque abrogat; que in bello, pax. Numquid igitur, ut Ciceronis verba assumam, instar impe- riti mediei uno collirio omnibus morbis medendum et omni tempore utendum erit? Quasi vero consilia, in quibus sepe maior pars meliorem 438 Os filhos de D. João I vincit, si ratio inducit, honor impellit, tempus efflagitat, mutari non soleant? Quandoquidem leges, que sine amore, cupiditate odioque con- duntur deliberacius instituuntur, pro pluribus promulgantur quam scri- buntur Littere, late tamen per bellurn, ad pacis têmpora se non exten- dunt. Prospice ergo, Rex, eam scripturam, penarumque severitatem quam in patruum tuum dictasti, nunc tolli posse ut observância Principis Nos- tri in te expectat. Nam si verba Dei monitusque sacros dignaris, flexum te mitemque fore amite precibus, quippe qui scias David regem sanctis- simum precibus Abighail mulieris abstinuisse ab eo quod adversum Na- bal contendebat et nitebatur, quanquam non deliberaverat [19] solum, sed iuraverat se non relicturum quicquam ex omnibus que pertinebant ad Nabal ipsum. Opere precium ergo erit responsum iri schedule quam nunc acce- pimus consignande, ut iubes, Principi Nostro. Nempe illiam legimus, tuasque Litteras vidimus contumeliosas, tuo primo responso deterio- res, nobis indignas. Quamvis namque eleganter secretarius ingeniose- que illas vario et locupleti eloquencie flore vestivit, tamen quasi non ius, sed iniuriam deprecantes, nos tue Littere refellunt, cum tamen Noster Princeps nichil postulandum putaverit quod equum esse non statuant omnes prudentes et ad speciem iuris pietas vel sola traducat. In quo pretereo credenciam dari nobis simul et adimi, cum omnia te scribere Littere sonent, et nugatorium nobis sit arripere illam creden- ciam ubi, preter scriptum, superest nichil. Tuum autem patruum non minus gravia commisisse insimulas quam eos qui statum civitatis con- vellere sunt conati. Quas tibi labes affers, Rex Boné, que vulnera ! Non cernis tue domestice glorie maculam, et cum familiaris integritatis in- teritum, tum oppressionem decoris generis tui totam et abhominabilem ! Qui fedissimum et teterrimum parricidium patrie cogitaverunt, his tu patris tui fratrem germanum similem fácies! Obiecisti nobis Africani nepotes, et quo Tua Maiestas rem exemplo graviori fulciret, Spurius Cassius adductus est, in hisque flagitiosis, fe- dis, turpibus, floret stilus quidem dicentis magno lepore conditus. At equidem miror, quando proditorum chorus ceptus est obici, quid est cur Graccos quorum insepultam sepulturam Cicero dicit, Aalam, Me- lium, et forte Cathilinam non aggregavit. Sed intelligenter factum exis- timo ne, quemadmodum recondite res intra muros, si vehementius pre- truduntur, exiliunt, ita integritas prestantissimi principis, si tantopere urgeretur, emergeret, quasi violenter excussa, atque prodiret illustrior. Hodiernus profecto dies beatissimi martiris Thome opportunus oc- currit, cui sectores sui predicationis etiam crimen calumniose obiicie- bant; quem dignum esse qui patibulo suflfigeretur, non qui iuxta pon- tífices atque inter eos sepeliretur, atociter et crudelissime dicebant. Sic namque inuri patruo tuo notas turpitudinis et infamie sepulcri non sine rubore quodam audire possum, et peior ipsa res sit an peiore agatur Appendice 43g exemplo incertus sum. Sed, queso, Rex, hoccine Nostri Principis ad tuam progeniem atíinitas contracte promeruit? Hoccine ipsius in te ob- servância debuit expectare, ut non modo nichil pro co (acere velis, sed pro precibus acerbitatem, pro labore dedecus solum feramus, cum accr- bius multoque durius et ignominiosius quam antea feceras, responsum prebes? Errorem in tuo patruo, Principisse Nostre germano, severita- tem, si durius loqui velles, cupiditatem, pertinaciam opinionis vel te- meritatem fortasse si diceres, nos taceremus. Scelerís vero, prodicionis, parricidii dum exemplum prebes, et ad tuum dedecus veluti facem ac- cendis, quo pacto apud te dedecus nostrum dissimulare possemus? Num- quid, quod Pitágoras prohibet, debemus óleo spargere sedem? Aut dum edificas parietem illum, linirc, vel apponere cervical sub tuo cubitu, quod sacra lex prohibet.'' Hec labes non sistit in tuo patruo; ipsa lacius ser- pit et manat, ad totamque cognacionem [20] se iniusta porrigit sicut iniuria quod uni de cognacione fit, toti fieri videtur. Spectat ad nos- tram existimacionem et pudorem nostrum attingit, si notam suscepe- rint ii quos habemus affectu. Cogita ergo, Benignissime Princeps, quanto dolore affecerimus iu- niorem Principem Nostrum referentes responsum istud per quod sue matris germano totius dignitatis splendor deletus est! Solent siquidem reges ducesque superillustres atque illustres dici, quia tum in se, tum suo sanguine omnia clara sunt, honesta, splendida. Nichil obscurum; sordidum nichil, nichil abiectum hec principum insígnia sunt; iis gau- dent et gloriantur, hunc integritatis et glorie titulum feciales et heraldi scrutantur, per hunc, non per divitias, nitere príncipes et excellere vo- lunt. Atqui Noster iunior Princeps alioquin undique clarus, abavo Fran- corum rege, atavo Romanorum imperatore prognatus, ut sibi honorem sanguinis illibatum conserves efflagitat: nec id iniuria. Si enim propter notam unam Manlio adscriptam in Philippicis Cicero ait dedecus ad suam cognacionem deflexum; ymo vero, si non propter ignominiam, sed quia gloria minuebatur uni ex sua família Scipio, ut idem Cicero ait, surrexit, obstitit senatui et deprecatus retinuit sui generis decus et lúmen, Nos, justo dolore petimus vel refringi responsum vel mitigari quod nobis pudorem solum inculcat. Quid enim intencius propheta de- precatur a Deo quam illud : Aufer a me opprobrium et contemptum. Aut quid ille felicissimus Marius gloriabatur aliud quam, quod a patre acceperat nichil metuere preter turpem famam? Que certe ob paren- tum dedecus quam cito nascitur! Vix enim apud animum meum sta- tuere possum quo pacto tute id sustines, et, quomodo Amphiaraus in fabulis ad pestem, sic tu sciens et prudens ad ignominiam ante óculos positam in hoc tuo responso vadis. Scisne divinitus esse prescriptum: Ne glorierisin ignominia patristui: non enim tibi est gloria sed confusio'. i Eccles, cap. 111, v. 12. 44o Os filhos de D. João I Gloria namque hominis ex honore patris sui; et dedecus filii, inquit Sa- lomon, est pater sine honore. Scisne in lege veteri patris appellacione, quod Hieronimus etiam firmat, teneri patruum ? Scisne tu filium Noe, Cham, ideo maledictum in lege, quoniam patris verenda detexit? Cete- rum, lege civili, nonne socer etiam intelligitur nomine patris? Quis ho- norificabit exhonorantem animam suam inquit Scriptura? Profecto, si Grecorum scrutari commenta libet, Tersichorum quemdam, cuius Hiero- nimus meminit, ferunt quia grecus Helenam grecam vituperabat, a diis privatum esse visu. At, postquam palinodiam laudesque Helene cecinit, oculorum lúmen dicitur recuperasse. Ita, Serenissime Princeps, dum tu, non solum portugalensis vir, sed Portugalliam totam dignitate complexus, cudis in tui regni principem fedissimum facinus, et non solum tui regni, sed tui generis, ac non modo tui generis principem, sed fratrem patris tui, dum tu fedissimum facinus insculpi pateris tue familie, ego te parum cernere, in hoc quoque quasi orbatum oculis esse dicere ausim. Palynodiam igitur cantes, Rex Pru- dentissime, et tetra monimenta sceleris, indicia ignominie tetra, vestigia dedecoris a tuo regno, a tuo sanguine, a te ipso depellas, vel acerrimum scriptum tui responsi mitiges ac lenias. Meministine, obsecro, quod scribit Séneca, quomodo divus Augus- tus, parum potens ire, filiam impudicam publicavit. cuius rei, cum se ipsum sedasset, tantam penitudinem egit [21] ut fere sibi ipsi ferrum afferre volens gemebundus exclamet: O si Mecenas vel aliquis adfuis- set michi verus amicus, neque illud dissimulasset, neque ego peccassem! Ergo, dum tuo responso patruum eumdemque socerum tuum insimulas non solum criminis turpissimi; quum ipsum non minora egisse tuis scri- ptis affirmas quam omnium scelestissimorum parricidarum princeps aut proditorum Sp. Cassius Rome admisit : qua te obiurgatione, Optime Princeps, aut quo pocius convido quisque tuus amicus a tanto errore non temptet evellere ? Siquidem Mauria áurea et margaritis fulgens, in- quit Ecclesiasticus, est qui arguit sapientem. Si nulla verba dura videri debent cum eorum auctor salvator effectus est, prospicio nunc offen- sam prudencie tue caliginem quamdam erroris. Nam licet ultra vires etatis et admirer et laudem in te omnia preclara, ingenium tuum ver- satile, gravitatis cum humanitate difncillimam societatem, summam pru- denciam : quisquis tamen es, nec Salomone prudencior, nec ipso cautior, nec ipso astucior es iudicandus. Quem tamen si mulieris suasiones coe- gerunt errare, quid mirum si homines, ut in Politicis Aristóteles loqui- tur, sevissima habentes arma racionem atque prudenciam, quibus ad contraria uti apti sunt, te ad hunc errorem impellunt ut honestatem generis tui, tantis laboribus partam, per orbem agnitam, splendore di- latatam, sponte confundas atque proteras? Ut malivolentia, inimicitie livor et forte quorumdam cupiditas tui nominis obtentu exerceantur, tu sponte tuos ac te ipsum vulneras. Sed sane, cum homo sis, te qui Tuam Maiestatem circumsistunt audire necesse est. Cum vero sis opti- Appcndicc 44 1 mus, crudelitas in optimi cuiusque mentem íucillime irrepit: et cum, ut ait Cicero, sis rex, multi iniqui atque insidiis consutisque dolis semper regibus adsunt, ut Plautus auetor est. Quo lit, si multus cum telo maiicie contingit adesse regibus, reges autem muitos audire necesse sit; et quo meliores sunt reges, eo facilius credant: te regem magnum, multis te confessum natura optimum, errare, falli, dceipi plerumque necesse sit. Dicerem, quod olim omnibus opulentis regibus ac populis Apollo Pi- thius, ut in Ojficiis Cicero scripsit, per oraculum edidit : Spartam nulla alia re nisi avaricia perituram. Sed, ut Plautus admonet, vomicam pres- sare cesso. Quanquam enim sunt nulla remedia, tamen solent afferre do- lorem morbis queque sunt salutaria; quanquam etiam Zerses Demarato, quem invisum habebat, gratias egit, eique permisit quidquid petere vel- let, quia sibi solus vera dixisset: vereor tamen ne exulcerato adhuc Tue Maiestatis animo veritas odium pariat et tibi sermo noster molestus sit. Quippe qui nunc prevideam non tibi superesse magnas ire relíquias, et te in illud adductum esse discrimen ut vel existimes necessarium esse tuo patruo notas inferri turpitudinis horribilis atque nefarie, vel tibi credas subeundum dedecus parricidii atque infamiam. Quod profecto minime necesse est: si enim nos audire, ut postulabamus, tu voluisses, ostendissemus profecto in Infante Petro aliquid fortasse erroris, sed nichil sceleris; in te vero multum prudencie, sed forsan nimium suspi- cionis fuisse. In eventu vero fortune liebilis ostendissemus insuper, os- tendemusque, si tu iubebis, confiscationum severitatem et cum negati sepulcri penas, cum acrimoniam tui responsi, transcendere leges pieta- tis, clemencie, moris principum, iuris gentium. [22] In quo tamen tuam, Rex Serenissime, et Infantis causam non nobis equare propositum est; perduellionis turpitudinem et indignita- tem penarum purgare satis est. Noli, obsecro, Rex, tua consilia volun- tate metiri. Etenim, ut Plautus auetor est, insanabilis in Republica pes- tis est voluntas in príncipe. Noli putare pertinaciam esse constanciam, crudelitatem iustiiciam, tuorum dedecus gloriam tuam. Conviciis mor- tuum oneras: atqui unus ex septem Sapientibus, Pittacus, amico, inquit, non maledixeris, ne inimico quidem. Multis te pepercisse dicis et scribis; at tu eos proditores appellas, ut ille fuerit longe felicior qui acie cecidit, qui in causa animam profudit, quam ii quibus dicis per misericordiam pepercisse. Tuos cognatos versos omnibus rebus et undique aíílictos adhuc opprobriis afiiigis. Contra folium quod vento rapitur ostendis potentiam tuam et stipulam siccam persequeris. Numquid tibi bonum videtur si calumpnieris et opprimas opus manuum tuarum, et quasi leo domésticos tuos evertas? Non debet profecto fortuna inrlammare odium, sed bonitas tua lenire. Non debes ultra mortem Infantis progredi pro- bris, ne penis in filios, ne superbe in victos, ne turpiter in necessários, crudeliter in innocentes, ne avarc in prorsus inopes desevisse dicaris. Fac igitur, Rex, si qui humanitatem suam abiiciunt, ut tuam, que summa est, extorsisse non videantur. Abige terterrimum responsum il- 442 Os filhos de D. João I lud quo tuos vulneras, tibi non prodes. Licet namque solent egrotan- tes conformes morbis cibos, prima quidem specie letos tractu, noxios eventu, tristes optare, non tamen qui tibi suavia, sed que utilia, decora honestaque sint spectare debes. Quamobrem meliora scias amicorum vulnera quam fraudulenta oscula inimicorum, atque que dicturi sumus, si per te licet, quanquam áspera, salutaria crede, tibique animum indu- cas, si opinionem in rebus istis cepisti, si eam ratio vincet, si veritas labefactabit, si nature ius extorquebit, ne Maiestas Tua repugnet; que- que sacra lex iubet, verbo veritatis non contradicas. [23] Ut dignitatis et equitatis ac clementie sue Illustrissimus Por- tugallie Rex rationem habeat, et pius calumniarum extinctor, bono co- gnationis sue mottim se gaudeat, Oratio confutans obiecta crimina in ducem Colimbri incipit, — in qua refellitur amaritudo penarum quas in suos patrueles et viros óptimos, nobiles honestíssimos, Rex ipse, natura mitis, obtentu iusticie, perperam instigatus inflixit; dieta per me Iohan- nem Ioffridi, decanum de Vergeio, sancti Domini nostri Pape refe- rendarium, oratoremque Domini Ducis Burgundie, XIIa ianuarii, M° CCCC" L°, in amplíssimo populi nobilitatisque conventu. Tandemne vincet in te, Suavissime Princeps, voluntatem ratio, iram natura, odium in tuos conflatUm tua benignitas."1 Tandemne regibus omnibus fortior veritas, ut Esdras loquitur, immigrabit animum tuum, ut lumine celesti profusus rerum humanarum memor sis, modereris tue fortune et cognationis famam non urgeas? Adamantinus lápis frangitur, imbutus hirci vel humili sanguine. Quousque igitur tuum suave cor et illum qui vultu ipso tam clemens et mitis elucet animum, tuus sanguis et caro tua non frangitur? Soror patris, Rex, te precatur; sola fides in te pietasque sanguinis illam quod te supplex roget, impellunt. Subit nempe animum suum spes deflagrare iram tuam, purgari suspiciones posse cum, armis posi- tis, etiam hostes exteros sciat fecisse fedus, multorumque principum viderit simultates finitas; subituram etiam animum tuum confidit me- moriam illius quondam simplicitatis et educationes puerilis inter te co- gnatosque tuos. Quid cognatos dico! Ymo fratres patrueles, unam domo tecum nutritos, disciplinis litterarum contubernales, affinitate fratres, in omni genere vite familiares. Eritne ergo tibi, Rex Serenissime, eritne gemendi mensura, eum, ubi tristes iras mors obruisse deberet, tu tamen socerum quem debes laudare ledis:1 Tu eum principem, cuius cruor profusus hostium ânimos placare posset, insectaris mortuum: ita ut non tam honestis titulis tuus patruus, regis filius, dignus esse videatur, quam in turpes iure coniectus. Appendice 443 Tu nostris partíbus responsum prebes quod aiuniore Príncipe Nostro non legi potcrit sino lacrimis. Quare, obsecro, Princeps Ezcelse, indigna te nobisquc et dignitate regia dicisPTu mansuetus, hec res immanis; sidereus tibi vultus est : cur te oblectat ista severitas! An tui patrui eiusdemque soceri peccata virtutcs tue sunt:' Si radicem eorum quos, auspice Deo, habiturus es riliorum infamas, quomodo fruges illustres erunt? Equidem video quam conversa in tuo regno rerum natura sit. Antea namque tui generis damnum occulte, gloria palam instrucbatur; nunc laus et concórdia tui generis disturbantur palam, dcfcnduntur occulte. Regis Iohannis, cuius virtute hoc regnum stetit, nepotibus ini- mici sunt multi, adiutur nemo. Etiam dolentes ob periculum tibi sublan- diuntur; etiam aures tuas assentatio mendax sepe titillat, et sepe sopi- tas in tuam cognationem odiorum rlammas animo tuo multi refundunt. Sed, si tue glorie prospicis, intra tue patrie víscera, intra tuas venas, intra tuam familiam que laudatis semper et fortissimis [24] principibus floruit, tu primus notas horribiles illaqueare non attentabis. Si divine legis auctoritas a te spectatur, in Levitico Dominus ait: turpitudinem fratris patrisque tui non revelabis. Si te numerus et multi- tudo dicentium aliter intorquet ad aliud, non sequeris turbam, inquit in Deuteronomio Dominus, nec in iudicio plurimorum acquiesces ut a vero devies. At quod bellum a patruo tuo susceptum purgari convenit, obiicitur nempe per tuos simulata quedam iustitia, ob quam fúrias inique virtu- tis expirant, ob quam qui te cireumstant tui fulminis iras exercent, ob quam iuris obtentu in tuam carnem exstruis iniuriam et te rebus im- plicas iniquitatis. Ast ego presidio equitatis septus et iuris, nunc obsis- tero petitioni vestre iusticiam dicere audeo propter quatuor máximas causas, una propter belli a tuo patruo suscepti necessariam causam ; altera propter presumptionem violentam sue integritatis; tertia pro- pter omnem formam processus a te preteritam; quarta propter perso- narum de quibus agitur feudique conditionem. Quod quidem liberius nobis dicere licet, quia tu, moderatissimi atque humanissimi scnsus Princeps, hoc concessisti; vel quod ex tam insigni amicitia tua Nostri Principis hanc libertatem dicendi non alienam esse existimavimus; vel quod si asperius quidpiam dicendo rluxerit, illud dictum putabis magis dolenter quam inimice. Quando igitur leges in lese maiestatis crimine descripte nunc allegantur, prospice queso, Princeps Excelsissime, heccine vincla sint quibus MaiestasTua detine- tur ne parcat r Suntne hi compedes tue clementie? Age nunc, Serenis- sime Princeps, dissipa gentes que bella volunt, dispumpe vincula eorum, proiicias a te iugum ipsorum. Ordior primo belli necessário suscepti causam. Non quidem, ut iure tecum certemus, sed ut iuris specie fretus ad misericordiam sis tandem propensior. Omitto ergo quod ut tibi tenebatur tanquam vassallus, te /j 1 1 Os filhos de D. João I non offendere, sed te defendere (1. omne delictum % de remilitariff.ji, tenebaris ei similiter tanquam vassallo (XXII, q. v, deforma.)"*. Prete- reo quod te non debebat habere ut regem, si tu eum non habebas ut ducem (c. esto subiectus, XlVft. Sileo quod ei si ante bellum fidem vassallo debitam non observabas, nec ipse tibi tenebatur servare (C. pervenit, de iure iurando.) 4. Que pestis est que homini, per hominum factionem, non ingeratur tibi credere, tot loquentibus necesse fuit. Nempe muitos hostes indefessa virtutis comes invidia patruo tuo et obtrectatores effecit. Certa namque invidia est óculo dextero, que nunquam intueri didicit bona, nec quicquam aliud scit quam detrectare virtutes, corrumpere honores et premia eorum. Certare quidem, Rex, pro certamine honoris apud te studebat Infans, qui studio benevolentie erga te minime equo animo debebat vinci. Quo magis velo, ut aiunt, remoque contendebat, eo magis estus crescebat invidie, et cum audacius hoc arriperet ageretque liberius, suspiciones adaugebantur, advolabantque in pectus tuum. Itaque tu sibi ne domi- nium Cohmbri egrederetur mandasti. Vide, Rex, obsecro, quid egeris. Exilium triplex est, ut ait iurisconsultus, locorum certorum interdictio, ad certum locum cogi morari, insule vinculum (l. exilium de inter, et releg.)^; itaque in hoc exilium patruus incutiebatur per factiones. Cla- rissimis a iure privilegium suppetit ut ubi volunt habitent, proficiscan- tur per regnum qua volunt, idque sine principis ulla sententia (l. claris- sitnis. c, de digni. l.° XI1°)6. Istud patruo tuo auferebatur. At gravius est spoliari quam non augeri dignitate, Species servitutis est cogi morari per certa loca (/. Titio centum, § Titio, ff. do. condi, et demonstr.)!. Frangebatur ergo patruo tuo libertas et servitus infere- batur. [25] Atqui servitutem morti equiparamus, inquit regula iuris ci- vilis, semperque virtus propulsat servitutem : virtus autem própria erat tui generis et tui sanguinis. Igitur, si tu rex supremus superiorem non habes, naturaque non mutabilibus fertur causis, tuo patruo defensionis facultatem contra te indulsit, ius etiam scriptum admisit. Ita enim Ioan% in § signijicavit de peni. decidit, et Hug.9 i. di. C. ius gentium sequi- tur, et Bartho. (in consilio suo liiii0 ad quod not. XXIII. q. n. Dom. r. i ff, lib. xlix, tit. xvi, 1. 6. 2 Oberti de Orto, de Feudis, lib. n, tit. vi, de forma fidelitatis;— idem, tit. xxn. — De- creti secunda pars, C. xxn.quaest, 5, cap. 18. 3 Ver também : Decreti prima pars, d. g5, c. 7. 4 Decretales D. Gregorii papae IX. lib. 11, tit. xxiv, cap. 3. 5 ff, lib. xlviii, tit. xxn, 1. 5. 6 Cod., lib. xii, t. 1, 1. i5. 7 ff, lib xxxv. tit. 1, 1. 71. 8 J0Á0 de Cremona, um dos mais hábeis legistas do seu tempo, fallecido em Bolonha em 1 197. Escreveu uma Somma sobre as Pandectas e uma Lição sobre o Código. 9 hugolino, antigo glossador, que professava em Bolonha no tempo de Frederico II. Quiz accrescentar o direito com as Constituições de Conrado III e de Frederico n. Morreu em 1168. Appendice 445 /. ait pretor, % Si debitorem,ff. • de his que in frau. cred.J Verum enim non si, quod Diógenes fecisse fertur, obiiciam fortune conscientiam, perturbatione rationem, legibus regni tui naturam, nullius sibi culpe conscius Infans se purgare cupiebat, postulabat audiri.Tua Maiestas, cum ad te venire non sivit, ius gentium sustulit. Ipse leges communes, iudicium liberum, dignitatem ab invictissimo patre acceptam illibatam sibi esse petebat. Contra, qui rerum suarum predam spcrabant, qui, bello confecto, illas a te postularunt, occasionem belli moliebantur. Pugnabant itaque ut leges, iura, dignitatem Infanti auferrent, turbarent, everterent. Quid multa? Vultu ipso sepe, ut Cicero auctor est, offenditur pietas et dignitas. Non salutatus quisque Clarissimus videtur preteriri per con- temptum et contumeliam (C. de questore, l. 1. /" XIIji. Príncipes fore adorari debere lex imperialis admonuit (l. sancimus, de cônsul. 1° XII°J^> ; osculum, reverentiam, salutationem deberi Spectabilibus, ipsisque nec posse negari ad principem ingressum imperator Antonius edixit (l. in sacris., C, de proxi. sacro. scri. Io XIIo) a. Debebatur ergo Duci clarís- simo, regis filio reverentia quedam insignis ; debebatur tanquam virtu- tis premium virtuoso pnncipi honor cotidie singularis et novus : at usi- tatus a tuis et pervulgatus subtrahebatur. Ymo vero ília quies et ocium cum dignitate, quam sibi tuus patruus deinceps. potius quam laborem cum dignitate petebat, nulla erat; hac tempestate moriendum sibi aut resistendum. Habendus ei semper metus erat aut repellendus. Nam illud, obsecro, Clementissime Princeps, quid ultra in cum affectari po- terat.í> Aut que divina humanave non sibi ablata erant? Ipse paulo ante moderator ípsius regni, exutus gloria, iure agitandi, nequidem comparere coram te poterat. Qui sibi fideles amici esse asse- cle fuerant, despecti, indigni honoribus,habiti loco prede existimaban- tur. Hos nemo recipere tecto, nemo audire, nemo alloqui, respicere nemo audebat. Amicorum et clientele magna vis administrationibus et honore, pro multis et egregiis factis dato, contra sententiam prohibe- bantur. Nobilitatis innoxie quam patruus educaverat tuus pátrios lares irrumpebant pauci satellites inimicorum Infantis, mercedem a se ficto- rum criminum. Virorum certe quorumlibet ânimos hec singula vulne- rare possent : quid in magnânimo príncipe et regis bellicosissimi filio coacervata censebis ? Apes ipse, que mella conficiunt, multum irritate, tandem extendunt aculeos. Atqui hec omnia tuus patruus pertulit. De- nique necis et verberum libidinem in quosdam ex suis, et primogenitum a regno pelli, beneficio excludi, delectus adversus filium haberi, arces extortas, presidia dedueta sibi, imposita hostibus leges alias super alias 1 ff, lib. XLII, tit. VIII, I. IO. 2 Cod., lib. xii, tit. vi, lei única. 3 Cod., lib. xii, tit. ii, I. |. 4 Cod., lib. xii, tit. xix, I. 2. 446 Os filhos de D. João I impositas, per voluntatem etiam passus est. Rursum arcem Colimbri, quam a patre, fratre, teque, Rex, hereditatem acceperat, extorqueri tentatam, emptionem annone vetitam arma adempta priusquam relu- ctaretur etiam passus est. Insuper, exercitum per te, Rex, contra se instructum, publicatas [26] in regno Litteras, ut in suam destructionem omnes exurgerent, vidit; scivit obsidionem decretam, intentam mortem vel carcerem, famam detractam. Eratne, obsecro, reliqui aliud quam solvere iniuriam vel mori per virtutem? Quandoquidem vel ferro septos servos etiam, vel bruta item sese tueri natura instruit; nec quisquam extremam necessitatem nichil ausus, nisi ingenio muliebri, expectat. At, inquiunt, qui consilium tuum participant, cur intra Colimbrum se non continuit? Cur Regis vassallos cepit stratos coram se occidi iussit? Cur exercitu Regis viso non fugit? Cur contra Regem vexilla extulit? Cur in Regis aciem tormenta cepit. Ulixisbonam, arcem et ca- put regni occupare temptavit? Cur tutelam Regis per Eduardi testa- mentum mandatam regine subripuit? Cur post annum quartum de- cimum tutelam Regis finitam non expletam esse contendit? Minatus, inquiunt, Regi fuit, et nos ex personis dieta pensamus. Cur pacem cum Duce Bragantie initam federaque perfregit? Hec sunt que tibi, Rex, figuram iustidie afferunt. Sed eos, qui ista tibi inculcam, quod in Officiis Cicero ait meminisse optarem, quod iuris natura fons sit, nec ulla pernicies vite maior inveniri potest quam in malícia simulatio intelligentie. Flecte, queso, te, Rex, et ne fabula lupi querentis agnum ex intimo íiumine sibi turbasse aquas cudatur, pros- pice ; tantam sollicitudinem honestatis, tantum reprehensionis iuste ti- morem quantam semper tuus patruus tenuit, in quo meministi? Certe in nullo. — Fuitne, obsecro, ad famam prestancius, cum insilires in eum, vel ad te, si secure posset, proricisci, vel sub divo et ceio libero se na- ture Deoque dedere, quam potuisse iactari per populos pretextu areis inexpugnabilis et civitatis sue Colimbri eum fuisse tibi rebellem? Ho- nestam equidem profectionem hanc arbitror, quamvis, pressus inópia, etiam alioquin exire Colimbrum necesse habuit. Quid enim extra Co- limbrum expectavisset, prohibito iam commeatu, re frumentaria sibi sublata, território Colimbri per armatos Infantis hostes circumvallato? Quod autem quidam ex tuis ipsius Infantis iussu trucidati fuerunt, attende, queso, vim iusti doloris que satis excusat (ff. de edi. edic. I. bovem, % mortis* : ff. ad Sille, si quis in gravi, % hi quoque.J2. At isti quidem adequitabant, invadebant, insectabantur Infantem, propterea proditorem fallacie in suis oculis appellabant; despectionibus, ignomi- niis lacerabant. Resistens et lacessitus Infans eos fregit et cepit. Captis, obsecro, impigre lingue, animi ignavi hominibus quos muitos pauci, vulnere non accepto, ceperant quis pepercisset aut parcere debuisset? i ff. lib. xxi, tit. i, 1. 43. 2 ff, lib. xxix, tit. v, 1. 23. Appendice 447 Sileo quod partim ad Infamem provecti convicium inferebant nimis mendaciter: cuius dolor et Virgilius Accursiusque (in l. cum uxor.,ff. de adul.) ' asserunt non solos urit Atrídes, et modestissimi cuiusque pa- tientiam vincit. Siquidem provocanti est imputandum quod sequitur (ff. si quadru. pau. fe. dica. I. 1, % Cum aríetes2; et l. si c.Ji.p; si etiam recte inquit iurisconsultus ignoscendum est illi qui, provocatus, voluit se ulcisci (ff. de bo. lib., cum maior, § si libertas)*; si bene Só- crates, in eo libro qui dicitur Gorgias, iniurias inquit fácere virorum non est, neque conviria pati; denique si recte David sanctus rex Se- mei qui maledixerat propter convicium internei, in extremo vitas posi- tus, iussit; si Heliseus propheta, quia ipsum puerit subsannabant et cal- vieium sibi improperabant, ignem de ceio mitti postulavit a Deo : quid est mirum Principem altissimi animi, distinctum summo discrimine, ab ingratis hominibus vexatum conviciis efferbuisse per iracundiam? Quid iniuste sese mutavisse dicatur moderatissimus Princeps ab insolentia que non lacessitos duces etiam movere solet? Preclarum profecto prefectus Darii facinus fecisse fertur qui, cum deprehendisset in suo exercitu militem detrahentem Alexandro Macedoni, Ego, inquit, te ut pugnes alo, non ut maledicas, — atque ipsum [27] venabulo transver- beravit. ltaque, si tuus patruus ab illis invasus, tot probris lacessitus, addi- xit morti eosdem procaces homines, hostes imbelles, non est patrui tui culpa, neque tui regni iactura. Verum quod fugere non tenebatur, Se- renissime Princeps, preter id, ut Cicero in Philippicis ait, quod fuga ex prélio omni est morte peior: vita et mors, ut Cotta dicebat, iura nature sunt, ut non sine dedecore integer agas id fama datur atque ac- cipitur. Propter quod Bartolus, aquila doctorum iuris civilis, non teneri eum qui se defendit fugere, si hominum similium status ex ob fugam notari solet (in l. ut vim ff. de iusti. et iure)5 determinavit. In pátria sua patruo tuo, Rex, aut vivendum erat aut pereundum. Ad Colimbrum reíugere sine periculo vite, circumvallatus prope et undique circumses- sus, nequibat. Etiam Naboth pro vinea quam non eripere rex, sed ab invito emere nitebatur, regi restitisse ad mortem usque sciebat. Numquid igitur cum paucis inermis, per infensas sibi acies fugere debuit, et perterritos metu suos auxiliares ob fugam animo frangere fractos, turbare turbatos? Quid autem vexilla explicare, quale sit, non interpretantur qui arguunt? Si quidem patruus tuus bellum necessitate constrictus, voluntate subditus tibi contra voluntatem armatus subiit. At signa proferre, sive vexilla, nunciatio quoque belli iuris cum milita- 1 II. lib. XLVIll, tit. V, 1. 13. 2 ff, lib. ix, tit. 1, 1. 1. 3 Cod., lib. 111, tit. xxxix, I. 4. 4 ff", lib. xxxviii, tit. 11, lex 14. 5 ff, lib. 1, tit. 1, 1. 3. 448 Os Ji lhos de D. João I ris, tum iuris gentium sunt (in d. C. Ius gentium) K Igitur cum ius belli, se per nccessitatem defendens, patruus tuus haberet, exercitus ordi- nem, et ordinis sigum vexilla, hancque iuris gentium solemnitatem re- gis presencia auferre non debuit. Verum quia te, Serenissime Princeps, conterebat illud quod Infans Petrus, nondum cepto prélio, in tuos sagittas tormentaque mittere ce- pit, obsecro, nonne et salutem suam servari, et adversus armatos ar- mari, et sine telis, sine tormentis insilientes in eum discutere exterrere- que tuo patruo licuit? Cuius nempe animum unquam torpedo tanta oppressit ut, exercitu prope admoto, sustineret quoadusque ferro con- foderetur i Decursionibus per equites quos muitos habebas, tu irrum- pebas in ea loca in que invaserat, levibus preliis ipsum a processu arcebas, refrenabas a fuga; innumerabili hominum multitudine eum cingebas. Numquid instar peditis retia in suum caput quietus expectare debuit, cum gladium non fluxisset, cum armatos contra se cerneret? Cur tormentis non terruisset eos a quibus circumsederi se tum videbat? Si ius militare spectas, docuit César contra Pompeium, ut Plutar- cus asserit, ante legitimum pugne certamen excitandum calorem mili- tum, qui robur animis addiicit, et dolorem vulnerum tollit. Si ius civile recipis, terror armorum vel iactatio percussionis ad istud sufficit, dicit Accursius (in l. 1, c. unde in.; et ad l. Aquil. Sed et si quemcumque)^. Qui si vim nature attendis, etiam est innativa brutis, adversantia ani- malia indicai, et vel ad congressum pugnamque ipsa adducit. Quare, Rex Serenissime, non erat Infanti expectandum ut accederes propius et non occurreret tormenta mittendo atque confligeret. Nisi forte in tanto tumultu concordiam expectare debuit quam tot litteris nuntiisque totiens frustra petierat. Audi Ciceronem pro Q. Ligurio : erat, inquit, stultum, cum aciem videres, cogitare de pace. Audi Sallustium in his- toriis: paratis hostibus, inquit, quo avidius pacem petieris eo bellum acrius erit. Age nunc ad id quod Ulixisbonam intercipere voluisse quidam con- fessi sunt complices sceleris, ut nunc [28J obiicitur, littere insuper ad Infantem prescripte probant. Ego, Serenissime Princeps, quid illa per- turbado temporis efficere potuit, quod fictum crimen testibus falsis op- pressi superati sint, tormentis qui ob hanc causam mortem obierunt dicere possum; quod hec confessio adversus Infantem concludit, nichil probare potis sum. Infantem ciam intercipere Ulixisbonam voluisse non arbitror, vix credo. Sed in eo, etiamsi accidisset, Infantis nullam ob id culpam fuisse in alia huius orationis parte defendam. Quod vero tibi, Princeps Excelse, comminatus fuisse dicitur, confu- tabo facile. Nunc autem quod magni faciunt videamus, tutelam tue ma- tri mandatam, quam surripuisse culpatur patruus tuus. Et primum, Se- 1 Decreti prima pars, dist. i.a, cap. 9 et 10. 2 ff, lib. ix, tit. 11, 1. 5. Appcndicc 449 renissime Princcps, omitto omnes iuris regulas que fcminas ab officiis publicis extrudunt et prohibent (ff. de reg. iur., I. femine) t; illas etiam que a tutelis feminas arcent (L/e., de tute.ff.)*: quia, licet matris con- silio tutelam geri testator mandai e possit (l. ita aut.ff. de administ.p, licet In prívatis personis etiam mater tutrix possit existere (c. qu. muli. tu te. o/fi./un. poss.4, et in c. matris et avie$, et c. de Tertull., l. omnem matr.)G\ si iure ff. Tutela liberorum testamento patris nutri /rustra mandatar, nee illam leges admittuni (l. iure nostro, ff. de testa. tute.)i\ si hoc ius in provinciis multis retinetur, in regum certe tutela hoc ob- servari necesse est. Nempe, ut Gregorius in Moralibus ait, usus vite veteris intulit quod regnorum regimen femine non sortirentur, quia re- gnorum moderatio, fortibus indigens, infirma contcmpnit, parata eli- gens fluxa refellit. Neque enim lex hanc sententiam frangir, quod in regnis quibusdam suecedunt femine, illaque tuentur et dirigunt, tum quia id rarum est, et ex his que aliquo casu accidere possunt iura non constituuntur (l. ex his, ff. de legi.)%; tum quia fortius est ius femine suecedentis in regno quam femine gerentis nomen tutorium, magisque potest ius quod quis ex se obtinet quam quod habet ex alio (l. si fidei § erit Rubriano,ff. de fidei. commis. liber.)9. Pretereo etiam ius singu- lare legemque specialem regnorum; quamvis enim iure communi qui- libet extraneum heredem etiam filio exheredato instituat, relicta le- gitima (l. et si pepercit, % filius^ et l. Gallus, § etiam, ff. de libe. et posthu.J"; cum similiter etiam fratres privare possit, dum non turpem personam instituat (l. fratres, c. de inqff. testa. >2, et de libe. prete. auth. ex causajrt, speciale tamen esse in Regibus ut venientes ex linea prima privari per testamentum non possint suecessione in regno (dicit Inno. in d. grandi, de supple. negli. prela. Ia VIo) '4; at tutela testamentária, suecessioque paribus passibus ambulant (ff. de re. iur., que tutela). Et, ut Paulus iurisconsultus astruxit, testamento tutores dari possunt cum quibus testamenti factio est (l. testamento, ff. de testamen. tute.)1^. Non minus ergo iustum quam tutum esse est existimare tui patris fratrem 1 ff, lib. L, tit. XVII, |. 2. 2 ff, lib. xxvi, tit. i, 1. 18. 3 ff, lib. xxvi, tit. vii, I. 5. 4 Cod., lib. v, tit. xxxv, I. i. 5 Cod., ibid.. I. 2. 6 Cod., lib. vi, tit. lvi, I. 6. 7 ff, lib. xxvi, tit. li, 1. 26. 8 ff, lib. 1, tit. m, 1. 4. 9 ff, lib. xl, t. v, I. 33. 10 ff, lib. xxviii, tit. 11, 1. 3. 11 tf, lib. xxviii, tit. 11, 1. ?9. 12 Cod., lib. 111, tit. xxviii, I. 27. i3 Cod., lib. vi, tit- xxviii, I. 4. 14 Lib. Sextus decretalium D. Bonifacii papae VIII, lib. 11, tit. viu, cap. 2. i5 ff, lib. xxvi, tit. 11, 1. 3. 29 45o Osjilhos de D. João I non potuisse privari tutela tui, cum tuus genitor illum a regni succes- sione privare non potuisset, hoc que summa providentia, ut qui sperare poterat hanc regni successionem, idem tueretur, ne dilapidarentur bona regni ipsius (ff. de legit. tut. I. i.*)i. Adde quod in /. qui testamento, ff. de excu.2 dicitur. Attende insuper, Rex Illustrissime, finitimarum tibi regionum inimi- cicias : et cum tuum regnum Africe faucibus obiectum sit, cumque fe- ritas bellicosissime gentis immanitasque ipsi regno vicinia immineat atque minetur; denique cum robur et magnitudo Castellae illud tuum regnum undique cingat : quo pacto periculosam et gravem illam con- ventionem que inter tot varias infensasque gentes nasci poterat consi- lium femine evitavisset ? Aut quo more moderari potuisset feram [29J, ut vel pacem in tuis regnis assequeretur, vel, si pro viribus tuorum vi- rorum belli quoque existeret magnitudo, tueretur tuorum maiorum glo- riam atque triumphos? Persuade tibi, obsecro, Rex, quid altitudo animi, quid acutissima tue gentis ingenia flagitabant. Siquidem moderatio re- gni et regni bona dicuntur esse universitatis adeo ut ( Sed in animo, in C. qu. de iuris.J quod regni maior pars decidit, iure subsistit: memi- nisse oportet quod omnium urbium, omnium municipiorum legati, om- nes tuorum regnorum príncipes, omnes prelati intercesserunt ut Infans Petrus tutelam Maiestatis Tue iniret. Hec infidas ire consiliarii tui non possunt, ostendere namque liceret eorum litteras eorumque signa in- scripta. Ostendere insuper possem clarissime matris tue consensum, qui solus sufficit. Si ergo, Clementissime Princeps, suo iure tuus patruus tutelam is- tam inire poterat, si tuam matrem ne tutrix existeret regnorum volu- bile pondus et sexus infirmitas dehortabantur ; si deinceps ut ónus tan- tum subirei Infantem ipsum intercessio principum salusque tui regni deflexit; denique si tanta prudentia in eo fuit ut, vicinis regnis bello flagrantibus, tuum regnum pace floreret; tanta integritas ut post sum- mam administrationem vel Atilio Regulo vel Aristide vel Fabrício pau- perior mortem obierit, quid est, o Rex, quid est cur hec tutela, iure suscepta, summa virtute administrata culpetur? Quod vero post annum quartum et decimum etatis tue Infans Pe- trus tenuit gubernacula regni quasi crimen nobis obiicitur, istud pro- fecto, Rex, criminis loco ducere novum est et ante diem hunc non au- ditum. Constat nempe tutelam regis hoc speciale habere quod saltem ante XXVm annum non finiatur, quod licet discretus sit adultus aliquis, tamen veniam etatis ante vicesimum annum non impetrat (l. in C. de his qui ve. eta. impe.ft. Constat etiam hoc ita decisum fuisse et obser- vatum in rege Legionensi, ut refert Ioan. (in addi. spe. ti. de tuto. % i); 1 ff, lib. xxvi, tit. iv, 1. 1. 2 ff, lib. xxvn, tit. i, 1. 37. 3 Cod., lib. n, tit xlv, 1. 2. Appendice 45 1 constat insuper, OMradum' in suis consiliis hanc opinionem tueri (con- silio LXIIIl*); Bartolum in suis consiliis id sequi (consilio XX'""; in super consilio XVII j; Petrum de Anchoramo* id ipsum dicentem (le- gem licet in C grandi de suppl. negli prelo.. I VI*). Quid multa? Hanc certe sententiam sequuntur doctores egregii; hanc ut teneamus et na- turalis ratio et positiva suadent. Quamvis namque tu, Rex, magna co- ruscas industria, ut tamen Origenes asserit, aliud est habere vim sa- pientie, aliud sapientia esse completum : propter quod Aristóteles in Ethicis, nichil, inquit, differt, etate sit quis iuvenis aut moribus: quippe tum alter propter experientie defectum erret, alter passionibus suis obtemperans deviet. Ita nempe iurisconsultus ait illius etatis consilium multis captioni- bus multorumque insidiis esse expositum. Ita Salomon asserit quod stultitia colligata est in corde pueri. Ita per Ysaiam miniatur Dominus: Dabo pueros príncipes eorum; denique sic Ecclesiasticus ait: Ve terre cui rex puer est. Cum ígitur tu superiorem non cognoscas, nec ab alio queri possent ulla remedia, periculosum certe fuisset per eam etatem tibi regimen restituísse. Atque utinam ad hoc tempus Infans tui regni regimen sus- tinuisset, nempe non tibi Tue Maiestatis emuli ad hunc obiicerent ex- cidium tue familie, cedem patrui et soceri tui corpus perfusum sanie. Adde quod ius civile dicit non debere sapientum hominum iura tractare qui nondum stabilem mentem adeptus est (l. fi. C de testa, muli.p, [30] nec ad rempublicam administrandam ante XXVm annum quis de- bet accedere (l. ad rempublicam, ff. de muneri.j4; ergo multo minus ad regnum in quo versatur periculum acrius for. c. ubi maius, de elec. Io VI0)^. Quare si tutela non erat, nec ipse restituere regimen debuit; nec, si restituit, ipsum a consilio tuo debebas excludere qui, tibi pro- pter etatis inrirmitatem adsistens (l. solet, ff. de tute.)b quasi administra- tor perseverabat. Nolo dicere quod ut tibi restitueret gubernacula regni mine mortis, attentatio necis, vite periculum, conspiraiio apud Santa- rinum intercesserunt. At nunc, quod extremum quasi Herculis clava nobis obiicitur, pacem federaque cum duce Bregancie per tuum patruum inita discutiamus. Pacis obtentu quotiens clades quotque principibus obvenit et Galli et i Oldrado da Ponte, ensinou em Bolonha, Pádua e Roma, onde foi advogado do Con- sistório. — Paulo de Castre chamalhe «o pae das leis»; -Emilius furetus, secretario de Leão X, chama-lhe «Summus sue etatis iurisconsultus». — Morreu em Avinháo em i335. 2 Pedro de Anchoramo, discípulo de Baldo, ensinou em Pádua, em Sienna e em Bolonha (i385-i399); escreveu Super ff. veteri et novo, sobre as Decretaes, sobre o Sexto, sobre as Clemcntinas, etc. Em 1415 declarava que havia 57 annos que dava consultas. 3 Cod., lib. vi, tit. xxi, 1. 24. 4 ff. lib. l tit, iv, 1. 8. 5 Sexti decret., lib. 1, tit vi, cap. 3. 6 11. lib. xxvi, tit. 1. 1. i3. 452 Os filhos de D. João I Afri exemplo sunt : cum illos Camillus oppressit, hos Scipio. Arma armis irritari Plinius scribit; insolitus veniendi modus per ducem Bre- gancie territorium infantis terrere debuit. Quod ego te oro atque ob- secro, Rex, animadvertas recorderisque quod offerebat Infans Duci Bregancie transitum liberum, honores et ea quibus amor leticiaque si- gnificantur, si modo inhermis pacatusque transirei. Erat alius locus quo Dux deducere exercitum poterat. Erant Ducis satellites et reliquie hos- tium Infantis arrecte, armis sollicite. In tuo latere occasionem bello cir- cumspiciebant. Quin, preter ydoneum ductorem, nichil aberat ad Infan- tem subvertendum. Quid, obsecro, cause fuit ut tantas copias compararet Dux, quas súbito ad Infantis periculum omnes ferunt esse conversas? Quid erat necesse ducem ipsum, effeto iam corpore, ad arma ire? Numquid Mauri tuum regnum ingressi erant? Numquid, ut aiunt, An- nibal erat in portis, ut, qui lectica vehi debebat, arma corriperet? Qualis esset filius ducis in tuum patruum, tu, Rex Serenissime, seis, tu es testis. Si ergo primus ex pace et concórdia ad intestina arma decur- rit Dux Bregancie, quanquam per speciem tuorum obsequiorum; si ho- nesti transitus oblatas conditiones abiecit; si tuum patruum, cum esset dignitate superior, indignum erat inferiorem videri potentia : numquid Dux ipse volitare cum exercitu in armisque esse debebat, Infans in metu? Numquid tanquam ighavus Infans ipse tantum armorum frago- rem penetrantem sua dominia, sicut fulgur, optare magis ne se lederet quam prohibere debebat? Profecto iustum initium in Infante arma su- mendi iustus iudex nemo negabit. Quo fit ut si etiam in delictis parci- tur si habuerint bonam originem, etiamsi errasse dixeris Infantis auxi- liares, illis tamen parcere debeas, quippe cum iustus alioquin error existimandus esset ducem sequentibus. Deinde iusta causa non defen- suri fines Infantis arma cepissent, et irruptioni Ducis repugnaturi? Spe- ciosus insuper titulus, quum Infantem educatorem suum prosequeban- tur. At eduetor, lege civili, patris vicem obtinet; lege divina nutricius, sicut et Ioseph dicitur, pater; lege primeva nature animalia omnia suos educatores sequuntur et protegunt. At, inquiunt tui, posteaquam Rex suas copias cum Duce iunxit, quare cum Infante steterunt? Quibus responsum iri velim quod ait iu- risconsultus (in l. si quis in gemina., § in civilibus. ff. de cap. et post li.)i : in civilibus dissentionibus, quamvis sepe per eas respublica ledatur, si tamen in exitium reipublice non principatos contenditur, qui in alte- rutras partes discessissent vice hostium non sunt. Atqui vereor ego, Princeps Clementissime, dicere cuncta que sentio; sed cum obscuritas tanta esset in rebus, sine discutiamus quid eis expedirei. Non iam ad te redire audebant, ne instigatus per Ducem in eos ira- tus esses; non in domos suas fugere, ne dicerentur inertes et timidi. I ff, lib. XLIX, tit. XV, 1. 21. Appendice 45 3 Si vero quid deceret aspicimus, cum aciem tuam viderent ipsi: neque periculosam fugam cum dedecore rapere debucrunt [31], neque in pe- riculo suum ductorem prodere : tierent quidem, si id fecissent, tibi non grati, patruo perfidi. Quid ni? Preter id quod oratione alia commemo- ravi, nonne Deus Gedeoni precepit eligere milites qui non supini vel reflexi in terram, sed qui erecti lamberent aquas, canum exemplo? Quid ita? Quia canis, fidele animal, suum sequitur educatorem, non illum in periculo deserit, non metu deducitur. Magni ergo, Rex Serenissime, et erecti animi fuit auxiliares Infantis non terras, non patrimonia spectasse sua, sed decus magne fidei magneque constantie, tanto exercitu pers- pecto quem tum collegeras, non fuisse metu deductos. Quamobrem honestum íiiit ipsis initium arma sumendi, nedum, si tandem ius dubium, laudanda constantia fuistis quidem, Rex, tu et patruus usi per hunc tu- multum concilio pari, eventu tristi. Cum namque propter hoc arma sus- cepisti ut suspicionibus tibi insinuatis occurreres, dissensiones a regno pelleres : ille, quod culpam maxime levat, ut detrectantes sibi a te sub- duceret, suspiciones ab animo tuo divelleret, te, quem colebat et super omnia diligebat, ut securus videre posset arma suscepit; se armis ad- versus arma tutan natura dedit, necessitas compulit. Ceterum, esto quod non tanta sibi suffragarentur preclara: certe, Rex, ea vox Plinit ad Traianum refertur, que, inquit, precipita tua gloria est, César, sepius vincitur Jiscus, cuius mala causa nunquam est, nisi sub bono príncipe. Confiscatio autem nobis obiicitur, quia rebellem exis- timasti fuisse patruum tuum. Quanquam vero ne illi, quidem, qui hoc dicunt, quod loquuntur id sentiunt, quia semper fere mendax in timore iracundia est. Quero quem rebellem esse diffiniunt, ut crimen morte non extingua- tur? Profecto eos tantum publicatio bonorum sequitur, ut iurisconsul- tus ait, qui reipublice perniciem moliti sunt (l. is qui. ff. ad l. Iul. mai.ji. Bartolus enim in Estravaganti Quam imper., in verbo rebellando, eum rebellem diffinit que contra Regem aut Impeni statum, vel ad régie persone perniciem rebellat, secus si aliter non obedit, vel regi resistit. At omnis voluntas Infantis Dom Petri, omnis cogitatio, tota mens aucto- ritatem tui nominis, dignitatem tuam intuebatur, hec habebat proposita, hec tueri volebat. Ipse, antequam adeptus esses etatem iure descriptam, tibi restituerat gubernacula regni; sed, quod certe decebat, non ut abrupte depelleretur quem conveniebat adsistere tibi, tanquam apud veteres Iovi Prometheus, vel Achates Enee leguntur. Nempe hoc summa ratione lex xnim tabularum induxit [inquit lex prima; ff. delegit. tut.J*; ut qui sperare possunt successionem, iidem tueantur bona ne dilapiden- tur. 1 ff, líb. XLVIII, tit, IV, 1. II. 2 ft", lib. xxvi, tit. xv, 1. 2 454 Os filhos de D. João I At videbat immigrasse in suum locum turbulentos homines, apertos hostes. lure quod senioribus lexipsa permittit minari, deterrere, emen- dare propinquos (lex única c. de emen. propin. t. XVJi, annum explenti forte minatus est? — Nichil sceleris commisit patruus tuus. Quid ita? Quis ipse quem tue dignitatis fautorem esse natura cogebat, consilio- rum adiutorem, rerum experientia, regni utilitas adhortabantur. Cum esset a te depulsus, credere potuit non te, Rex, sed hostes suos regni regimenta tenere. Queris quid sentio? Profecto, si spectamus tuam prudentiam, Infans Petrus forte errabat. Itaque si voluntas in huiusce modi rebus est spe- ctanda, non exitus, cum non tibi ut regni dignitatem eriperet, sed quia in te, stipato suis hostibus, putabat [32] adhuc esse parum roboris et animi, etiam Ulixisbonam petendo non scelus ullum sed errorem admi- sit; ex quo publicatio bonorum nequit iure deduci. Adde in atrocioribus delictis dolum, non modo latam culpam requiri (l. in lege Cornélia, ad 1. cor desi. requiri). At in lese Maiestatis crimen probatur dolus et ani- mus cum ex persona, cum ex coniectura exacti temporis. Quid ergo? Si ex persona Infantis coniectura sumere libet, ipse regis Iohannis regum omnium moribus optimi filius fuit. At est in equis, ait Oratius, est in iumentis patrum virtus, neque imbellem progenerant aquile co- lumbam. Fortis, iustus, gravis, beneficus, liberalis, magnanimus Infans summas virtutes per orbem fere totam circumtulit. Ipse tibi patruus sanguine, pater erat affinitate : at in talibus personis natura nichil sevi criminis suspicari permittit. Quid autem si ex tempore pretérito coniecturam sumemus? Siqui- dem, Rex Clementissime, Infans Dom Petrus in te fide fluxa fuisset, cum suo arbítrio nutriebaris, cum, te fratreque tuo mortem obeuntibus, successisset in regno, erat illectus ad cupiditatem. Maior erat, si voluis- set, nocendi facultas, uberior; occultius poterat, impunius ei licebat, cautius vir vários casus expertus agere didicerat. Sed ipse fidem, pro- bitatem, integritatem servavit, teque fideliter, benigne comiterque nu- tritum ad etatem oportunam perduxit. Qui ergo adolescens nichil un- quam nisi honeste, fideliter, maioribus suis dignum effecit, is ea exis- timatione, ea etate Princeps scelus incepit? Cuius magnanimitatem ad omnem gloriam tendentem omnes regiones viderunt, eius animo insedisse vilissimum perduellionis facinus suspicabuntur? Cui facultas peccandi libera fuit, nec tamen scelus admisit, eum fere alligatum et quasi vinculis astrictum arripuisse voluntatem nocendi, cum posse deerat, arbitrabuntur? Quem viderunt reges et príncipes nichil agen- tem nisi ex sanctis moribus et gravíssima disciplina, eius obtrectato- ribus credent, et potius auribus prestabunt fidem quam oculis? A quo totum regnum in ditione tentum tibi restitutum fuerat, ab eo nunc 1 Dod., lil). ix, tit. xy, 1. única. Appendice 455 unam regni civitatem surripi animo maio temptari verisimile esse con- stituem? O ridículos homines, qui persuadere conantur exteris gentibus ut te, Rex, quem tuus patruus tot annos ad suum nutum habuerat inher- mem, nunc regem insectaretur, et regem insectaretur armatum! Num- quid ex prudentíssimo furiosus effectus, post restituta tibi gubernacula regni, post affinitatem contractam, omnium Portugallie principum omnia arma contra se unum voluntarius excitavisset? Numquid ipse, qui nun- quam copias habuit quibus resistere potuisset, nisi omnia ultima expe- riendo, hostilitatis ultionem in regem factum arripuisset? Quandoqui- dem illud in hominem stultum non caderet, propter metum presentis periculi, nec in pessimum propter suavitatem generis et sanguinis. Pro- fecto, Rex Serenissime, etsi aliquis tam améns reperiatur qui horren- dum perduellionis crimen in patruum tuum affingat,nemo in regionibus exteris tam furiosus reperietur qui credat. Quare minus iusta severitas publicationis bonorum ubique censebitur, quando et dolus abest et qua- litas cause iure suffulta est. Verum quanquam supra scripta uon essent, obtenditur per te bo- norum confiscatio. Quo iure? An eo quod vi et armis omne sublatum est? Lege, inquiunt, regni Portugalensis qua proceditur in lese Maies- tatis crimine contra non citatum et indefensum : hec utrum dicetur tandem lex an legum omnium dissolutio? Etiam in notório crimine Deus Adam citavit inquiens: Ubi es? Notória neque citationem exclu- dunt neque sententiam (n. q. i. nondum1, et de Iur. iur., ad nostram)*; tolli non potest defensio iudicialis (C. de iur.ji. t. defensionis, Io x°p; citatio iuris naturalis est (Cl. pasto. d. de re m.)A, nec ibi valuit senten- tia, sed retractatur, propter legitimam citationem [33] omissam. Si ad causam spectabis, ibi crimen lese Maiestatis obtendebatur; si ad per- sonas, tu Portugallie rex es ille cuius sententia ibi retractatur, erat Rex Romanorum. Sed citari, inquiunt ipse non poterat; retinebat nún- cios regis, adire ipsum nullus audebet. Certe, quamvis tanta vis sit ve- ritatis ut contra omnium ingenia, calliditatem, solertiam se ipsam tuea- tur, tamen cui legato tuo vim attulerit Infans habebis neminem. Si non eos testes testificaturos istud affirmes, qui, ut Micheus propheta dicit, concupierunt agros alienos et violenter tulerunt domos, et rapuerunt, qui calumpniabantur virum et domum eius, virum et hereditatem eius; qui denique eos qui ambulabant simpliciter converterunt in bellum. Sed esto fecisset: nonne eum citare per edictum et id quod in re- quirendis reis iura inducunt observare debebasí Ymo vero, si tu citas- i Decreti secunda pars, causa 2. q. 1. 2 Decretales D. Greg. pap. ix, lib. 11. tit. xxiv, cap. 7. 3 Cod., lib. x, tit. 1, 1. 7. 4 Clementin., lib. 11, tit. xi, cap. 2. ^56 Os filhos de D. João I ses, numquid tenebatur venire ad iudicium exercitu grandi, feroci ipsi- que Infanti inimico stipatum? Quis tam améns, inquit Cicero, qui se multitudini conducte obiici velit? Aut homo qui comparere debeat, ut statim ad manus inimicorum merceneriasque sententias protrahatur ? Numquid se in hostium sinu reponere debuit? Hoc, inquit Clementina quam dixi, de more vitatur, hoc iure timetur, hoc refugit ratio, hoc abhorrescit natura. Desiperet ergo qui talem citationem diceret etiam arctavisse cita- tum. Non igitur defensionis copia, Serenissime Rex, per te dabatur; sed due res quas rústico auferre minime debes aut potes, citatio et loci securitas, Claríssimo Principi et tuo patruo auferebantur. Quid est igitur aliud confiscationes obtendere, ubi vestigia iuris et processus nulla apparent, quam te iactari per populos voluntate sola adductum, cupiditate tuorum cecatum, ad aliena bona rapienda impelli ! Quod certe, ut ab animo tuo alienum arbitror, ita tibi preclarum fore diiudico, si te vindicabis a vulgi labiis. Quid, si leges civiles, quarum ob- tentu rigorem penarum exerces, consiliarii tui fastidiunt? Quid si ea que iure nature probarentur evertunt? Nonne legibus communibus His- panie possunt inflecti? Est lex in more posita et instituto nobilium servata per totas Hispanias in lese Maiestatis crimine, primo reum de- bito modo citari; deinde non quosdam hostes, sed pares curie regni, principes, probos próceres adhiberi consilio. Tum sumi per omnes ves- tem lugubrem, tum declarari crimen esse commissum, tum panni stra- taque lugubria in publicum igne cremari. Hac lege non servata videtur tibi debere confiscationes recte servari? — Sed nolo preter tuam con- scientiam alium iudicem, neque per liberum Infantem observanciam legum apud Infantis exquiram sectores ; nec apud eos qui sibi, quanquam falso, glorie ducunt trucidasse clarissimum principem Hyspanie, leges Hyspanie postulande videntur. Nunc vero ut ostendam superest confiscationem non posse pretendi personis rebusque perspectis. At quibus personis ? Tua primo, secundo agnatorum tuorum, tertio tui patris et aví. Quid, queso, tua? Quoniam rex es, et ubi maximum imperium ibi minimam licentiam esse debere sapientes affirmant : nec omne quod licet honestum est. Audi epistolam divi Traiani ad Aufidium : Seio, inquit, relegatorum dampnatorumque bona avaritia superiorum temporum fisco vindicata; sed aliud mee cle- mencie convenit (l. i. ff. de inter, et rele.jK Deinde auetor est iuriscon- sultus turpissimo exemplo agere illum qui commodum aliquod honori domus [34] sue preponere non erubescit (l. miles, § socer,ff. de adult.J2: insuper, quoniam ut supparcatur honori familie si ab uxore, filio, con- iunctave persona furtum committitur in re domestica, nomen furti pe- i ff, lib. XLVIII, tit. XXII, I. I 2 ff, lib. xLvm, tit. v, 1. n. Appendice 457 namque iura submovent fl. si quis per. ' et l. qui servo, % item placuit,ff. de fur,i et l, i.ff. re. amo.3 et c. qui accu. non possunt.) 4 Si magnum preterea tiliis comitis Durenches, quibusdam etiam tu patrimonium resti- tuisti; si iustus fuisti, cur non in omnes? Si misericors, cur non in tuos? Sed transeamus ad tuorum agnatorum personas. Etquidem arbitror illos pervertere iura regii sanguinis, et fundamenta excellentie tue, qui publicationem honorum in familiam tuam adtrudunt. Nam cum liberos, auspice Deo, es habiturus, et plures liberos, manebit eos idem pericu- lum. Neque enim semper reges Portugallie tantus sapientie fulgor cir- cumfulgebit quantam cernimus elucere tuam prudentiam; et certe cum homines quod exemplo fit id iure fieri putent, cumque omnia rerum malarum exempla a rebus bonis orta sint, improbe et parum sapienter ac pene impie tue régie stirpis principibus inseres coníiscationis exem- plum per quod non sine periculo quodam clarissime necessitudines tui generis et sanguinis in posterum poterunt, intercedente aliqua furoris flamma, rescindi. Manifestam nempe est quanto dolore laturi, et forte tandem egre laturi sint, tui regni homines destringi seu abradi ab hoc regno avi tui nepotes qui virtute ipsum, tum in patrem tuum, tum in te transmittendum suscepit, non ut, quasi leo in domo, evertteres suo agnatos, sed ut in regno, cum tu regnares, reliqui nepotes sui florerent. Sic nempe regna legitima non uni persone sacrantur, sed stirpi. Sic Innocentius ille qui decretalem Grandi, de supple. degli prela. Io vi°5, pro regno Portugallie edidit, speciale esse dixit in regibus ut consan- guíneos ex prima stirpe descendentes privare non possint. — Sed si causa privandi subest? Illos Papa vel alius rege superior privare pote- rit. Sic denique regni condido fertur statuta quod regnum sectionem non patitur, dicit Innocentius At idem est posse privare principem aliquem ab ea portione régie domus, quam ipse possidet, atque a regno, propter indivisibilitatem regni ipsius. Exherdari ergo si per regem non possent, nec privari per regem possunt sive precípuo suo delicto. Insu- per, ait iurisconsultus, non auferendum esse liberis id quo defunctus eos privare non poterat (l. cum ratio, ff . de bo. dampnat.Jd Etiam ob crimen Infantis Petri a regno depelli filii sui non possunt, nec a Colimbro,.cum eos testamentum excludere non potuisset. Adde numerum cognatorum tuorum, cum etiam confiscado remitti soleat ubi plures tribus liberi extant. (I. 7, ff. % divus. de bo. dampnat.)i Si ergo hec mansuetudo legibus veteribus servabatur, etiam in extraneos, ut três liberi favorem tenendi alioquin publicanda bona haberent, quod» 1 ff, lib. xlvii, tit. 11, l. 35. 2 ff, lib. xlvii, tit. D, 1. 36. 3 ff, lib. xxv, tit. 11, 1. i.a 4 ff, lib. xlviii, tit. 11, 1. 8. 5 Liber Sextus Decretai., lib. 11, tit. viu, cap. 2. 6 ff. lib. xlviii, tit. xx, 1. 7. 7 ff, lib. xlviii, tit, xx, 1, 7. § 3. 458 Os filhos de D. João I obsecro, confiscationis potest esse tantum vectigal ut três illustres prín- cipes regii sanguinis, tresque virgines tibi cognatas tibique fratres facias ab hereditate patris extraneos? Numquid tu lacrimas ob necem patris ipsarum virginum, tueque cognationis luctum vectigales fore vis, ut insuper patrimonium tollas? Numquid recentem et attonitam orbitatem dolore mendacitatis insuper arfliges? Iunge quod innocentes prorsus sunt tui agnati; unus, propter etatem; alius, propter necessitatem parendi; tertius, propter absentiam ab ipso prélio. At istis educatio iure, natura a te debetur, que nulla lege, nulloque iure civili a te negari potest; illudque probabo facile per pias leges patrum tuorum. Quid ergo Dominum Iohannem, annorum xn puerum pateris paupertate perire ? Numquid tu Dominum Iacobum idcirco relaxare [35] debebas, ut imaginem clementie inde colligeres, ipse vero imprecationes trágicas omnes incurreret : esse sine domo, sine pátria, palantem, pauperem, despectum, exulem, vitam in dies agentem ? Turpe profecto est astruere tibi títulos misericordie, quasi vitam Do- mino Iacobo dederis, quam tu bona sua publicando ei per inopiam adi- mis. Audi, queso, iurisconsultum. Necare videtur, inquit, qui alimenta subtrahit, necessária non administrat, et exponit hominem aliorum mi- sericordie quam ipse non habet (l. necare, ff. de agno. libe.)1. Turpe est si tuum beneficium in iniuriam vertitur ut infamie notas ipsi Domino Iacobo per pene genus ingeras, eumque notatum vivere velis. Preter id nempe quod infamiam Iurisconsultus morti comparat (ff. de manu. vin- dic, l. justa)2, scitum profecto illud Ulixis apud Aristotelem responsum quod Calypsoni Girceque dedit : magne scilicet pene dolorique fore sibi si vel malus vel notatus existens fieret immortalis. Quid multa i Nonne iudicandus est ille beatior qui in acie mortem obivit, quam Dominus Iacobus cui patrimonium publicas, ut inter homines degens, careat ho- minum omni commercio? Quod vero ad Dominum Petrum attinet, si castrum de Helnes non protinus reddidit ipse petentibus, nec Litteras offerentibus tuas credere debuit (l. j.° C. de mand. princ.fi \ invadentibus resistere etiam potuit (l. prohibitum, C. de iurejis.;4 l. devotum, C. de Meta.fi. — At ipse pre- ter iussum tuum per regnum passim transibat. — Hoc, Serenissime Prin- ceps, ipsi certe licebat (l. Clarissimis, C. de dig. Io XII.°fi. — Ipse ar- matos convocabat. — Hoc, Rex, ad suam, patrisque defensionem fieri nulla lex vetat (ff. defnr. sed si subri.;l ff. de vi et de vi ar. L i.fi. i ff, lib. xxv, tit. m, 1. 4. 2 ff, lib. xl, tit. 11, 1. 9. 3 Cod., lib. 1, tit. xv, 1. 1. 4 Cod., lib. ix, tit. 1, 1. 5. 5 Cod., lib. xn, tit. xli, 1. 5. 6 Cod., lib. xn, tit. 1, 1. 15. 7 ff, lib. XLVH, tit. ii, 1. 28. 8 ff, lib. xliii, tit. xvi, 1. 1. Appendice 439 Hoc tibi fortasse, Rex Serenissime, dico liberius, ne antiquatus in tuos eat iniurie morbus qui animum tuum iníiciat, reddatque insana- bilem, et ne gloriam tue bonitatis hec severitas, tanquam fluctus, extin- guat et obruat. Cogita, obsecro, quod amor tui patris in Infamem Dom Petrum postulat. Perpende quid obiecta animo tuo species et memoria avi tui desiderat. Numquid, nempe, Rex, avus tuus sua virtute hoc tibi peperit regnum, ut tu in altíssimo régie dignitatis gradu locatus, reli- quam eius progeniem pro nichilo haberesr Numquid idem lilium ge- nuit, nepotes ex eo speravit tu crederet eos per te cárcere carcerandos, exulandos exilio, muleta mulctandos? Meritusne fuit tuus avus excidium et sui et tui generis tute armares? Ut contra suos nepotes omnibus odiis et viribus tu, nepos, excitatus exires? Ut denique aliis in eversione regii sanguinis apud te gloriari tutum sit, aliis vero ne dolere quidem sit li- citum. Sed quorsum hec? Nisi ut claríssima tui veteris avi memoria, venustas sanguinis, litterarum sacrarum monita, nature auetoritas, te, Rex, mitissimum, ab hac acerbitate deterreant? Quid non aspicis, Rex, dominium ipsum Colimbri cohesisse non In- fantis Petri persone, sed sue stirpi? Quod quidem tui infidas ire non possunt; nec mihi disputando negarunt; hac namque ratione lilii re- gum et principum se reges principesque vivis patribus vocare possunt (XXIIII q. 1, Cepit, in glo.)x : hac ratione príncipes regii sanguinis in dominiis que a corona derivantur usuíruetuarii censentur, esse stirps autem domina (Baldus in repetitione l. si ita, % Dominus, ff. de usu et liabi.)*. Qua igitur ratione maioritatus lege tui regni non confiscatur, nec publicari potuit Colimbri dominium nisi quandiu patruus vixit. Neque illa que in extraneum heredem non transierint ad fiscum transmitti pos- sunt, dixit Accursius (in lege de inter, et relê. C. de la. liber. tol. I. 1., § Si sub conditionejl. Insuper, que a genere descendunt hlius, propter patris erimen, non perdit [36] (ff. de iure patro., § Sed et cum ipso4, et de bo. liber. si ex patroni.)$. Que enim, inquit iurisconsultus, non a patre sed a genere tribuerentur, ea manent liliis incolumia (l. Alphe- nus,ff. de inter, et rele.j^. Itaque, si dominium Colimbri ab avo tuo et patre óptimo, a te ipso donatum Infanti fuit et filiis, ymo vero tempore donasti iam natis filiis, etiam propter Infantis erimen nequit auferri. Quam sententiam, Rex Serenissime, verba legjs Emancipatum (ff. de senatoribusjl et senten- tia adiuvant ut eis plus avi dignitas possit quam obsit casus patris. 1 Decreti 2* pars, cau>.a xxiv, quest I, cap. 42. 2 If, lib. vii, tit. vm, l.i6, § 1. 3 Cod., lib. vii, til. vi, 1. 1, § 7. 4 ff, lib. xxxvii, tit. xiv, 1. 17. 5 Id., ibid. 6 ff, lib. xlviii, tit. xxii, 1. 3. 7 ff, lib. 1, tit. ix, 1. 7. 460 Os filhos de D. João I Nolo facilem iacturam sepulcri totiens tibi commemorare. Licet enim tolerare [possemus] quod patruum tuum abstruseris vili sepulcro, quando quidem id Nino regi Medorum, Ciro prestantissimo regi Per- sarum, Pompeio, Cesari, Catulo, vel non esse sepultos, vel alieno se- pulcro sepeliri contigit, et ipsi Christo. Atqui, obsecro, Clementissime Rex, ne tibi molestus sim, et ne michi inimicus sis infensus. Benivolen- cia namque tui adducor ad hec proferenda, ne generose mentis tue prestanciam acerbitate puerili deformes, ostendens quidem in hac se- pulture negociatione acrimoniam animi ad hominem mortuum, cum nichil tamen obsis, nichilque noceas. Et sane nulla tibi iurisdictio talis suppeditat, quia laicus es; illud vero sanctuarium Dei, quod confiscari non potest, cum ius patronatus etiam per se confiscari non possit (dicit glo. XVI, q. VII filiis 1, et in Cie. Pastoralis, in verbo subiecte, de re iudi.J: certe iniustum atque nul- lum esse quisque deinceps mérito dixerit quidquid in hoc egisti. Nam illud, Serenissime Princeps, a te requiro : nonne tu Heliodori verberum et illius Ephot quod Gedeon struxit, meministi? Nonne quo pacto Cn. Pompeius templum Hierosolimis, non ut Alexander Macedo, sacerdotis iussu, sed auctoritate perpetua ingressus fertur legisti? Triumphantis- simus antea fuit, exinde profiigatissimus. Osias etiam rex lepram incur- rit, sine sacerdotum iussu divina contrectans. Nonne vox igitur illa cum regis tum etiam prophete péssima minatur omnibus principibus eorum qui dixerunt: possideamus sanctuarium Dei; Deus, Deus meus, pone illos ut rotam et sicut stipulam ante faciem venti? Etiam profecto in- citatos quoslibet homines contra Ecclesie iurisdictionem impetus hec única vox refrenare deberet. Etiam effrenatio cuiusque impotentis ani- mi tardari debet istis exemplis, et illius Dei pavore qui aufert principum spiritum, qui terribilis est apud reges terre. Quamobrem, optime atque validissime indolis Princeps, cum eaque in tanto ac tam repentino motu regni tui scripsisti aut conclusisti, mu- tato tempore mutare debeas; cumque falsi rumores ab Infantis obtre- ctatoribus ad te delati bellum concitarint; denique cum necessitas belli patruum, pietas liberos suos protegant a scelere, peto et obsecro ut omissis offensionibus confiscationis penam disrumpens, quasi fascina- tionem quamdam conculces. Hanc enim indignitatem penarum vastitas tue familie arguit, natura ipsa reffellit, excutit dignitas tua, robur et so- boles generis tui alioquin peritura explodit, utilitas item tua non sus- tinet. [37] Cum Regis Portugallie consiliarii diffisi iusticie extremum il- lud obiicerent: Regem aut turpiter trucidasse patruum suum, aut pro- 1 Decreti secunda pars, causa 16, quíest. 7, cap. 3i. Appendice 461 ditorie patruum regis bcllum inisse, proindeque dicerent quod Regem, ne parceret, tum suus honor, tum factionis intcstine periculum dehorta- rentur, hanc perplexitatem fictumque periculum confutans Oratio quarta per me Io. Ioefridi, decanum de Vergeio, S. D. N. Pape referendarium, dieta est XVI Ianuarii M" CCCC" Lmo: quam lege felicitei- . Que res magnam spem de te, Serenissime Princeps, prestare pote- rant, eedem nobis ohiiciuntur: tuus honor tuique regni tranquillitas. Nam sicut serpentis illius, quem fabule celebrant, exciso capite, plura capita exiliisse feruntur: ita, postquam ii qui te circumstant, iustitie nostre assensi, veritati cesserunt, nunc confutatis rationibus quibus In- fantem Petrum insimulabant, quasi victi, ad plura eademque arma nova recurrunt. Ita nempe disputant ut, licet oratione nostra superiori ad summam veritatem legitimum ius attulerimus, Tu tamen, Rex, cum in- terfeceris patruum tuum, aut parricidii notas incurrere, aut illi perduel- lionis penas infligere necesse habeas. Deinde, quasi telum acerrimum in nos intorquent: non posse restitui tuos agnatos cum metus regnum tuum perturbet et partes estuent intestino furore. Quorum alterum af- fert perplexitatem falsam tui honoris; alterum obruit tuam clementiam et pestem quamdam in tuum regnum effundit. Si enim omnium que in hoc civili bello intercessere malorum cul- pam fortuna sustinet; si reges constat que copiis et opibus tenere non possunt, ea mansuetudine et benevolentia assequi, te interfecisse pa- truum tuum dici cur pateris? Cur te non defendis? Cur non resistis? Denique cur non intelligis intestina bella sedari solere non per puni- tionem multorum, sed remissione et indulgência? Numquid, queso, tu mortem Infantis adscribere vis tue voluntati, propósito consilio animi, cum huic veritas, natura, bonitasque tua re- sistam? Quid enim tam preter tuam voluntatem accidit quam tuis in- terinas? Tu captis militibus ultro vitam restituisti; tu, media in acie, Domino Iacobo capto benignitatem sermonis adhibuisti. Prelium quod invitus fere inibas differebas in diem alterum. Illud preter voluntatem tuam turba, impetus hominum, vis concitatorum de súbito hominum, sine delectu, sine ordine, inchoavit; permixtis omnibus atque confusis, sagitta, sive telum missum a casu lateri se patrui tui infixit, et vitam sustulit. Utinam, Rex, utinam vivus potius ipse tuus patruus ad posse manus- que tuas deduetus esset, quanquam nempe vix speranda fuerat in tu- multu tanto clemência. Non cruore tamen pax, sed lenitate animi tui parta fuisset. Nempe, obsecro te, o dulce Mitissimi Principis ingenium, quam facile flexisset iracundiam ac emulsisset venerandus ille tui nu- tritoris aspectus! Quantum mulsisset tuum suave cor sapientissimi prin- cipis sermo! Nemo certe erit tam iniustus rerum existimator qui iudi- cet te, qui victis vitam dedisti, voluntate ac desiderio in corpus patrui, soceri, educatoris misisse ferrum. Luctuosissimi nempe belli flammam 462 Os filhos de D. João I minimi prelii exitu terminatam videmus; quanquam, quid belli nomen adscribo, cum fuerit ista secessio quedam, non bellum, nec hostile odium [38] scd dissidium familiare. Dixi profecto tibi sepius, Optime princeps, idque michi venit in men- tem, ut vel sicut inter Apóstolos dissensio subiit, dum Christo Aposto- lorum quilibet obsequi studebat ardentius, et esse Christo propinquior; vel, sicut parentes a liberis sepe dissentiunt, Paulusque et Barnabas stomachabantur. Sic, ob amoris tui certamen, iurgium ceptum a tuo patruo, ipsumque et ignorância rerum deceptum potiusquam crudeli- tate factionis; te vero non effecisse nec voluisse patruo necem, sed calamitate quadam fortune id contigisse, veritas astruit, et celebratissi- mus totius populi sermo confirmai. Que est igitur quibusdam ea cupiditas adscribendi casum consilio, mortem patrui tui propósito, cum illud turpitudinem summam habere possit, gloriam nullam? Namque, si absque máxima causa interfectus dicitur Infans, vel ex eo cognosce labem, quod Sólon interrogatus cur in hoc casu legem non scripserat, respondit: quia desperasset id scelus. Sive causa ponitur in médium, credisne fore homines qui dicant istud: Malefacere qui vult nunquam non causam invenit? Credisne non esse quod in causam Infantis dici disputarique possit? Credisne non facile commemorari quomodo Athenienses, fictione quorumdam, Socratem innocentissimum morte dampnarunt? Homerum, quem iurisconsultus appellat patrem omnis virtutis, património mulctarunt; Demosthenem, gloriam Grecie, Aristidem, exemplar integritatis pulerunt exilio. Quid multa? Scipio continentie et virtutis bellice vertex, Annibal Romanis cladibus imperator insignis, cum essent patrie conservatores, tamquam patrie proditores expulsi sunt. Si testes inducentur adversus Infantem, erunt qui astruant in Chris- tum crimina ficta, et testes esse repertos. Si vero iniquitas arguitur oc- cisi, quia primus in bello cecidit, erunt qui dicant muitos sub clipeo iusto perisse, atque solere mortem, ut Cicero loquitur, optimum quem- que in preliis pignerare. Itaque quod possit in alteram partem defendi non deerit. Quanto igitur equius est, tuaque prudência dignius non amplecti dubiam cau- sam, sed, quod veritas flagitat, adscribere mortem patrui fortune, non tue scientie, casui flebili, non voluntati. Neque enim tibi, Serenissime Princeps, cum hoste illo certamen fuit unde vel nomen victorie, vel triumphus possit adscribi. Neque apud Ro- manos, a quibus petuntur virtutis exempla, unquam bello civili suppli- catio legitur vel triumphus esse decretus. Decretum dico; ymo vero ne litteris quidem victorie núncio facta. Quo pacto? Quia L. Silla, Corio- lanus, Octavius, Cynna, Marius, iterum Silla civilia bella gesserunt, illis neque triumphus neque supplicatio data, neque permissum nomen vi- ctorie. Quid ita? Quia eos qui eives essent, si violentia Martis auferret, se non occidisse dicebant; tantum que modestie apud eos poterat vir- Appendice 463 tus, ut quanquam iuste arma corriperent, puderct tamen intra patrie víscera misisse manus. César nempe, supra captum humane mentis glorie avidus, ob pu- gnam Pharsalicam neque supplicationem petiit neque triumphum; ymo ne litteris quidem suis, ut Cicero asserit, ad amicos fecit mentionem ullam victorie. Ergo quod civis in eives horrebat non detestaberis gener in socerum, sobrinus in patruum? Ergo tibi quispiam consulet ut mor- tem, utque interitum illius, cuius senectutem ornare et tueri debebas, contra veritatem voluntarius in te attrahas et arcessas? Ergo, quando lex civilis ea que per improvisum casum accidunt fato imputat, non vo- luntati; quando nichil glorie ob mortem ipsam obtingere potest, eam propósito tuo insculpent illi quos metus ad hoc adduxit? Moneo, moneo ne facias, Prudentissime Princeps, quia tu veritatem secutus, obsecutus nature ac tue laudi, si eam calamitosam mortem deputaveris violentie tumulus atque fortune, te ipsum profecto, patruumque tuum ab omni [39] dedecore eximis. Sin vero aliter, dum unum latus proteges, vulne- raberis in alio; dum contra patruum tuum pugnabis, terga tua conodiesf tuamque posteritatem confundes. Perge tu, Rex, non cum aliis sed te- cum ipse certa, compleas dies tuos in bono et annos tuos in gloria. Refuta istius voluntarie mortis quasi glorie quamdam fuliginem. Culpa nempe gesti prelii in te nulla est. Videamus ex quibus fontibus arma ausisti. Omnium certe regnorum administratio pro aliis eius nature est ut in ea inimicitie oceulte, simul- tates apert sint. Vetus illa illatio, supputatio quoque deducitur: Amiais regis, hostis ergo multorum. Nulla ingenia tam parva ad invidiam sunt, ut ait Livius, quam eorum qui genus ac fortunam suam animis non equant, quia virtutem et alienum bonum oderunt. Natura insitum esse omnibus hominibus, Demosthenes affirmat, ut mala quam bona liben- tius audiant, citius credant. Sed quorsum hec? Nisi ut intelligas quantas inimicitias conspiratio- nesque regimen per Infantem susceptum attulit. Cum xnim tabularum sibi tutelam [deferri] tanquam proximiori cum Sereníssima genitrice tua sentiret, ipse iure fretus, ut videbatur, severius provinciam istam arri- peret, nec illud per status patrie perficeret, decretum ut ipsa tua Cla- ríssima genitriz idemque Infans hoc regnum consortis impatiens mo- derarentur. Hec huius intestini furoris prima Megera, hec occasio invidis tumultuandi, hec eorum proba matéria quibus quies in bello, in pace turbe sunt. Quam facile inflammari altitudo animi tue matris poterat: quam difficile gravis alioquin princeps discedere ab eo poterat quod sui iuris credebat esse, tute seis. Adde interventores ad iram et repu- gnantia in expeditione rerum iudicia; adde quod erat Infans inlargiendo paulo restrictior. Reflecte item animum et illius temporis memoriam repete, cum tuas aures obeidebant hostes Infantis. Meministine quanta Infans erat invidia quam auro ditior? Intelligisne quomodo non Agar a 464 Os filhos de D. João I Sara, sed Sara percutiebatur ab Agar ! Scisne, cum factio Infanti ad- versa evasisset tua credulitate robustior, scisne ténues premio, divites metu, stultos exemplo circumstrepere auribus tuis, moliri omnia, dicere contra patruum tuum? Itaque, si laudatur Iosue quia Gabaonitis credidit, et ut quisque bónus est, ita difficulter arbitratur alios velle, mentiri, tibi tot dicenti- bus adversus patruum credere licuit. Suspicio semel invecta animo tuo iracundiam aliquam movit; ira concepta aliter scribere patruo quam solebas impulit. Adeo Infans Petrus, dum aliter in ipsum ageres et scri- beres quam tua benignitas pridem didicerat, ob conscientiam rectam severior, ob etatem tuam paulo sublatior, te uti consilio, non tuo qui- dem, sed tuorum credebat. Aderant et regiminis gesti quedam vestigia, crescebat hostibus suis auctoritas, licentia, dignitas. Ad ea decoris in- sígnia, que nunc cum inter omnes reges, cum super muitos in te per- lucent, te, Rex, duce natura, disciplina comité, provexerat educans; te arguere, increpare, iuvenem terrere solitus, ipse impulsus benevolentia scribebat, loquebatur, agebat, atque forte quam príncipes alii refraga- batur tibi ferocius. Ita, dum nunquam miserie in comitate prodeunt, et omnia misera in bellis civilibus esse nostri maiores ne semel quidem, sed nostra etas sepe iam sensit, crescebat factio, augebatur in patruum, tuum invidia, suspicio in te roborabatur : tuum erat, Rex, consulere temporibus, occur- rere suspicioni et providere regni tui fortunis. Igitur, ea etate qua Sci- pio, annos septem et decem natus, arma cepisti, quod, quamquam per infelicem casum, arbitror felicitatis augurium. Do ergo causam belli commoti factionibus, et imperitie do quod tu multis multum credideris; tue bonitati nature do quod per hanc etatem suspicionibus insinuatis obviam ire parasti; [40] magnanimitati do quod súbito millia hominum fere octuaginta coegeris formidabile hostibus tuis signum potentie. Quo fit ut semina belli non tue sed aliene culpe sint, bellum vero ipsum bono consilio, eventu flebili ceperis et gesseris, atque ab omni noxa te testis fortuna vindicet. Illud vero, Rex Serenissime, cum tibi persuasum sit impendere magnas discórdias, et ferro rem transigendam si tuos agnatos in patri- monium suum restituis, non possum non exhorrescere. Quid enim? Hunc metum magnanimitas tua et agnatorum tuorum perculsa fortuna non sublevat? Quid? Hunc timorem non removet pietas et caritas san- guinis? Quid? Non insidet animo tuo hec vox Ciceronis : Cavendum scilicet tibi timere, ne plus timere cogaris. Equidem, Rex Clementissime, sapienter a te considerateque factum iri statuo, si metum, quem ex tuis agnatis quidam effingunt, per cle- mentiam tuam sopias potiusquam eos excludendos a regno iudices. Quippe qui aliquando duces fieri extere gentis facile possint, et exer- citu tibi obstare. Coriolanus exemplo tibi sit apud Romanos, Demaratus item et multi Attici. Sed, ne vetera nimis repetere videar, quantum Appendice 465 virium in Castella reperit et in Castellam adduxit Henricus rex depul- sus, audivisse te credo. Neque enim dignitatem solum et patriam, sed re- gni culmen recuperavit per illud robur militie quod êxul a regno extra regnum collegit. Comes Derbi plus, êxul ab Anglia, favoris inter Anglos quesivit absens quam retentus in regno potuisset assequi : quippe cui expulso populos coronam detulit. Ab illo nempe captum audisti Richar- dum regem qui, a regno profugus, se antea languentem et sopitum erexit; qui êxul, despectus, inops, opulentissimum regem devicit tum animi, tum ingenii viribus. Adeo ut in carminibus Appius scripsisse fer- tur : Unum quemque fabrum esse sue fortune. Evenit ut necessitas pro- fugis acuat animum, acumen autem gignat industriam, industria ver o fortunam prosperam faciat. Itaque, ut Cicero asserit, multi rem suam bene gessere pátria procul, multi qui domi etatem agerent propterea fuerunt parum potentes atque probati. Experimento quidem nos dis- cimus eos qui, vel spe Ímproba, vel iniuriis lacessiti sunt, vel sunt in metu, res novas optare, seditionem, turbinem, et quos presentes lace- ram atque fastidiunt, illos absentes mox faciunt plurimi, ac peroccasio- nem duces sibi, circumplectuntur. Quando igitur sola generis claritas apud omnes nationes agnatis tuis est paritura favorem : quando ipsi virtute vigent, vigent numero, vigent etatibus, quanto acrius tibi periculum instruis quam si clementia usus in ipsos, illorum presidio regnum tuum firmares ! Fios iste régie stirpis evellitur, michi crede, Rex, ab isto regno, summo cum dolore populi. Audivi enim secretos per rure fremitus, infidelis autem recti magister metus e§t, malusque diuturnitatis custos est timor. Hostes tibi fore necesse est quorum patrimonia retines, honorem deprimis, spem omnem tollis. Omnia tandem eos experiri contra te per hanc severitatem compelles. Quid enim est quod contra vim sine vi fieri possit? Tot vestigiis impressa est avi tui virtus in regno isto ut, qui leti videntur, multi luctum agant ob istam calamitatem. Tot vero per hanc penarum severitatem afficis ignominia, ut nullus sit hominum ex quibus exercitum contra Mauros redegisses, qui vel ab hoc regno tandem dif- fugiat, vel mortem gratius obeat quam velit vivere per vitam turpem: robur scilicet fortium militum, nobilitas insignis, duces optimi. Si spectas confiscationis utilitatem, scito bonis omnibus, ut Salustius ait, oportere plus [41] glorie quam divitiarum esse. Atque, ut apud Esiodum, male parta male dilabuntur. Ita et Plautus immundas furtu- nas decet squalorem sequi. Numquid igitur tibi consilium est pati ali- quam ex patruelium bonis tibi predam esse? Audi Ecclesiasticum: Qui sibi, ait, coacervat iniuste, ex animo suo aliis congregat, et in bonis suis alius luxuriabitur. — Si statui regnorum tuorum prospicis, ampliari, inquit divus Adrianus, imperium hominum adiectione quam pecuniarum copia malim. Numquid ergo tu regna tua ampla território plusquam hominibus, populos exhauries confiscationum delinitus aviditate? Profecto, Rex, 3o 466 Os filhos de D. João I sicutYdram Iasonis sopor ex Medec medicamentis adductus extermi- navit, non excisio multorum capitum, cum plura semper exsurgerent ; atque in salictis arboribusque quotiens plures scinduntur, furculos, tute seis, renasci plurimos: sic, crede, intestina bella nunquam extingui so- lere afflictione multorum, sed mansuetudine atque clementia. Quid namque fuit urbis romane seminarium cladis, preter illam multitudi- nem, Cesare repugnante, partim afflictam penis, partim urbe depulsam? Quid aliud illa vox quam misericordiam instruit : Lignum si amputan- dum fuerit, spem habet ut revirescat ? Quid insuper est quod, peccante multitudine, cum ob id sit crimen atrocius, penam tamen iura submo- vent? Satisne, obsecro, illa sunt que furore contracta vidisti, te generum, socerumque tuum prélio profano certasse, manus conferentes inter se Portugalenses exercitus, et arma ab externis in vosmet versa? Odiorum, obsecro, et contumeliarum omnium finis sit. Habent tui multa quibus perfacile officiis etiam errata superent. Quousque igitur tibi vanus terror incutitur? Scilicet quasi non aliter tutus salvusque esse possis, nisi adprobaveris proscriptiones innoxiorum militum ob di- vitias, cruciatus virorum illustrium, vastatas domos nobilium, fuga et cedibus tuorum patruelium bona quasi Cimbricam predam venum aut dono dari. Sileo hic, Rex, quod si tu pareis, ne te unquam offendant quibus tu parces deterrere cum metus poterit, tum misera illa ex peri- culis facta prudentia. Taceo quod tanto tibi futuri sunt fideliores quibus peperceris, quanto post tempestatem gratior effundit sese tranquillitas, cum post misérias ipsis proventus. honores et patrimonia reddes, ipsis- que dederis novum fatum. At, inquiunt quidam ex tuis, Qui patrem interfecit non nutriat filios. Cuiarum hoc proverbium est? Hominum an belluarum? Belluarum profecto quibus venenum aspidum sub labiis, quarum os maledictione et amaritudine plenum est, quibus veloces pedes sunt ad effundendum sanguinem. Sed cum contritio et infelecitas in venis eorum, cur, queso, hic se adhuc improbissimi machinatores exercent? Hos enim non bo- nitas tua iam predam recudit? Magnopere certe, Rex, gloria tua se ex- tulit cum, facto prélio, te hortarentur quidam gladiatores ut te ad stra- gem cedemque captorum proferres, et tamen divinitus tua prudência tua dulcedo, tua inter belli tumultum mansuetudo mirabilis hortancium illorum furorem sprevit, immanitatemque restrinxit. Cur audet igitur quisquam illud proverbium tibi proponere, in quo illius quam refutasti elucent reliquie crudelitatis? Equidem eos prover- bium arbitror hoc tibi cudere quibus bellum pro redditu atque proventu est, ut tu suspicione perfusus, quasi paraturus tibi presidia, et dones necessário et in ipsos tuum effundas. Deinde illos qui aliquando Infantis Petri partes foverunt [arbitror] Iudeorum exemplo qui simulate baptis- mum rapiunt; et quanquam carnes porcinas detestantur ac horrent, illas tamen inter Christianos edunt voracius ut, quanquam ficti sunt, veri Christiani credantur. Quorum improbitatem [42] a te retundi,abiici, Appendice 467 sperni, Rex Serenissime, non solum tibi utile est, sed necessarium. Quid enim illo provérbio potest dici crudelius? Quid illo, quem profe- rentes ad ipsum spectant, fine perfidius? Quanto melius noster Redem- ptor amare inimicos precipit! Quam elegantius Thales Milesius, unus ex septem sapientibus Grecie ait: Quecumque parentibus cognatisque stipendia intuleris, eadem tibi et filiis tuis expecta. Quanto prudencius Cleobonus, sapiens alter, voluntatem, inquit, frena, nichil agas, ama cognatos;, inimicitias solve. Habes, Rex, eam prudenciam ut etiamsi deliquerint tui agnati vel auxiliares Infantis, tu delictis eorum merita compares; habes lege na- ture, more principum, secta militari, iure civili remotionem criminis : a tuo patruo vel compensationem, vel causam venie. Dedecus a te casus excusat, a patruo tuo belli necessitas. Si, quod Aristóteles in Politicis ait, tu voluntatem in te possidere vis, adiungas, ut ipse loquitur, bestiam sanam : flebilis enim libido est sine ratione. Tu profecto, Rex, quod petimus cum iustitie tum tantis precibus non denegabis. Cum Deo ipso, quod ego te precor, imploro, Rex Prudentissime atque Humanissime, prospice ne pulcherrimam florentissimamque tuam cognationem per cupiditatem evertisse dicaris. Sed, sicut prélio facto, eorum qui captos trucidare volebant barbaras vocês crudelemque furorem tua mansue- tudo fregit, sic effice, in eo quod petimus, ut cum ceteros, tum te ipsum vineas clementia, gloria. Hoc enim cum, ut Plinius ait, armis omnium, sic longe felicius, cumque tibi conducat, ego a te petere, de teque eum bene loqui, cum bene sperare nunquam desistam. FlNIT. (BlBLIOTHECA DE SeMUR, VIS. IP.ed., p. 9-42.) (I) PARTIDA DE D. JOÃO PARA CHYPRE Extracto da chronica de Chastellain (Ed. Bruxellas, 1864) cxxv; tom. m, 121 e segg. Sy fait bel raconter maintenant, premier que j'entre en autre ma- tière, comme messire Jehan de Coymbre, neveu de la ducesse de Bour- gogne, après avoir reçu 1'ordre de la Toison d'or, en la feste de la Haye, et le duc estant parti du dit lieu de la Haye, pour approchier plus prés de la ville de Utrecht, s'en estoit venu en la ville de Leye (Leyde) une moult belle ville et riche. Le dit messire Jehan, aiant tou- tes ses apprestances, et 1'ambassade du roy de Cypre qui longuement lavoit attendu pour l'en emmener par de là, plein de larmes et de re- gres, vint prendre congé au duc et à la ducesse sa tante, pareillement au comte de Charolais et celui d'Estampes, au duc et à messire Adolf de Clèves et au bastard de Bourgogne et généralement à tous les au- tres seigneurs et barons de 1'hostel avecques lesquels il avoit eu repaire et cognoissance. Donc, en prenant congé au duc et lui remerciant des honneurs et biens reçus en sa maison et de sa longue nourriture que prise y avoit, enfin lui dit: — «Monseigneur, je vins un povre orphelin en vostre três noble maison, jà grant pièce a, et estoye un enfant ex- puls dehors de mon heritage et parente, dont, si Dieu me ni eust ad- dressé devers vous, monseigneur, je fusse allé waucrant par le monde, povre et desert le plus qu'oncques fit noble homme. Mais, grâces á Dieu et à mon bonheur tant m'en est bien pris que je me repute plus heu- reux d'estre venu par infortune en vostre maison qu'avoir demore en celle de mon pére toujours prospere et tranquille. Monseigneur, je vins bien jeune ci-eus et enfant et en soefre nourriture; sous vous suis venu jà à vigoureux cage: sy ne sçay quel grace vous rendre. Je y vins tout povre et sans attente en nulluy et vostre grace m'y a receuilly comme fils, et là ou je n'estoie en nulle disposition de jamais pouvoir essour- dre, vostre haute noble bonté m'a eslevé en honneur et en gloire. Cy-eus ay pris et de vostre main l'ordre de chevalerie ; maint honneur et bienfaits y ay reçu aussi plus qu'en maison de père, et ce qui plus 470 Os filhos de D. João I est, après que me suis trouvé en tout rebout de fortuney vous m'avez fait chevalier de vostre ordre, dont je me grandis plus que d'avoir cou- ronne en chief, et non assouffi encore de m'avoir tant fait, vous m'avez pourvu de royaume et de nom de prince sous vostre ombre. Que benoíte soit 1'heure que vous naquistes, et la terre benoite qui vous porte et vous soustient, et sans que j'en desplaise à Dieu, maudite soit 1'heure après, quant je ne vous en puis regracier ainsi qu'il appartient, et qu'il faut que j'abandonne et délaisse vous, monseigneur, et vostre noble maison qui tant me gist en cceur, que toutes mes veines se convertissent en pleurs et en amers regres, quant je perchoy que 1'heure de mon depar- tement sy est venue et que je suis constraint, par obeyr á vos nobles plaisirs, de m'aller rendre en pays loingtain, non cognu, au bout du monde, entre gens de perverse nature, dont les dix royaumes ne me seroient si agréables comme la demeure droit-cy, jà soit-ce que l'hon- neur m'y est trop grant et trop plus qu'à ma valeur, monseigneur, je ne vous puis grâces rendre, qui soient condignes aux bienfaits reçus. Ce petit que j'ay et que je vaulx me vient de vous. De ma povreté, je n'ay que je pusse offrir. De ma richesse, je ne vous puis complaire ne servir. Vous m'avez nourry le corps et s'y 1'avez fait chevalier. Sy pre- nez et recevez vostre nourriture entre vos mains, et telle qu'elle est, vaille peu, vaille point, elle est et será vostre le remanant de ses jours.» Sy lui cheurent les larmes bien dures avcques les mots et les yeux mesmes de tous les assitsants fit baignier en plours, tant estoient ses raisons parfondes en sens et telles qu'oncques jusqu'á ce jour on n'avait vu ni oy un jeune prince parler si hautement ne en si vive substance. Et alors le duc, qui humain estoit et piteux et se sentait attendrir en coeur des humbles paroles de ce jeune homme commença à dire : — «Beau neveu, ce poyse moi que je ne vous ay mieux fait, et ce peu que j'ay fait je l'ay fait volontieres, et m'y sens tenu; car vous estes neveu de ma femme et germain de mon fils, sy vous voudoye amer et cherir comme luy. Vous estes d'un bon sang et dont tous ceux qui en sont partis ont estes gens de bien. Espoyr m'est aussi que vous ne forli- gnerez point, mais serez un bon chevalier et un vaillant prince pour le temps á venir. Servez et maintenez honneur, car par prendre celuy règle, honneur et vous sievra et vous fera parement. Poursievez vos bons propôs et parcontinuez le beau commencement que Dieu a mis en vous. Si vous estes povre encore de biens, Dieu est riche pour vous et ne vous fauldra de sa largesse. Prenez en gré mon affection telle qu'elle est, car elle est telle envers vous comme envers mon fils. Sy n'ayez regret á vostre partement, car ne fust que vostre avanchement y pend et le bien de la crestienté qui est mon singulier regard, de moi ne partiriez ores pour aller si loing. Mais si le bien que je cognois qui vous en est à venir et au povre royaume ou vous allez me fait con- sentir en votre eslonge. Tontevoies ou que soyez, ne que vous devenez, ma dilection vous sievra toujours et laisserez un père derrière vous Appendice 47 1 qui en allez quérir une nouvel. Je vous recommende à Dieu. Soyez constam en tout ce que Dieu envoye. Dieu souvent tempte les jeus- nes cceurs par adversité pour les exerciter en vertus. Je me presente en tout amour envers vous, dont si fortune vous mène à posses de couronne, ne vous prègne oubly donc de vostre maison nourrice : c'est ce que je vous prie. » Et disant ce, le prist entre les bras et le recommanda à Dieu, dont n'y et celluy emprès, qui ne larmoyast de la pitié, mesme le jeune che- valier fondit tout en larmes. Lors prist congé à tout le monde un après 1'autre, et prioit que si jamais nul d'eux venoit par de lá voiageant, qu'on lui voulait 1'honneur faire de le venir voir, car alors il voudroit monstrer 1'affection qu'il auroit envers le lieu laissié. Entre tous autres de ses accointés, amoit fort deux frères jumeaux, messire Claude et messire Tristan de Touloujon; s'y estoitle dire adieu entre eux moult singulier et souverainement et le derrenier de la du- cesse sa tante. Finablement, convoié de la haute baronnie de 1'hostel du Duc, se mist en mer pour aller à Bruges, et droit là venu y sejour- na par aucuns jours après son marounier qui le devait mener en Cypre, dont après aucuns jours, monta en mer lui quarantième et alia sain et sauf jusques au dit lieu, là ou il épousa la filie du roi, seule heritière, mais à telle heure qu'oncques puis n'en retourna, car fut empoisonné et mis à mort, dont ce fut pitié grande et domage plus qu'on ne sauroit dire. ÍNDICE Pac. Advertência v Capitulo I — A corte e o conselho 1 Capitulo II — Ceuta 27 Capitulo III — A villa do Infante 5q Capitulo IV — As viagens do Infante D. Pedro 83 Capitulo V — Um estadista do xv século i3y Capitulo VI — O «Leal Conselheiro» 1 53 Capitulo VII — As Ordenações e os judeus 181 Capitulo VIII — Tanger 207 Capitulo IX — Os tratos da Guiné 243 Capitulo X — O regente 271 Capitulo XI — Alfarrobeira 3 1 1 Capitulo XII — A descendência do condemnado 347 APPENDICE A — A lenda dos Aventureiros e as ilhas do Mar Tenebroso, na geo- graphia de Edrisi 36i B — O auto, ou livro, do infante D. Pedro nas versões castelhana e portugueza 3t»i C — Cartas de doação da marka de Treviso ao infante 1). Pedro 379 1) — Carta do infante 1). Pedro a seu irmão D. Duarte escripta de Bruges 3Sj E — Conselhos dos condes de Arrayolos e Ourem e do bispo do Porto, a D. Duarte (1433) 397 F — Cartas da regência de D. Pedro 401) G — Alfarrobeira, nas chronicas de Borgonha 425 H — Os discursos do deão de Vergy perante D. Atíonso V 427 I — Partida de D. João para Chypre |6g "♦r^.i-H-:^ 4*:.4*: -»*: 4* -s* * -Sfe. : -** : -*#. : ?*?-■♦